No primeiro artigo dessa série, discuti os fatores externos essenciais à saúde mental do indivíduo: sua constituição física, o ambiente em que está inserido e as estruturas psíquicas que desenvolveu ao longo de sua vida. Todos esses fatores, todavia, estão fora do controle do indivíduo – a capacidade de alterar nossa estrutura física e o nosso entorno é bastante limitada, e até mesmo os hábitos mentais que desenvolvemos no passado só podem ser modificados com bastante tempo e esforço. Tendo isso em mente, qual exatamente é o papel da escolha individual na saúde mental?
Por um lado, muitos negam a existência da enfermidade mental, tratando o enfermo como alguém que escolhe ser problemático. Esquizofrênicos muitas vezes são tratados como excêntricos, depressivos como preguiçosos, e pessoas hiperativas como bagunceiras – como se, podendo escolher, alguém resolvesse escolher o sofrimento que advém dos transtornos psicológicos.
Por outro lado, muitos vitimizam o enfermo, afirmando que ele não tem nenhum controle sobre suas ações e, portanto, não deve ser responsabilizado por suas consequências. Além de incorreta, essa visão infantiliza o enfermo, por um lado, contribuindo para a retirada indevida de suas liberdades e, por outro, colocando-o numa situação extremamente confortável que impede sua recuperação – afinal, se a loucura é uma desculpa para eu fazer o que bem entender, sem responsabilização, por que me esforçar para melhorar?
De forma ainda mais nefasta, essa visão é cada vez mais utilizada pela esquerda progressista para suprimir a liberdade de terceiros. Por um lado, os “justiceiros sociais” buscam proibir produtos, atividades e falas que possam causar danos em indivíduos instáveis, em detrimento de uma maioria saudável. Por outro, usam a própria doença mental – real ou inventada – como escudo político, capitalizando em cima da relutância de pessoas decentes em tratar um enfermo como um igual, criticando suas falas e ações.
O propósito desse artigo é esclarecer a relação entre a saúde mental e a escolha individual em suas duas vias. De um lado, analisarei os efeitos da doença mental sobre a capacidade do indivíduo de escolher – de outro, os efeitos que suas escolhas, e as ideias que ele adota, podem ter sobre a sua saúde mental. Por fim, falarei sobre as consequências éticas da enfermidade mental, como ela impacta ou não a responsabilidade do enfermo, e de terceiros, por suas ações.
Volição e livre-arbítrio
Antes de falar sobre a saúde mental, é necessário diferenciar volição e livre-arbítrio – dois conceitos intimamente relacionados, mas ultimamente distintos. “Volição” é um conceito essencialmente psicoepistemológico, que se refere à natureza da nossa mente, isto é, ao fato de que podemos e precisamos fazer escolhas. “Livre-arbítrio” é um termo essencialmente metafísico, que se refere à relação de nossa mente com a existência – especificamente, à independência e efetividade das nossas escolhas.
Falar de volição e livre-arbítrio é como falar de existência e identidade. Ambos os termos se referem ao mesmo existente, mas por uma perspectiva diferente. “Existência” contrasta aquilo que existe com a alternativa de não existir, enquanto “identidade” identifica que os existentes possuem características específicas e não contraditórias. Ambos os termos, porém, se referem àquilo que existe, e é o que é.
Da mesma forma, “volição” se refere ao ato mental de escolher, enquanto “livre-arbítrio” se refere ao fato de que nossas escolhas não são “predestinadas”, nem “inefetivas”. Ambos os termos, porém, referem-se ao ato de escolher, que é o ato de se tornar a causa de uma mudança na realidade.
Uma forma imperfeita[1], mas útil, de ilustrar a diferença é uma situação em que alguém aponta uma arma para sua cabeça, e lhe dá a chance de escolher tomar um tiro na mão esquerda ou na direita. Ao ouvir sua resposta, porém, você leva um tiro no pé. A sua volição permaneceu intocada, pois você ainda escolheu em qual das mãos tomaria o tiro. O seu livre-arbítrio, porém, apesar de existir, foi temporariamente invalidado – a sua escolha foi feita por outrem, sendo totalmente irrelevante para o resultado final[2].
