Quem é John Galt?

“Por que fazer esse tipo de perguntas? São inúteis. Qual é a profundeza do mar? Ou a altura do céu? Quem é John Galt?” Essa é a resposta de Paul Larkin à pergunta sincera de Rearden, “o que há de errado com o mundo?”. Larkin implica que não há razão para tentar responder tais questões. De fato, ao longo do romance, quando as pessoas perguntam “Quem é John Galt?”, a última coisa que esperam é uma resposta. Essa expressão enigmática é uma forma de “lavar as mãos” e alegar ignorância sobre questões que alguém é incapaz ou não está disposto a lidar. Dagny Taggart sente-se particularmente incomodada pela expressão, eventualmente buscando o John Galt por trás da retórica vazia. Com o passar do tempo, na mente de Dagny, John Galt transforma-se de figura de linguagem em figura (personagem) mítica, até ela identificá-lo como um homem real.

Começando pelo título, A revolta de Atlas está repleta de paralelos mitológicos. Para entender o significado desses paralelos, todavia, é importante identificar onde eles terminam. Alguns mitos louvam heróis que agem altruisticamente: Atlas leva o mundo em seus ombros, enquanto Prometeu sofre horrivelmente por dar o fogo à humanidade. Outros mitos focam na morte de heróis que usam seus dons de forma egoísta ou “antissocial”: a ambição de Faetonte quase queimou a Terra; as habilidades de Asclépio na medicina ameaçam o reinado de Hades. John Galt transcende os mitos porque (i) não age altruisticamente, (ii) não permite que a sociedade o puna por seu egoísmo e (iii) priva a sociedade de suas vítimas.

Em I See Satan Fall Like Lightning, René Girard argumenta que uma análise atenta da mitologia revela uma tendência universal ao uso da violência coletiva contra bodes expiatórios inocentes. Embora grande parte do trabalho de René Girard contraste com o Objetivismo de Ayn Rand, sua hipótese de que um mecanismo de bode expiatório subjaz a mitologia é ilustrada em A revolta de Atlas. O romance de Ayn Rand mostra tanto heróis míticos como heróis humanos sendo punidos e incompreendidos até que, por fim, Galt contraria a tendência. John Galt é a realização dos ideais heroicos que são ocultados, punidos e subvertidos na mitologia.

Embora muitos indivíduos pudessem rivalizar a habilidade de John Galt, ele se destaca por sua recusa absoluta a agir de forma altruísta. Homens como Galt sempre levaram o mundo em seus ombros, mas ele é o primeiro a se livrar conscientemente de tal fardo – não por desespero, mas por decisão deliberada e racional de não mais carregar os problemas dos outros. Ele pode, porém não quer mais carregar o peso do mundo como Atlas. Ele é como Atlas em habilidade, mas a comparação acaba quando se fala de altruísmo. Não importa que, no mito, os deuses obriguem Atlas a servir à sociedade: Galt, em contraste, não está apenas indisposto a se voluntariar ao altruísmo; ele é imune às ameaças de uma sociedade parasítica porque sabe que, sem a sua sanção, elas não têm poder algum.

John Galt não permite que outros lhe punam por agir de forma egoísta. Enquanto a sociedade mantém Dagny e Hank Rearden reféns em grande parte do livro, Galt não cede a essa sociedade nada que ela possa vir a usar contra ele. Como Aquiles (um herói não mencionado de forma explícita no livro, mas cujo heroísmo encontra sua perfeição em Galt), ele se recusa a continuar contribuindo sem justa compensação. Mas, ao contrário de Aquiles, cuja ligação com o falecido Pátroclo o faz desistir da greve, Galt protege ferozmente tudo que tem valor para ele – Dagny, seu gerador e, acima de tudo, sua mente – das garras dos homens que usariam tais coisas contra ele. Ele não é apenas indiferente às ameaças dos saqueadores, mas se recusa a permitir que eles imponham qualquer culpa sobre ele. Pelo contrário, ele é perfeitamente feliz com seu egoísmo. Ele desfruta prazeres corporais e luxos livre de culpa, sabendo que “o homem que dorme num colchão de molhas” é melhor do que o que “dorme numa cama de pregos”. Seja fumando um charuto, trabalhando ou fazendo amor, ele se regozija dos prazeres a que tem direito de usufruir. Tal postura contrasta totalmente com a inabilidade de James Taggart desfrutar verdadeiramente os prazeres da bebida, da amizade ou do amor, não merecendo nenhum deles. Nesse sentido, Galt é realização do ideal heroico latente no mito do Faetonte. John Galt mostra que a verdadeira história de Faetonte não é de punição por arrogância ou por felicidade exagerada. Em vez disso, a sua verdadeira história é contada na ópera de Richard Halley: a estória de um homem que se arrisca a fazer mais do que seus contrapartes e tem sucesso (69). Nessa recontagem do mito, a ambição é uma virtude, e não um vício; ao contrário da busca culpada e vulgar de Taggart por prazer, a felicidade da conquista não é influenciada pelo medo e culpa.

