Por que ser egoísta não significa ser nocivo e viver no curto prazo?

Definir os termos que usamos é fundamental para podermos pensar e comunicar nossos pensamentos de forma clara.

Imagine que um amigo lhe diga que define “carpinteiro” como “alguém que molda a madeira a tiros”. Você, desconcertado, pergunta a ele que palavra utiliza para descrever alguém que molda a madeira com uma serra, um torno ou uma lixa. Ele responde que não tem nenhuma. No máximo, apresenta alguns sinônimos para “carpinteiro”, porém todos eles implicam dar forma à madeira a tiros.

Espero que você entenda que o problema dessa situação hipotética não é apenas que você e seu amigo utilizam o termo de forma diferente: dar tiros na madeira é uma forma terrivelmente ruim de transformá-la em algo útil. Se seus únicos conceitos sobre carpintaria incluem o uso de uma arma de fogo, você não será capaz de falar sobre outros meios mais práticos.

Ayn Rand dizia que o uso popular do termo “egoísmo” se parece muito com a forma como seu amigo hipotético usa o conceito “carpinteiro”. Em sua essência, “egoísmo” significa perseguir seus próprios interesses e bem-estar. Hoje, seu uso traz consigo um segundo significado: “perseguir seu próprio interesse/bem-estar levando em conta apenas o curto prazo, e prejudicando os outros”. Na cultura contemporânea, os sinônimos mais próximos de “egoísmo”, como “autointeresse”, transmitem as mesmas conotações de impulsividade e prejuízo a terceiros, logo, não são muito diferentes.

Ayn Rand rejeitava a ideia de que ser “curto prazista” e prejudicial aos outros é um fator inerente à busca dos próprios interesses e bem-estar de um indivíduo. Na verdade, ela reconhecia que perseguir genuinamente seus próprios interesses implica ser exatamente o oposto de “impulsivo e nocivo”. A busca genuína dos interesses de um indivíduo requer um planejamento de longo prazo, e prejudicar os outros não contribui para seu bem-estar. Tentar perseguir o seu próprio interesse mirando apenas o curto prazo, prejudicando os outros, é como tentar construir uma linda cadeira de madeira usando uma pistola: totalmente condenado a falhar.

A razão fundamental porque os interesses genuínos de longo prazo de diferentes indivíduos não entram em conflito é que os valores que servem ao autointeresse humano são produzidos ou criados pelo pensamento racional. Esses não são escassos, exigindo que os indivíduos os obtenham tomando-os uns dos outros à força; o bem-estar humano não é um jogo de soma zero. (Para mais sobre a harmonia entre interesses racionais, recomendo o ensaio “Os conflitos de interesse entre os homens”, publicado no livro A virtude do egoísmo.

Podemos ver facilmente que bens materiais valiosos são criados observando a história econômica dos Estados Unidos: a quantidade de riqueza (bens materiais e serviços disponíveis) nos EUA hoje é claramente maior do que a riqueza do mundo inteiro a 10.000 anos atrás. A maior parte da tecnologia que dá origem a essa riqueza não existia nem mesmo 500 anos atrás.

Podemos ver que a riqueza é criada através do pensamento racional observando diversos exemplos, como uma ferramenta mecânica (inventada por meio do pensamento racional) que possibilita dar uma forma útil ao metal cinco vezes mais rápido do que seria possível sem ela; uma linha de produção (também inventada por meio do pensamento racional) que reduz o tempo e esforço necessários para construir um automóvel em 85%, etc. (Para mais sobre o assunto, ver “Wealth is Created By Action Based on Rational Thought“.)

Em geral, quando pessoas trocam voluntariamente valores que criaram por valores criados pelos outros, ambas estão perseguindo seu interesse próprio, e nenhuma delas é prejudicada. Cada pessoa valoriza mais o que está recebendo do que está dando em troca. A troca é um meio prático de perseguir o próprio interesse, que não é nem impulsivo, nem prejudicial aos outros. Ainda assim, os termos que a maioria das pessoas utiliza para falar da busca do autointeresse tem conotações negativas. Então, assim como no caso hipotético de seu amigo e o “carpinteiro-que-não-usa-armas”, os significados dos termos comumente utilizados para se referir à busca pelo interesse próprio impedem que as pessoas pensem com clareza sobre os motivos e os métodos dos comerciantes que trocam valor por valor.

Uma falsa dicotomia

Em teoria, altruísmo e egoísmo são antônimos. Mas o antônimo objetivo de “altruísmo” (abrir mão dos próprios interesses) é “perseguir os próprios interesses”, e não “buscar o interesse próprio pelo meio pouco prático de prejudicar os outros” ou “fazer qualquer coisa por impulso, sem considerar os impactos de suas ações sobre seus interesses de longo prazo”.

