Causalidade como autoevidente na observação
Em debate recente sobre causalidade com alguns objetivistas de longa data, não fui capaz de expressar a ideia de que a causalidade é autoevidente na observação, tanto na percepção quanto na introspecção. O conceito de causalidade identifica que uma entidade age de forma específica numa circunstância específica, e isso é constatado pela observação direta. Nós observamos o latido do cachorro, a madeira em chamas, a bola em movimento, a fala de uma criança, o miado de um gato, e o balançar da árvore; a mudança de opinião a respeito de uma ideia, a imagem mental de um lugar melhor, os atos de pensar e focar nossa própria consciência, etc. Todas essas ações particulares de entidades particulares são diretamente observáveis, logo a informação necessária para formular o conceito de “causalidade” nos é dada pela observação.
O que precisamos fazer após essas observações é abstrair a entidade de seu plano de fundo (focando apenas nela), e, então, criar uma nova abstração a partir dessa abstração de modo a alcançar conceitos referentes à ação. Os conceitos mais abrangentes para coisas específicas observadas são “identidade” e “entidade”, e a abstração mais abrangente que temos para ações particulares de entidades particulares é “causalidade”. O que conecta uma entidade à sua ação é o fato de um conceito de ação ser uma abstração a partir de uma abstração. A ação não é associada posteriormente à entidade – o conceito da ação deriva da própria abstração da entidade[1]. Dessa forma, a informação é provida pela observação, mas a abstração e a conceptualização devem ser feitas de forma volitiva, com base no que foi observado. É isso que quero dizer quando falo que a causalidade é autoevidente na observação.
Tal qual os axiomas, os dados puros são providos pela observação, enquanto a abstração deve ser feita de forma volicional. Como mencionei anteriormente, identidade e entidade designam “o que é”, enquanto a causalidade abstraída da identidade designa “como o que é, age”. Essas abstrações são feitas a partir das observações diretas de entidades particulares agindo de formas particulares.
Algumas pessoas parecem pensar que é preciso chegar ao aspecto particular da entidade que nos leva à conclusão de que ela age de certa forma em determinada circunstância, devido a um aspecto específico da natureza particular dessa entidade. Um exemplo seria que a água entra em ebulição a determinada temperatura por causa da quebra das ligações de hidrogênio, transformando a água (um líquido) em vapor d’água (um gás). Isso é verdade, porém é um conhecimento científico avançado – que pertence a uma ciência específica – de o porquê a água entra em ebulição, e é acessível apenas após o entendimento de que a água entra em ebulição por ser água.
É necessário perceber que uma entidade age da forma que age porque ela é o que é, antes de ser possível abstrair mais e chegar à causa específica dessa ação particular. O conhecimento filosófico de que uma entidade age por causa do que ela é precede o conhecimento científico. O que afirmo aqui é que observamos diretamente que uma entidade é água e que ela entra em ebulição; e que a ebulição (ação) é abstraída a partir da água (entidade), levando à ideia de causa e efeito – a água é a causa (algo a respeito da água) que a leva a agir dessa forma (entrar em ebulição) quando submetida a essas condições (calor suficiente).
Causalidade como corolário da Identidade
Em Objetivismo: A Filosofia de Ayn Rand, Dr. Peikoff afirma que a causalidade é um corolário do axioma da identidade. Acredito ser necessário ir um pouco mais a fundo, pois notei que muitos estudantes do Objetivismo não entendem exatamente a posição objetivista a respeito da causalidade. Todos os axiomas nos são dados pela percepção, ou seja, precisamos apenas observar a existência, e abstrair dessa observação, para chegar aos axiomas e seus corolários.
O axioma da identidade é obtido a partir da observação de que a existência é composta por existentes específicos, percebidos diretamente. Nós observamos uma rocha, um gato, um cão, um copo, uma árvore, uma nuvem, etc. Nenhuma conceptualização ou pensamento são necessários para observar essas coisas – tudo que é necessário é observar. Nesse sentido, os sentidos são axiomáticos – não necessitam de nenhum input conceitual, e não temos controle volitivo sob como percebemos as coisas com nossos sentidos. Dessa forma, são automáticos e considerados corretos[2], sem a necessidade de pequenas correções conceituais.
Ao observamos essas entidades ou existentes, formamos o conceito implícito de “identidade” ou de “isso é algo específico”. Todavia, também percebemos outra coisa imediatamente após perceber a identidade – essas coisas específicas agem de formas específicas – a pedra rola morro abaixo, o gato mia, o cão late, o vidro quebra quando cai, a árvore balança com o vento, as nuvens se movem no céu. Em outras palavras, o que percebemos é que vivemos em um universo dinâmico – que as entidades que observamos não são estáticas e imutáveis, mas que elas mudam, e que isso é um aspecto fundamental da existência. Dessa percepção vem a necessidade de um corolário para a identidade – um que conceptualiza o fato de que as coisas agem. Esse conceito é a “causalidade”, a abstração mais ampla que temos para o fato de que entidades são capazes de mudar ou agir. A causalidade é uma abstração a partir do conceito de “identidade” – uma abstração a partir de uma abstração. Observamos o cão (identidade) e que ele está latindo (causalidade) – latir é algo feito por um cão. O conceito de “causalidade” cobre qualquer ação ou mudança que uma entidade faz ou é capaz de fazer, no passado, no presente e no futuro. É a abstração mais ampla que temos para o dinamismo da existência.
