Quando jornalistas tribais tentam ‘cancelar’ Ayn Rand – Parte II
O artigo da New Republic sobre Ayn Rand, que vimos na Parte 1, não se destacou pelo que disse sobre ela, mas pela forma como transmitiu sua mensagem. O artigo priorizou um preconceito tribal, negligenciando os fatos e a lógica. Essa mesma mentalidade aparece ainda mais explicitamente no artigo de Amanda Marcotte na revista Salon, “Os direitistas finalmente conseguiram um presidente igual aos heróis de Ayn Rand — e é esse cara”.
Novamente, preciso enfatizar que meu objetivo não é fazer você mudar de opinião sobre Rand e suas ideias, nem corrigir os muitos erros e distorções nesses artigos (embora possa apontar alguns deles ao longo do texto). Na verdade, a ideia é explicar como os dois artigos não têm o menor interesse em convencer o leitor inteligente, mas sim corroborar uma narrativa predefinida sobre Rand. São piores do que simples difamação, pois sua mentalidade tribal representa o abandono da persuasão racional como instrumento do debate intelectual.
O argumento de Marcotte fica claro já na linha fina: “Os conservadores finalmente têm um líder que segue a filosofia egoísta de Ayn Rand, e ele é um palhaço constrangedor”, sendo que o palhaço é Donald Trump. Mas independentemente do que você pense sobre Rand ou Trump, essa afirmação está longe de ser óbvia e exige uma argumentação real. O artigo de Marcotte, todavia, não oferece nada disso. Foi escrito para um público que já compartilha parcial ou totalmente dos preconceitos da autora.
Desconsiderando a verdadeira visão de Rand
O que é necessário para defender que Trump é a encarnação dos ideais morais de Rand? No mínimo, você precisa entender a visão de Rand, por que ela a defende, e como sua visão radical se relaciona e contrasta moralmente com outras. Certa vez, Rand resumiu seu sistema de ideias dizendo que “minha filosofia, em essência, é o conceito de Homem como um ser heroico, tendo a felicidade como o propósito moral da sua vida, a conquista produtiva como sua mais nobre atividade, e a razão como seu único referencial.” Parte do que é radical na teoria moral de Rand é a defesa de uma moralidade individualista não-predatória.
Cada indivíduo, na opinião dela, é responsável por alcançar sua própria felicidade através de seu próprio esforço e do uso de sua própria mente — sem sacrificar ninguém por ninguém. Ou seja, um egoísta racional não renuncia seus valores e objetivos pelos outros, nem sacrifica os outros em seu favor. Na opinião de Rand, o egoísta é uma pessoa guiada pela razão, que busca conquistas criativas e constrói relações mutuamente benéficas. Não tem nada a ver com a ideia convencional de um bruto cheio de caprichos que mente, trapaceia e rouba, pisoteando quem estiver em seu caminho para conseguir o que quer.
Depois desse esclarecimento, deveria ficar evidente que o que Rand quer dizer com “egoísmo” difere muito do entendimento da maioria das pessoas. Concorde ou não com sua concepção, o fato é que Rand diz algo único e novo; dá trabalho entender e pensar como sua moralidade se parece (ou não) na prática.
Em contraste, Marcotte não consegue imaginar um ideal moral que discorde mais drasticamente das visões convencionais. Aparentemente, é impossível ou negligenciável para ela a possibilidade de um individualista não-predatório. Em vez disso, Marcotte busca juntar migalhas para afirmar seu preconceito contra Rand. O objetivo é retratá-la como um monstro cujo ideal moral, na prática, é um monstro como Trump.
Uma narrativa orientada pelo preconceito
Para tal, Marcotte abre o artigo com uma afirmação perturbadora. Diz que Rand teve uma “paixonite adolescente” pelo assassino William Hickman, que ele teria inspirado um personagem de suas primeiras histórias e que, mais tarde, ela “reformulou sua ideia do herói individualista e desdenhoso” em A nascente e A revolta de Atlas.
Já que as opiniões maduras de Rand rejeitam qualquer forma de predação, o interesse juvenil dela em Hickman é tão estranho que, se você quiser mencioná-lo, deve especular com cuidado. Surge uma infinidade de perguntas: qual era a natureza da curiosidade de Rand sobre ele? Onde ela falou sobre ele? Quando? Como isso se relaciona com sua defesa madura e ética dos direitos individuais?