A suposta dicotomia aparente entre “egoísmo” e altruísmo é falsa e desastrosa. Egoísmo, em seu significado popular, é perseguir os próprios interesses de forma prejudicial aos outros, e é representado por criminosos como Bernie Madoff. No entanto, Bernie Madoff diz que sua vida era um inferno quando mentia e enganava as pessoas, e que está mais feliz na cadeia. Ele travou uma batalha fadada à derrota, contra a realidade de suas ações, e era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, acabasse em uma posição pior do que estaria se tivesse a produção honesta como seu curso de ação. (Para mais sobre o assunto, ver: Bernie Madoff: Not Rationally Selfish, But Self-Destructive.)

O altruísmo, enquanto o oposto aparente de egoísmo, significa não perseguir os próprios interesses, mas sacrificá-los em prol dos outros. Madre Teresa é considerada a epítome do altruísmo, por ter dedicado a maior parte de sua vida aos pobres e doentes na Índia, sem nenhuma expectativa de recompensa ou compensação terrena. Isso a fez tremendamente infeliz, como mostram as suas cartas pessoais.

Não há um lugar apropriado nessa dicotomia para pessoas como Cornelius Vanderbilt, Andrew Carnegie, J.P. Morgan, Steve Jobs ou, na verdade, para muitos americanos honestos e decentes que constroem vidas melhores para si próprios através do trabalho produtivo. Todas essas pessoas perseguem seu autointeresse via produtividade e troca – isto é, por meio de trabalho honesto e relações voluntárias e mutuamente benéficas com os outros. Não prejudicam outras pessoas nesse processo, beneficiando-as direta ou indiretamente. (Note que os grandes industrialistas do século XIX, entre eles, Andrew Carnegie, não machucaram ninguém para criar seus negócios, mas sim beneficiaram milhares de pessoas: criaram oportunidades de emprego que não existiam antes – das quais os seus empregados optaram voluntariamente por se beneficiar – e reduziram imensamente o preço de commodities como o aço e o querosene, possibilitando a construção de edifícios de aço, e o aquecimento e a iluminação de milhares de lares – algo que, caso contrário, seria caro demais. Esses chefes da indústria jamais mereceram o epíteto de “barões-ladrões”[1], visto que não roubaram nada de ninguém).

Então, para pensar com clareza sobre o que motiva o comportamento de muitas pessoas na maior parte do tempo, devemos separar conceitualmente o autointeresse, enquanto objetivo, de noções sobre como ele é perseguido. Isso é especialmente verdade quando esses “meios” são desnecessariamente complicados, e não formas reais e diretas para alcançar o bem-estar.. O meio real e prático para alcançar o interesse próprio, segundo Ayn Rand, é a racionalidade, que não envolve violar os direitos de terceiros, ou desconsiderá-los por completo. Pelo contrário, ser racional significa reconhecer os valores que os outros podem oferecer, desde que sejam honestos Isso envolve viver pelas virtudes que Ayn Rand identificou: honestidade, integridade, independência, produtividade, justiça e orgulho.

Esse é o verdadeiro significado de egoísmo: a busca racional de coisas que realmente contribuem para conquistar e manter o bem-estar do indivíduo: tanto de seu corpo como de sua mente no longo prazo.

Autointeresse, materialismo e a “dicotomia corpo-mente”

Podemos tratar de um ou mais conceitos que denotam um entendimento pobre do que constitui o interesse das pessoas[2]. Uma palavra que denota um tipo de visão empobrecida dos interesses humanos é “materialismo” – a ideia de que tudo que importa  para as pessoas (e sobre as pessoas) são suas circunstâncias materiais, e não o âmbito mental, que incluiria seus objetivos, motivações, valores, virtudes e vícios. Essa é uma ideia que Ayn Rand não adotava, mas que muitas pessoas adotam hoje em dia, em especial, na esquerda política.

Mesmo negando, esquerdistas que defendem a redistribuição de renda por meio de impostos e programas de bem-estar social com base em necessidades materiais são materialistas. Vêem o mundo pelo filtro da dicotomia “ricos versus pobres”, e querem “ajudar” os pobres punindo os ricos. O status mental e moral das pessoas pobres não importa: não importa se a pessoa pobre está pobre por causa de um acidente, de uma atitude irresponsável, do autoengano ou de uma série de escolhas imorais. Tudo que é preciso para conceder a alguém o direito sobre o dinheiro de outra pessoa é a sua necessidade material. Que os programas de bem-estar social ajudam temporariamente o indivíduo no âmbito material é a única “prova” necessária para justificar que essa ajuda é de seu interesse.