Assim como os axiomas, seus corolários são validados por meio da observação direta – observamos entidades agindo; observamos entidades, seus atributos e suas ações. O que obtemos através da percepção direta não requer prova, já que é observado diretamente – nesse sentido, o próprio ato de observar é a prova. Que um cão late ou que um gato mia não são coisas que precisam ser provadas, pois são observadas diretamente. Dentro do entendimento objetivista da causalidade, a entidade que age é a causa, e a ação é o efeito – o cão é a causa do seu latir, o vidro (o que o vidro é) é a causa do seu despedaçar após uma queda.
Alguns estudantes do Objetivismo que possuem uma concepção anterior de causalidade geralmente têm dificuldades com isso. Normalmente porque acreditam que causalidade significa uma entidade interagindo com outra, resultando em uma ação ou mudança nessa segunda entidade. No entanto, o Objetivismo tem uma abordagem diferente. Uma coisa interagindo com outra é a causalidade eficiente de Aristóteles, e é a última concepção de causalidade aristotélica ainda em uso nos dias de hoje. Como vimos, porém, causalidade não se refere primariamente a interações, mas a entidades agindo, e isso é diretamente observado – a causalidade advém da identidade.
Alguns estudantes que utilizam a concepção de causalidade eficiente tem dificuldades com a ideia da volição do homem, buscando qual seria a sua causa. Procuram algo que interaja com o homem (algo interno ou externo a ele), levando à ação que direciona sua própria consciência. Todavia, não há necessidade de tal agente causal no entendimento objetivista de causalidade. Direcionar a própria mente é uma ação que podemos nos observar executando. Assim como podemos nos observar andando, podemos, através da introspecção, nos observar direcionando os nossos pensamentos. Assim como observamos o cão latindo, não há necessidade de prova para observar o fato que direcionamos a nossa própria consciência. Observar a si mesmo fazendo escolhas e direcionando a própria mente é prova suficiente, visto que toda observação é uma observação de um aspecto da existência. Assim, não há conflito entre o entendimento objetivista da causalidade e o livre-arbítrio do homem – direcionar a própria consciência é algo feito pelo ser humano. Em outras palavras, o indivíduo é a causa da ação de direcionar a própria consciência.
Em suma, o conceito de “identidade” diz “isso é”, enquanto o conceito de “causalidade” diz “isso age”. “Isso age” é uma proposição causal – isso (causa) age (efeito). Se reintegrarmos o nosso entendimento dessa formulação de causalidade, então causa e efeito nos são dados pela percepção na medida em que observamos uma entidade agindo ou mudando.
De forma resumida, uma entidade age da forma que age por que ela é o que ela é. Em outras palavras, uma entidade particular age de forma particular em uma circunstância particular. Quando se conceptualiza essa observação, chegamos ao conceito de causalidade.
Outra forma de formular o pensamento acima é em termos de axiomas. No Objetivismo, os axiomas e a causalidade como corolário podem ser escritos em uma frase:
Há algo de que estou consciente – e ele está fazendo alguma coisa.
Há (existência) algo (identidade) de que estou consciente (consciência) – e ele está fazendo alguma coisa (causalidade).
Ademais, o leitor pode ver uma aplicação importante do corolário da causalidade no link para meu ensaio sobre Indução, que mostra que a indução científica, para ser válida, precisa ser uma integração de causas.
Como bônus, você pode ler o meu breve ensaio sobre a causa final proposta por Aristóteles, e como ela se relaciona às várias entidades vivas: No Purpose in a Pea.
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Publicado originalmente em Applied Philosophy Online.
Traduzido por Bill Pedroso.
Revisado por Matheus Pacini.
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[1] Nota do Tradutor: De forma mais simples, não percebemos a ação e a entidade que age de forma separada, e depois associamos uma à outra. Somos capazes de perceber uma ação apenas ao abstrair uma entidade específica e sua ação da totalidade das nossas observações, e depois abstraindo a ação dessa entidade a partir dessa primeira abstração. Em termos mais concretos, percebemos o ato de latir a partir de duas abstrações: i) abstraímos um cachorro latindo da totalidade da nossa observação (o lugar no qual o cachorro late, os objetos em volta do cachorro, as nossas emoções no momento da observação etc.) ii) abstraímos o ato de latir a partir da primeira abstração, referente ao cachorro latindo.
[2] Nota do Tradutor: Ao se referir aos sentidos como “corretos”, o autor não quer dizer que os sentidos são perfeitos, e nos provêem automaticamente com toda informação sobre o que é percebido. Os sentidos são corretos justamente por serem automáticos, e portanto, diretamente análogos à realidade. A interpretação conceptual da informação provida pelos sentidos é que é passível de erro. Os sentidos de um paciente psiquiátrico que, alucinando, ouve uma voz que não existe, estão corretos – eles apenas reagem automaticamente a fatos da realidade. A interpretação do paciente sobre os seus sentidos – acreditar que essa voz provém de uma entidade real, e não de problemas no seu aparato cognitivo – é que está incorreta.