O desenvolvimento do livre-arbítrio
Seres humanos não nascem com livre-arbítrio. Por um lado, crianças ainda não desenvolveram a capacidade de controlar seus próprios impulsos – suas escolhas, então, não são independentes, mas causadas por instintos inatos e pressões ambientais. Por outro lado, crianças ainda não aprenderam a aprender, portanto, não são capazes de prever os resultados de suas ações. Apenas com o amadurecimento de nossas estruturas físicas[3] e psíquicas, nos tornamos capazes de escolher.
Da dieta ao uso de drogas, porém, nossas escolhas alteram essas estruturas, e se as danificarmos muito, perdemos nosso livre-arbítrio até que sejam restauradas. Assim como uma sociedade democrática é capaz de votar por uma tirania, um indivíduo pode escolher perder seu livre-arbítrio.
A enfermidade mental reduz o escopo das escolhas possíveis para o indivíduo, tanto em termos de independência, quanto em termos de efetividade – e quanto mais severa a enfermidade, mais estreito o escopo. Alguém que ouça vozes inexistentes ainda é volicional, pois pode escolher obedecer ou não a essas vozes. Uma escolha baseada em vozes inexistentes, porém, não é efetiva – e as ações decorrentes dessa escolha são causadas pelo transtorno psíquico, não pela escolha em si.
A perda do livre-arbítrio, porém, não é uma alternativa binária, mas um espectro contínuo. Um alcoólatra comum, por exemplo, consegue escolher não entrar num boteco. Porém, ao entrar e ter contato com um copo de cerveja, não tem escolha que não beber. Por outro lado, um alcoólatra severo irá beber até sua garrafa favorita de perfume, se esse for o único álcool disponível – enquanto alguém que tenha passado por anos de terapia e desenvolvido certos hábitos mentais, pode ser capaz de sentar em uma mesa de bar com seus amigos e pedir um copo de suco. O escopo das escolhas disponíveis e, portanto, o livre-arbítrio, normalmente é perdido de forma parcial. Mas, exatamente, o que é uma perda “parcial” do livre-arbítrio?
Um indivíduo deprimido não pode escolher levantar da cama, vestir-se, ir ao trabalho, divertir-se com seus amigos e ser produtivo ao longo do dia. Ele é simplesmente incapaz de fazê-lo, e tentar apenas o levará à falha, exacerbando sua depressão. Ainda assim, ele pode ser capaz de sair da cama, arrumar seu quarto e cuidar da sua higiene básica, por exemplo. O deprimido que fez essas escolhas ontem, melhorou seu estado emocional e hoje consegue ir à terapia e se exercitar – e será capaz de estudar e trabalhar plenamente amanhã.
O livre-arbítrio existe na medida em que essas pequenas escolhas podem levar o indivíduo a uma situação melhor no futuro, expandindo o escopo delas. Enquanto houver escolha efetiva, há livre-arbítrio – e “parcial” diferencia a efetividade das escolhas do indivíduo enfermo em contraste às de um indivíduo saudável.
Com ou sem transtorno mental, o ser humano é um ser volicional, e essas escolhas não apenas “ajudam” no tratamento – elas são essenciais. Por causa da natureza volicional do homem e da natureza holística da doença mental, não existe tratamento psicológico “passivo”, em que o médico prescreve uma medicação e o paciente, de repente, melhora. O tratamento psiquiátrico consiste em ajudar o paciente a expandir progressivamente o seu escopo volitivo, para que possa ativamente desenvolver os hábitos necessários a uma vida saudável. Isso é o que profissionais de saúde mental querem dizer quando falam que “para tratar um paciente, é preciso que ele queira ser tratado” – e é por isso que a crença de que a insanidade mental tira toda e qualquer responsabilidade do indivíduo é altamente nociva para o seu tratamento. Mas qual é, exatamente, a sua responsabilidade?
Enfermidade mental e responsabilidade individual
Entender o caráter transicional do livre-arbítrio é essencial para definir a responsabilidade do indivíduo enfermo sobre suas ações. Ao contrário do que muitos acreditam, a existência de um transtorno mental não implica ausência de responsabilidade. No caso de enfermidades extremas, a questão é simples – assim como uma criança, a responsabilidade sobre suas ações recai sobre seus pais, ou outro responsável legal.
A responsabilidade moral de um indivíduo é uma consequência de sua relação com a realidade. Se uma pessoa é capaz de causar mudanças na realidade – i.e. se suas escolhas mudam a realidade, e são causadas por ela, e não por fatores externos – ela é responsável pelas consequências diretas dessas mudanças. A responsabilidade legal, por sua vez, é uma instância da responsabilidade moral, e se refere à relação entre indivíduos.