De forma semelhante, o meio pelo qual uma pessoa rica obteve seu dinheiro não importa para o estatista que defende o bem-estar social: produtividade honesta, trocas mutuamente benéficas e exercício de virtudes racionais são equivalentes à desonestidade, fraude, corrupção governamental ou escravidão. O simples fato material de que o indivíduo é rico implica seu dever para com os mais pobres que ele. Já que ter dinheiro frente à necessidade material dos pobres é ser “egoísta”, ser rico é mal e destrutivo segundo o entendimento comum do termo “egoísmo”. Por essa perspectiva, o governo só está “retificando uma desigualdade material” ao forçar o rico a repassar seu dinheiro ao pobre, independentemente da origem do dinheiro. (Quando o dinheiro foi ganho honestamente, um não-materialista chamaria apropriadamente essa ação governamental de “roubo legalizado”).

Note que muito da visão esquerdista de “ricos versus pobres” deriva do conflito de classes de Karl Marx, cuja natureza era explicitamente materialista. Também vale notar que o materialismo esquerdista é um lado da moeda falsificada que Rand denominou “dicotomia corpo-mente”. O outro lado dessa moeda é a direita religiosa, que, mesmo sem querer, dá aval à redistribuição de renda por parte do governo. (Ver “Dicotomia Corpo-Mente” no Léxico para mais detalhes.)

Uma falsa implicação de causalidade

Portanto, é ilegítimo adotar um conceito de autointeresse que implica materialismo e/ou prejuízo a terceiros. Mas, e se tomarmos o cuidado de distinguir entre “autointeresse” – que não carrega nenhuma conotação de materialismo – de “egoísmo” – definido como “autointeresse perseguido no curto prazo ou de forma materialista”? É legítimo utilizar “egoísmo” com esse significado?

Não, não é. O uso de qualquer termo que mescle “autointeressado” e “materialista” implica necessariamente uma relação lógica ou causal entre eles. (Isso é especialmente verdade se você não tem um termo que combine altruísta e materialista). Essa relação não existe. As pessoas podem ser materialistas e tentar agir no seu próprio interesse, ou podem ser materialistas e tentar se sacrificar pelos outros (como muitos na esquerda política). O materialismo de uma pessoa é totalmente separado de sua inclinação para o egoísmo ou o altruísmo. Por conta disso, materialismo deve permanecer um termo separado de qualquer significado de “autointeresse”.

Conclusão

Quando uma criança é “egoísta”, recusando-se a reconhecer os interesses alheios, ou que tratar os outros com respeito está em seu interesse, o problema não é o fato de ela estar sendo autointeressada quando deveria estar sendo altruísta. O problema é que ela está sendo (muitas vezes, ingenuamente) materialista, adotando um foco de curto prazo na busca por seus interesses. As crianças frequentemente não tem experiência e conhecimento suficientes sobre o mundo para escolher o que está, de fato, em seu interesse de longo prazo. Todos devem aprender como ser propriamente egoístas: não é algo automático. De fato, muitas pessoas jamais aprendem a sê-lo, passando anos destruindo a si próprias lentamente, por irresponsabilidade ou emocionalismo.

Uma das grandes contribuições de Ayn Rand ao pensamento humano é o fato de ter desmascarado a falsa dicotomia de um altruísmo autodestrutivo e um “egoísmo” destrutivo-ao-outro (e, na verdade, também autodestrutivo). Ela mostrou que há outra forma de viver a vida que não envolve a destruição de ninguém – uma forma de viver que possibilita que todos os indivíduos bons prosperem, sem vítimas.

Esse modo de viver pode ser encontrado em seus romances, como A revolta de Atlas, e em suas obras de não-ficção, como A Virtude do Egoísmo.

[Editado: 2-7-17: seção adicionada “Uma Falsa Implicação de Causalidade.”]

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Publicado originalmente em Objectivism in Depth.

Traduzido por Bill Pedroso.

Revisado por Matheus Pacini.

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[1] Nota do Tradutor: Nos Estados Unidos, é comum se referir aos grandes industrialistas do século XIX, de forma pejorativa, por “robber barons”, ou “barões-ladrões”. O termo foi cunhado por Matthew Josephson (1899 – 1978), jornalista progressita, visando associá-los de forma injusta aos senhores feudais que roubavam comerciantes na Europa medieval. Curiosamente, homens como Andrew Carnegie e Cornelius Vanderbilt tiveram justamente a sina dos comerciantes, e não dos barões, na analogia de Josephson, pois tiveram suas empresas divididas e regulamentadas por políticos do movimento progressista através da Lei Sherman Antitruste de 1890.

[2] Nota do Tradutor: Um outro conceito que serve bem esse propósito é “narcisismo”. Narciso é uma figura da mitologia grega que se encanta tanto com sua própria beleza que, por não conseguir parar de olhar para seu próprio reflexo, morre por inanição. A essência de Narciso ilustra bem o que muitos querem dizer quando usam o termo “egoísta” de forma pejorativa: a ação irracional motivada por uma imagem irreal de si mesmo.

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