Nenhuma dessas perguntas interessa a Marcotte, que distorce o episódio para difamar Rand. Parte de sua estratégia de difamação é omitir fatos importantes. Indicarei apenas cinco.
- É uma distorção grosseira chamar a reação de Rand de “paixonite adolescente”, o que pode ser verificado nas próprias anotações dela sobre o assunto em seus diários pessoais, disponíveis na obra Journals of Ayn Rand, publicada depois de sua morte. Por décadas, ela escreveu abundantemente em seus diários sobre ideias de personagens, peças, histórias, romances; para “pensar no papel” e compreender suas ideias; para destilar lições e conclusões de suas experiências com pessoas e eventos.
- Ela fez esses registros nos diários para uma plateia de uma só pessoa – ela mesma. Neles, ela formava, revisava, mudava e esclarecia continuamente suas opiniões. Não foram escritos com a intenção de serem publicados, logo, é ridículo tratá-los como afirmações definitivas de seus pontos de vista.
- Marcotte aponta falaciosamente que “os fãs são rápidos em rebater” que Rand “não defendia o assassinato”, mas omite o fato de que, em suas próprias notas, Rand repudia o crime abominável de Hickman.
- É relevante, para entender o interesse de Rand em Hickman, o fato de que ela era uma escritora de ficção, e estava esboçando ideias para uma história. Ela tinha curiosidade sobre o caráter e a psicologia dos indivíduos, sobre as ideias e atitudes que os motivavam, no interesse de retratar a motivação de personagens fictícios. Essa é uma questão central para escrever ficção, que Rand (na época, com 23 anos) estava se dedicando a dominar.
- É impossível ler as anotações de Rand sobre Hickman e a história que ela estava planejando, sem perceber a influência do filósofo Friedrich Nietzsche sobre a jovem escritora. Essa influência fica clara na premissa da história e no personagem principal que ela imaginou (Rand usa conceitos emprestados de Nietzsche e o cita em suas anotações). Ela não levou adiante essa história e decidiu abandoná-la. Por quê? O “projeto estava muito distante de suas premissas mais profundas”, escreve David Harriman, editor do Journals of Ayn Rand, que aponta (junto com outros estudiosos) que Rand por fim descartou as ideias filosóficas de Nietzsche, repudiando-as explicitamente.
Marcotte negligencia esses fatos para afirmar um preconceito sobre Rand. O próximo passo nesse processo é ligar essa Rand fictícia ao conservadorismo e ao presidente Trump.
Enfiando Rand no movimento “reacionário”
Marcotte lança mão do clichê de que Rand é a “espinha dorsal do conservadorismo moderno”. Esta metáfora obscurece uma realidade complicada, que mencionei na Parte 1, sobre a natureza da influência de Rand sobre conservadores e direitistas. Além disso, há dezenas de exemplos que refutam essa ideia. O objetivo do artigo de Marcotte, porém, não é convencer, mas reforçar preconceitos, e seu público-alvo já está pronto para sentir aversão ao ler o termo “conservadorismo”. É esse contexto emocional que o artigo de Marcotte pretende ativar.
A ligação imprópria que a autora faz entre Rand e o conservadorismo reflete um propósito definido. Ela afirma que a filosofia de Rand serve como uma “racionalização pseudointelectual”, glorificada por diversos republicanos, para um “movimento reacionário que surgiu para rejeitar os movimentos feministas e antirracistas do século XX”. Uma pista aqui é a palavra “reacionário”.
Mesmo que você rejeite o conservadorismo (como eu), a forma como Marcotte a caracteriza transparece uma oposição tribal, e não uma oposição fundamentada. Existiam conservadores racistas e misóginos? Sim, e ainda existem. Mas a afirmação generalizante no artigo é que os conservadores eram “reacionários”, opondo-se teimosamente ao progresso. Não era possível que tivessem qualquer base legítima para suas preocupações a respeito do crescimento das regulamentações governamentais ou do custo de novos programas de assistência social. Quer você compartilhe essas preocupações ou não, alguns intelectuais conservadores expressaram objeções muito racionais nesses campos. Para Marcotte e sua plateia, todavia, esses forasteiros, membros de uma tribo rival, só podem ser errados e maus. Seguindo essa mentalidade, é impossível imaginar que alguém possa ter uma visão diferente da dela baseada em argumentos razoáveis.
