Um artigo recente no New York Times levanta a questão: por que a elite digital adora um pensador que argumenta que o Vale do Silício é “um motor da ruína distópica”? Esse pensador é Yuval Noah Harari, um historiador israelense que se autodenomina filósofo, autor de vários livros populares, incluindo a mais recente obra – 21 Lessons for the 21st Century. O livro oferece o seu prognóstico sobre o futuro próximo, especialmente à luz das revoluções na tecnologia da informação e biotecnologia.
O Times espera que você pense ser paradoxal o fato de que empreendedores da tecnologia adorem um autor apocalíptico, e cliquem para saber mais sobre suas previsões. Por mais desconcertante que pareça, o mais intrigante é que uma profecia tão abrangente seja suportada por um argumento tão superficial e sem imaginação como o de Harari, e que os pioneiros da tecnologia caiam na armadilha. Esses precisam de algo melhor: precisam de conselhos baseados na apreciação da importância de suas realizações, compreendendo suas raízes.
O argumento de Harari para o distopianismo tecnológico
Embora o livro de Harari aborde muitas questões além da tecnologia, o que ele argumenta nos primeiros capítulos sobre o futuro da inteligência artificial (IA) é o que chamou a atenção de veículos como o Times. À primeira vista, seu argumento pode parecer novo, até mesmo profundo. Ele pontua que, no futuro, a IA substituirá os empregos humanos e levará a uma crise econômica e política, motivada pelos protestos de uma permanente “classe de inúteis”. Quanto mais avançados os computadores se tornam, e quanto mais descobrimos sobre a base biológica da psicologia humana, mais eles conseguirão prever as decisões humanas e tomá-las em nosso nome. Isso significa que a revolução da IA representa uma ameaça única para os empregos de pessoas como médicos, banqueiros e advogados, que antes pensavam ter empregos seguros, mesmo numa economia altamente tecnológica. Se até seus empregos estariam ameaçados, certamente os funcionários de fábricas, varejo e outros serviços também seriam prontamente substituídos.
Harari argumenta que a substituição de tomadores de decisão humanos por computadores é uma consequência natural do que ele considera um insight filosófico fundamental: “Acontece que todas as nossas escolhas, desde comida a parceiros românticos, resultam não de um misterioso livre-arbítrio, mas de bilhões de neurônios calculando probabilidades em uma fração de segundo. A badalada ‘intuição humana’ é, na verdade, ‘reconhecimento de padrões’”[1]. Já que não temos livre-arbítrio, nossas decisões são tão programadas – e programáveis - quanto as decisões de um computador e, portanto, substituíveis.
Harari oferece algum consolo frente a essa visão apocalíptica, mas não muito. Reconhece que nem todos os empregos serão substituídos por computadores, e que novas tecnologias criam novos empregos. No entanto, acredita que os novos empregos criados por essa mudança tecnológica exigirão cada vez mais especialização, dificultando a reciclagem das pessoas para executarem essas funções. Afinal, diz Harari, os trabalhadores agrícolas demitidos na década de 1920 ainda podiam aprender as habilidades necessárias para trabalhar nas fábricas, e os trabalhadores fabris desempregados ainda podiam aprender as habilidades necessárias para ocupar empregos no varejo. Não obstante, diz ele, os trabalhadores do varejo atuais não serão capazes de se reciclarem para serem cientistas ou programadores de IA. O resultado será o surgimento de uma nova “classe inútil”, formada por desqualificados ou desmoralizados para retreinamento. Ele acredita que isso levará à agitação social, e que a única alternativa para evitar tal cenário é uma expansão dramática do apoio governamental aos economicamente marginalizados.
Subestimando a capacidade de inovação e adaptação
A vida implica mudança – este é um fato inexorável. Portanto, há uma questão legítima sobre como lidar com o ritmo crescente de mudança na vida moderna. Mesmo assim, as razões de Harari para pensar que as pessoas não podem se adaptar revelam uma notável falta de imaginação.