Como Ayn Rand detalha em A virtude do egoísmo e Capitalismo: o ideal desconhecido, a interação entre indivíduos só é benéfica se respeita a sua natureza racional e, portanto, se respeita seu direito à vida, liberdade, propriedade e busca da felicidade. Ser capaz de escolher violar esses direitos de outrem, portanto, é ser responsável por não fazê-lo. Se, por outro lado, um indivíduo é incapaz de escolher, ele não é a causa de suas próprias ações – seus pais o são.
Um indivíduo que chuta uma bola não é responsável apenas pelo movimento imediato dessa bola, mas por todas as consequências diretas dessa ação – pelo mérito de um gol numa final de campeonato e pelo crime de quebrar a janela do vizinho. De forma mais complexa, mas pautada pelos mesmos princípios, gerar uma nova vida é se tornar responsável pelas consequências diretas dessa ação, até que essa vida desenvolva a capacidade de escolha e assuma essa responsabilidade. Um indivíduo que, por não ser capaz de escolher, machuca outra pessoa, é o equivalente moral – e deve ser o equivalente legal – de uma bola chutada por seus pais décadas atrás e, posteriormente, negligenciada.
A responsabilidade advém da capacidade de causar mudanças na realidade. Ser responsável pelas ações de um indivíduo que não tem a faculdade de escolha, portanto, implica em ter a capacidade de controlar suas ações – minar essa capacidade é impor, perversamente, a situação de responsabilidade sobre algo que não se pode controlar. Esse controle externo, porém, não é uma forma de “tirania justificável”, visando apenas a proteção dos responsáveis, mas uma necessidade à felicidade do próprio individuo enfermo.
Como vimos anteriormente, a enfermidade mental é a má integração dos fatores que dão origem ao livre-arbítrio – que, por sua vez, é essencial à felicidade. Para que o livre-arbítrio seja restaurado, é necessário que terceiros alterem esse processo, visto que o indivíduo já não é capaz de fazê-lo. Essa necessidade metafísica de intervenção externa para que o livre arbítrio seja restaurado é a razão pela qual a internação compulsória é ética, e deve ser legal, em casos extremos. A existência parcial do livre- arbítrio na maioria dos casos é a razão pela qual a internação compulsória é moral apenas em casos extremos. O que define se um caso é ou não extremo é a capacidade do indivíduo de controlar indiretamente suas ações, identificando sua enfermidade e agindo de acordo.
Em caso de livre-arbítrio parcial, a responsabilidade recai plenamente sobre o próprio indivíduo. Um indivíduo que, apesar de sua enfermidade, é capaz de identificar a natureza de sua patologia, também é capaz de manejá-la – e, assim, tem a responsabilidade de fazê-lo. O nosso “alcoólatra médio” do exemplo anterior não é capaz de não beber ao entrar em contato com o álcool, mas é capaz de entender sua própria situação e evitar o álcool. Qualquer dano que cause a si ou a outrem sob o efeito do álcool, portanto, advém de sua escolha de entrar em contato com a substância.
Essa natureza parcial do livre arbítrio de um paciente psiquiátrico também é a razão pela qual induzi-lo a causar dano a si mesmo é moralmente – e deve ser legalmente – equivalente a causar esse dano diretamente. Dar um copo de cerveja a um indivíduo em controle de suas faculdades mentais é oferecê-lo uma escolha. Dar um copo de cerveja a um alcoólatra em recuperação, sabendo de sua condição, é o mesmo que forçar-lhe a cerveja goela abaixo. A sua escolha de não beber foi feita ao afastar-se do álcool, e desrespeitar essa escolha é colocá-lo, contra a sua vontade, em uma situação fora de seu controle.
O papel das ideias na saúde mental
Por último, é necessário ressaltar que uma filosofia racional e egoísta é essencial para a manutenção da saúde mental. O próprio ato de identificar a enfermidade mental depende de uma série de premissas, que são fruto da investigação filosófica. Antes de mais nada, é necessário identificar que o indivíduo é capaz de ser feliz, e que deve buscar a sua própria felicidade. Não é possível superestimar o número de cristãos, niilistas, estoicos e outros altruístas que toleram – e até romantizam – a depressão clínica por achar que o sofrimento é inerente à vida na Terra.