Ao vincular Rand ao conservadorismo, Marcotte não tem interesse no fato — que contradiz sua narrativa — de que Rand escreveu longamente acerca de sua oposição filosófica ao movimento conservador (veja, por exemplo, o ensaio “Conservatism: An Obituary”. Além disso, em nenhuma parte do artigo você vai ficar sabendo que Rand era uma oponente feroz do racismo. Nem saberá de sua oposição distinta e profunda à ideia convencional de que o lugar da mulher é em casa, ou que a mulher é, de alguma forma, intelectual ou moralmente inferior ao homem. Há duas mulheres entre os heróis ficcionais de Rand – Kira Argounova (em We the Living) e Dagny Taggart (em A revolta de Atlas) – que rompem com papéis estereotípicos para mulheres. Muito antes de ser concebível em nossa cultura, Dagny Taggart tinha certeza de que poderia dirigir uma grande rede ferroviária, e fez isso extraordinariamente. Só depois ela pensou que alguém poderia se opor. Kira Argounova, fascinada por prédios e pontes, queria ser engenheira, e tinha uma motivação indomável para alcançar seus objetivos.
A autora precisa ignorar tudo isso (e mais um pouco) para fazer as ideias de Rand caberem na mesma categoria da direita “reacionária” – a tribo política rival que Marcotte e muitos de seus leitores odeiam. Fazer isso, a despeito dos fatos, é parte da tentativa de apresentar Donald Trump como a personificação completa e perfeita da teoria moral do egoísmo de Rand. Ligar Trump e Rand serve para difamar um com a suposta maldade do outro.
Trump incorpora os ideais de Rand?
Qual é o argumento para essa ligação? Não há argumento, nem qualquer tentativa de se envolver com objeções óbvias ou contra-argumentos – o que é bem revelador. O que Marcotte transmite é um desdém pela simples possibilidade de que alguém possa ter uma visão diferente sobre o assunto. Independentemente de como você avalie o presidente Trump, a afirmação de que ele é a personificação das ideias morais de Ayn Rand deveria fazer qualquer pessoa que tenha uma compreensão básica de sua perspectiva parar para pensar.
O que salta das páginas de A revolta de Atlas não é a glamourização de todos os empresários, mas que existe uma linha divisória moral muito clara. De um lado estão líderes empresariais produtivos, que usam suas mentes para criar valor real e os comercializam por vantagens mútuas. Esses produtores são os heróis empresariais que ela valoriza por suas conquistas.
Do outro lado dessa linha moral estão os empresários que contam com influência política para atrapalhar seus concorrentes, extorquem proteções e assistência corporativa e mentem, trapaceiam e exploram os outros em sua busca por riqueza imerecida. No mundo atual, vilões assim personificam o flagelo do “compadrio”.
Com base só nesse esboço de um aspecto da visão de Rand, Donald Trump já fica longe de ser uma manifestação óbvia de sua teoria moral. A evidência, em minha opinião, é que suas ações e declarações contradizem a virtude do egoísmo: a carreira empresarial de Trump, por exemplo, sempre se baseou no tráfico de influência; como presidente, alimenta essa dinâmica do “compadrio”. Meu colega Ben Bayer argumentou, de forma convincente, que Trump nega o entendimento de Rand sobre o egoísmo; outros, ainda, pontuaram as formas como Trump se parece mais como um vilão Ayn Rand.
Mas meu objetivo aqui não é lhe convencer, leitor. Em vez disso, é indicar que seria preciso construir um argumento para qualquer afirmação de que Trump incorpora o conceito de egoísmo de Rand, levando a sério contrapontos e objeções óbvias – se seu objetivo é convencer, é claro.
É exatamente isso que Marcotte despreza. Uso a palavra desprezo porque qualquer revista respeitável esperaria que seus colunistas pesquisassem no Google o tema que estão propondo, para ver se alguém já escreveu sobre ele. Tente você mesmo, vai encontrar pelo menos dois artigos do meu colega Onkar Ghate sobre o tema. Um avalia o fenômeno Trump em geral, o outro pondera o que Rand pensaria sobre ele. Você também pode encontrar um artigo meu que fala sobre como a política externa de Trump bate de frente com a filosofia de Rand. E, de qualquer forma, nós do ARI não somos os únicos a expressar nossa perspectiva sobre a questão. Marcotte, no entanto, não mostra qualquer interesse em se envolver com visões contrastantes. Fazer isso implicaria que pode haver uma opinião válida diferente de seu preconceito.