Por certo, algumas pessoas terão dificuldades ou ficarão para trás, e sempre foi assim. Mas se a preocupação é que profissionais com grande capacidade de cognição como médicos, banqueiros e advogados poderiam ser substituídos pela IA, a pergunta relevante para eles é se podem retreinar a si mesmos para se tornarem novos tipos de pesquisadores ou operadores de IA, deixando de lado os trabalhadores do varejo. Também há dúvidas sobre o que esses farão. Mas antes de supormos a inevitabilidade de uma permanente “classe inútil”, devemos considerar que tipo de reinvenção é possível para trabalhadores menos qualificados e inteligentes.
Considere como os próprios problemas de mudança tecnológica geram novas oportunidades, mesmo para aqueles com habilidades menos especializadas. Harari enfatiza que a necessidade de reinvenção constante se tornará uma fonte cada vez maior de estresse. Mas o próprio problema cria oportunidades para professores de ioga, guias turísticos, Life Coaches e, talvez, “coaches de reinvenção” do futuro. Quantas atividades inéditas podem ser criadas no futuro para ajudar as pessoas a relaxarem, desconectando-se da tecnologia? E quantos novos empregos serão criados para nos ajudar nesse processo? Não há como saber.
Ceticismo quanto ao poder da educação
A educação é a mola propulsora da reinvenção. Então, como o avanço tecnológico poderá melhorar a educação, ampliando a capacidade das pessoas de se prepararem para o futuro, ou de se reinventarem para além dos limites que conhecemos hoje? Harari especula (sem muitas evidências) sobre todas as formas como os algoritmos substituirão os empregos de vários trabalhadores altamente qualificados. Então, por que não especular ainda mais? Então, por que não especular que esses mesmos algoritmos substituirão ou melhorar os empregos dos professores atuais, preparando os trabalhadores atuais para a nova economia?
Em um capítulo sobre educação em 21 Lessons, Harari faz menções vagas à importância de ensinar “pensamento crítico, comunicação, colaboração e criatividade” em uma nova economia dominada pela IA. Mas seu foco aqui é aperfeiçoar a educação dos inovadores, ignorando como esses poderiam melhorar a educação dos outros. Surpreende que, sendo Harari um educador, desconsidere o potencial da IA de revolucionar seu próprio campo.
Novas tecnologias estão conectando mais mentes ao redor do mundo a novas oportunidades educacionais. Steven Pinker oferece uma imagem convincente das perspectivas empolgantes em seu último livro Enlightenment Now:
A educação global pode ser transformada. O conhecimento do mundo já foi disponibilizado em enciclopédias, palestras, exercícios e bases de dados para bilhões de pessoas via smartphones. Instrução individualizada pode ser fornecida pela internet às crianças do mundo em desenvolvimento por voluntários (veja, por exemplo, o site “The Granny Cloud”) e para outros interessados via tutores de IA…
A promessa da nova era das máquinas também advém de inovações no próprio processo de inovação. Uma delas é o empoderamento econômico de bilhões de pessoas via smartphones, educação on-line e microfinanciamento. A cada bilhão de pessoas com baixo QI há um milhão de pessoas com QI altíssimo. Pense como seria o mundo se a sua inteligência fosse totalmente aproveitada![2]
O que acontece quando uma nova tecnologia permite que um milhão de novas pessoas com QI altíssimo utilizem sua capacidade intelectual não apenas para gerar mais mudanças tecnológicas, mas também para ensinar o resto de nós como fazer o mesmo? Se apenas um punhado desses gênios entrar no campo da tecnologia educacional, terão o poder de alavancar os não-gênios em muitos graus de magnitude.
Não são apenas os empreendedores de tecnologia que têm o poder de revolucionar a educação. Há uma necessidade desesperada – e grandes oportunidades – para quem quiser investir na educação. Especialmente nos Estados Unidos, o campo da pedagogia está muito atrasado. Como tal, é responsável por formar cada vez mais alunos que não conseguem aprender novas habilidades, pois não aprendem a pensar por si próprios, independentemente de seu nível de inteligência. Por maior que seja o acesso à informação e alta tecnologia, o mundo ainda espera que os empreendedores educacionais integrem as melhores descobertas da psicologia com as melhores descobertas nas ciências humanas, de modo a estimular o desenvolvimento de alunos com dificuldade de aprendizado.