Para lidar com condições que comprometem a faculdade de escolha, é necessário entender que ela existe, e é parte da natureza humana – um fato que deterministas se empenham em negar. Para lidar com condições que afetam a mente, é necessário identificar a existência da mente – um fato que materialistas se empenham em negar. Para lidar com transtornos de personalidade, é necessário reconhecer a importância de uma personalidade individualizada – algo que os coletivistas se empenham em negar.
Ademais, uma epistemologia racional é necessária para identificar a natureza dos fatores envolvidos na consciência e na enfermidade mental, e como eles se relacionam. Só fomos capazes de descobrir o funcionamento do cérebro, da mente, e a relação entre ambos, quando abandonamos a fé, em prol da razão – e a progressiva degeneração da comunidade científica rumo a uma religião secular está gradualmente revertendo esse processo.
É necessário ter uma política racional, pautada nos direitos individuais, para que a doença mental seja a exceção, e não a regra. A depressão em uma sociedade como a Venezuela, o Irã ou o Japão não é um acidente, mas uma necessidade. É apenas em uma sociedade relativamente livre, na qual as escolhas do indivíduo sejam respeitadas, que a perda de seu livre arbítrio é algo relevante. É apenas em uma sociedade relativamente próspera, na qual a felicidade é algo alcançável, que um impedimento ao seu alcance é problemático[4].
Por fim, é importante ressaltar a importância da filosofia de um indivíduo na manutenção de sua própria saúde mental. Um esquizofrênico que reconhece a primazia da existência[5] e desenvolve o hábito de identificar seus delírios o máximo possível, diferenciando-os da realidade, tem uma chance muito maior de dominar sua condição do que um pós-modernista que acredite, plena e deliberadamente, que a consciência cria a existência. Um paciente depressivo que tem consciência de que suas ações devem ser planejadas com o longo prazo em mente é mais propenso a procurar ajuda profissional, ao invés de buscar o alívio momentâneo de drogas como a cocaína.
A filosofia é uma ciência prática, e por lidar com as verdades mais gerais a respeito da existência, e de sua relação com o indivíduo, o seu aprendizado se dá de forma ainda mais íntima que as outras. Não há nenhum uso mais prático e íntimo para a filosofia do que a manutenção da saúde do indivíduo dentro do seu próprio ser.
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Revisado por Matheus Pacini.
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[1] Não é possível ilustrar uma escolha real que não seja efetiva e independente, pois escolhas o são por definição. Separar completamente a volição do livre arbítrio seria descrever um individuo que escolhe x, mas ao mesmo tempo não teve escolha no ato de escolher – e cuja escolha foi completamente irrelevante para o resultado. Até mesmo a nossa vítima hipotética teve algum livre-arbítrio, pois escolheu não sair correndo, ou tentar lutar contra seu agressor, por exemplo.
[2] Apesar de ilustrar imperfeitamente a relação entre volição e livre arbítrio, o exemplo ilustra perfeitamente a relação entre ambos e o direito à liberdade. O livre arbítrio é parte essencial da natureza humana, e a coerção física é a única forma de invalidá-lo, essencialmente reduzindo o escopo da escolha individual para “lutar contra seu agressor e sofrer danos” ou “obedecer seu agressor e sofrer danos”.
[3] Dentre as estruturas físicos associados ao livre arbítrio, o córtex pré-frontal é digno de nota. Responsável por mediar processos como o planejamento de ações futuras, a integração coesa de memórias, e o controle de impulsos, o córtex pré-frontal só amadurece completamente entre os 25 e 30 anos de idade, e é sabidamente subdesenvolvido em crianças e adolescentes.
[4] Stephen Hicks dedica um episódio de sua série Open College, à vida sexual das pessoas sob o socialismo, mostrando como a eliminação do prazer é parte essencial do sistema político. O mesmo é válido para sociedades teocráticas, como a Europa medieval e o mundo muçulmano contemporâneo. Se algo tão íntimo e simples como o prazer sexual é extinto em certos sistemas políticos, o que dizer de objetivos concretos de longo prazo?
[5] A primazia da existência é a noção de que aquilo que existe é o que é, e independe de qualquer consciência. A consciência é a faculdade de perceber, não de criar a existência. A sua alternativa é a primazia da consciência, i.e. a crença de que alguma forma de consciência, seja ela divina, social ou individual, cria aquilo que percebemos.