O desprezo de Marcotte pela discussão, pela evidência, pela própria inteligência de seus leitores, fica flagrante no que ela considera fonte confiável sobre as ideias de Rand. Quem Marcotte procura, quando quer uma fonte externa confiável? Um dos vários estudiosos reconhecidos e publicados das ideias de Rand? Não. Um especialista no campo da ética, que tem algum conhecimento sobre como as ideias de Rand se relacionam com o cenário intelectual? Não.
Quem, então? Marcotte procura um cara com um blog. Ela cita alguém que postava em blogs enquanto lia A revolta de Atlas. Fingir que esse blog é uma “fonte” confiável é negligência jornalística. Se um jornalista escrevesse, digamos, sobre O capital, de Marx, ou A origem das espécies, de Darwin — duas obras influentes que desafiaram o pensamento convencional — e apresentasse um blogueiro aleatório sem nenhuma experiência evidente como autoridade no assunto, seria risível.
Uma ânsia por “cancelar” Rand
O que o artigo de Marcotte exibe – de forma ainda mais gritante que o texto de Sammon na New Republic – é uma mentalidade tribalista.
A mente tribal é insular, e ávida por continuar assim. Pessoas de fora são vistas com suspeita e, frequentemente, com hostilidade. A mera possibilidade de que alguém de fora possa ter opiniões e crenças diferentes e sustentá-las por bons motivos é simplesmente bizarra. Muito disso é porque o próprio tribalista se aferrou a suas crenças e devoções – não pela consideração ponderada das evidências e de acordo com a lógica, mas pela conformidade com o grupo. Só existe o que a própria tribo dele acredita. Todo o resto deve estar errado. É inaceitável, digno apenas de desprezo e desdem.
Observamos duas consequências importantes da mentalidade tribalista revelada no artigo de Marcotte sobre Rand. Uma é o desprezo da autora por fatos e lógica. O tribalista não vê necessidade de convencer os outros de suas opiniões: para que fazer um esforço de tentar se comunicar com alguém de fora que, em virtude de ser de fora da tribo, deve estar errado? Além disso, se ele mesmo não precisou de provas ou lógica para engolir as crenças e devoções de seu grupo, por que outra pessoa precisaria?
A segunda é que o tribalista sente uma forte necessidade de afirmar e reforçar – para si mesmo e seus companheiros de tribo – que seu jeito e suas crenças estão certos, e que os de fora estão errados, se não forem maus também.
Uma leitura crítica dos artigos de Marcotte e Sammon deixa claro que um dos grandes objetivos, se não o principal, é motivar certos leitores. Ativá-los emocionalmente, não cognitivamente. Para esses leitores, a lição em comum é que, apesar das opiniões únicas de Rand, ela pode ser ligada à odiada tribo de direita/conservadora.
Esses artigos oferecem o consolo de que, apesar da duradoura relevância e da influência cultural permanente de Rand, ela não é digna de atenção séria. Que o movimento objetivista está despencando. Que Rand, finalmente, está “cancelada”.
O equivalente progressista a um comício de Trump
Donald Trump faz a seus inimigos, em discursos e comícios para seus partidários, o mesmo que os artigos de Marcotte e Sammon fazem a Rand na imprensa. A abordagem é a mesma. O presidente consegue enfeitiçar a pateia com insinuações, pseudofatos e afirmações arbitrárias justamente porque eles reforçam uma conclusão à qual muitos já chegaram: Trump está certo e está sendo vitimizado por seus oponentes da tribo inimiga.
Não há nenhuma tentativa de convencer quem está na arquibancada. As conclusões, tão simpáticas à tribo, já são conhecidas. Os fatos – ou melhor, indiretas, insinuações, alusões e alegações arbitrárias – são evocadas, aperfeiçoadas, retiradas de contexto, desvirtuadas e distorcidas para afirmar o preconceito comum da tribo contra seus inimigos. Há uma paridade subjacente entre um comício de Trump e os artigos de Marcotte e Sammon: eles colocam a narrativa tribal acima dos fatos e da lógica.
Há perguntas fascinantes a serem exploradas sobre o impacto das ideias de Ayn Rand e sua influência cultural. Essas questões, no entanto, são deixadas de lado nos artigos de Marcotte e Sammon. O ímpeto para “cancelar” Rand aos olhos de seu público tribal – que não é original a esses artigos – é seu próprio tipo de indicador cultural.