Evasão do empresário
Para um pensador fascinado pelo impacto da inovação tecnológica no mundo, é chocante que ele limite seu pensamento sobre a economia do futuro à questão de se haverá quantidade suficiente de empregos disponíveis. Ele nunca considera a questão de se indivíduos vivendo em uma sociedade cada vez mais tecnológica terão mais facilidade para criar novos empregos para si próprios. É como se a categoria “empresário” não existisse em seu universo. Ele desconsidera a existência de empresários, embora esses constituam grande parte de sua base de seguidores. No entanto, são eles que criam novos negócios todos os dias. Em vez disso, a real necessidade deles é poder identificar um novo valor que possam negociar com os outros, e a tenacidade para transformar suas visões em realidade.
Empreendedores criam novos bens e serviços não apenas identificando novas formas de resolver velhos problemas, mas também criando novos valores positivos, além de manda onde antes não existia. Cem anos atrás, quantas pessoas queriam contratar personal trainers, instrutores de dança ou gestores de patrimônio? Quantos cursos pré-vestibulares não haviam sido inventados, quantas faculdades não haviam sido fundadas, dedicadas a ensinar habilidades inimaginadas? De novas formas de recreação a novas experiências educacionais, a criação de valor significa escolher ver o mundo com outros olhos, encontrando novas formas de reunir os recursos necessários para mudar o mundo e avançar em face do pensamento convencional e dos pessimistas, e os sistemas legais adversos criados por ambos.
A fonte da inovação
Por mais chocante que seja, Harari ignora a importância dos próprios inovadores que formam sua base de fãs; visto por outra perspectiva, seu ponto cego não deveria causar surpresa. Não é chocante se considerarmos que ele pode levar a sério seus pressupostos filosóficos. O ato da inovação representa a essência do livre-arbítrio que Harari nega.
O livre-arbítrio é a capacidade que nos permite olhar o mundo de uma forma diferente, de modificá-lo, e de apreciar o significado desse processo. Harari acha que nossas vontades são facilmente substituídas por algoritmos de “reconhecimento de padrões”. Mas não são, e ele deveria saber disso.
A redução que Harari faz da cognição humana a mera reconhecedora de padrões não é apenas implausível em sua aparência, mas nega seu próprio trabalho como estudioso da história natural humana. Em seu best-seller Sapiens: A Brief History of Humankind, enfatiza que o desenvolvimento evolutivo mais impactante de nossa espécie ocorreu durante a “Revolução Cognitiva”, cerca de 70 mil anos atrás, quando desenvolvemos uma linguagem de recombinação infinita, capaz de representar estados e assuntos até então desconhecidos. Foi essa capacidade que permitiu a inventividade do Homo Sapiens, permitindo-lhe superar uma variedade de outros hominídeos e, por fim, dominar a ecologia planetária. Logo, é decepcionante o fato de Harari não considerar as implicações de nossas habilidades únicas de solucionar problemas em relação aos problemas das novas tecnologias, muito menos como essas mesmas resolvem inúmeros problemas.
Uma indústria inteira cresceu em torno do Vale do Silício em apenas algumas décadas, criando produtos que mesmo o mais experiente dos futuristas jamais poderia imaginar. Se essa indústria pode criar um mercado para professores que sabem pouco sobre tecnologia ou suas precondições, mas que sabem como desenvolver profecias apocalípticas, o futuro é ainda mais brilhante para qualquer pessoa com imaginação e vontade de vislumbrar um futuro melhor.
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Publicado originalmente em New Ideal.
Revisado por Matheus Pacini.
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[1] HARARI, Yuval Noah. 21 Lessons for the 21st Century. New York: Spiegel & Grau, 2018, p. 20.
[2] PINKER, Steven. Enlightenment Now: The Case for Reason, Science, Humanism, and Progress. Nova York: Penguin Publishing Group, 2018, p. 332.