Tendo descoberto o caminho para a felicidade, John Galt prossegue privando a sociedade de suas vítimas. Como Francisco narra a Dagny, Galt foi o primeiro a entrar em greve “John Galt é o Prometeu que mudou de ideia. Depois de séculos sendo bicado por abutres por ter trazido para os homens o fogo dos deuses, ele quebrou as correntes que o prendiam e tomou de volta o fogo que tinha dado aos homens – até o dia em que os homens levem embora seus abutres.)”. Como Prometeu, Galt e seus semelhantes sempre presentearam a humanidade com conhecimento e tecnologia sofisticados necessários para vidas confortáveis. Realmente, pessoas como Galt amam descobrir e criar, e geralmente ficam felizes em compartilhar os frutos de seu trabalho através de comércio honesto. Elas não querem desistir: as dificuldades de Dagny e Hank mostram quão difícil é para eles entrar em greve. Mas Galt percebe que a retirada é a única forma de evitar ser vitimizado. Como visto anteriormente, quando ele priva seus inimigos de sua sanção e cooperação, eles ficam impotentes contra ele. Galt destaca a dependência absoluta dos saqueadores perante suas vítimas quando conta ao técnico como consertar o dispositivo de tortura: a sociedade parasítica não consegue nem torturar Galt sem a sua ajuda. Tendo recusado a ser uma vítima, Galt prossegue a privar a sociedade de suas outras vítimas – seus amigos produtores. Ao fazê-lo, ele percebe o ideal mostrado mas punido noutro mito: aquele de Asclépio, o médico que, de tão capacitado, conseguia até ressuscitar os mortos. Quando Hades reclamou que Asclépio estava privando-o de suas vítimas, Zeus executou Asclépio com um raio. Como Asclépio, Galt priva a sociedade parasítica de suas vítimas; ao contrário dele, Galt não sucumbe à punição por autoridades perversas. Embora greves tenham ocorrido antes, Galt é o primeiro a “fazer, deliberada e intencionalmente, aquilo que historicamente sempre foi feito por omissão silenciosa.” Ele concede significado moral à greve ao identificá-la pelo que ela é: vítimas retirando sua sanção à sociedade parasítica.

Assim como os antigos contadores de mitos retiravam algumas lições, embora limitadas ou obscuras, de seus heróis, mesmo os saqueadores retirem lições das atitudes de Galt. O Sr. Thompson vê a habilidade de Galt – de que ele “sabe o que fazer” – mas falha em compreender que Galt nem queria nem poderia corrigir os problemas da sociedade nos termos imaginados pelo Sr. Thompson, como um “ditador econômico”. Ele descreve a relação dos saqueadores com os produtores de forma bem honesta – “precisamos deles!” – mas se esquece do ponto mais importante, de que suas necessidades não impões nenhum dever sobre Galt. Wesley Mouch entende que Galt nunca faz acordos, mas sua compreensão de tal fato – Galt é “um homem não aberto a negociar” — encobre ironicamente o fato de que um negócio verdadeiro, a livre troca de valor por valor, é a única coisa que homens como Galt estão dispostos a fazer. James Taggart finalmente percebe que “era a grandeza de Galt que ele queria torturar e destruir,” mas como ele escolhe não “aceitar a realidade” – para exercitar a escolha fundamental de usar sua própria razão – a realização corolária de sua própria insignificância o arruína.

Ao contrário dos heróis gregos, Galt não é heroico devido a qualquer superioridade inata sobre seus compatriotas. Mas tampouco ele é um qualquer, cuja mediocridade o torna identificável pelas massas. O que o torna heroico não é a sua natureza humana, a qual é compartilhada por todos, mas sim a sua virtude: o fato de que ele vive de acordo com sua natureza. De fato, todo mundo pode relacionar-se à figura de Galt no que tange à sua natureza humana.

Como o carvalho que Eddie Willers recordava de sua infância – “uma coisa que nada nem ninguém podia alterar ou ameaçar” – os heróis do mito podem ser profundamente inspiradores. Certamente, quando eles se rendem às injustas demandas do “bem comum”, é tão devastador como quando o raio revela o seu interior oco a Eddie. Em John Galt, todavia, a imagem heroica defendida no mito – a imagem “do homem como deus” – é respaldada em substância. Após ouvir por anos a expressão “Quem é John Galt” repetida como um sinal de derrota – o “vácuo” mental que Galt condena repetidamente em seu discurso no rádio – Dagny finalmente apreende a resposta. Quando ela encontra o homem cuja forma de vida é a resposta para aquela famosa expressão, ela imediatamente se sente “era assim que os homens deveriam ser e encarar suas existências – e tudo mais que havia, todos os anos de horror e luta, não passava de uma piada de mau gosto”.

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Publicado originalmente em Ayn Rand_Atlas Shrugged Contest_2015.

Traduzido por Matheus Pacini.

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