Muitos fãs de Ayn Rand tiveram a seguinte experiência: eles leram A nascente, A revolta de Atlas e alguns (ou vários) ensaios filosóficos de Rand, e a perspectiva filosófica dela lhes parece clara, convincente e, até mesmo, obviamente correta.
Essa aparente obviedade leva muitos leitores que buscam entender o Objetivismo a ignorar ou descartar outros filósofos e sistemas filosóficos, exceto, talvez, por alguns pensadores que Rand menciona favoravelmente.
Falando como alguém que ensina filosofia no Objectivist Academic Center (OAC) do Ayn Rand Institute, penso que essa atitude, embora compreensível, esteja equivocada.
Permitam-me explicar.
Objetivismo como uma perspectiva de um debate de milênios
Numa nota sem data, publicada em seu primeiro periódico filosófico, Rand escreveu:
Essas são as primeiras reflexões de uma filósofa amadora: contestar o que aprendi e, então, analisar quanto disso já foi dito, se tenho algo novo a dizer ou algo velho a dizer melhor do que já foi dito.[1]
Rand sabia que estava entrando em debates acerca de questões que outros pensadores tinham refletido, e para as quais tinham oferecido respostas desde, pelo menos, a Grécia Antiga – questões sobre a natureza do mundo, a natureza humana, o que é apropriado e vale ser perseguido na vida.
Como filosofia, o Objetivismo é a perspectiva de Rand com respeito às grandes questões no cerne do debate. Se não se conhece e não se lida com o que os outros grandes pensadores naquele debate estão dizendo, como respondem as questões da filosofia e como defendem a verdade de suas posições, então, não se está preparado para entender e avaliar a perspectiva de Rand naquele debate.
Por exemplo, considere essa passagem do ensaio What is capitalism? (O que é capitalismo?) de Rand:
Basicamente, existem três escolas de pensamento sobre a natureza do bem: a intrínseca, a subjetiva e a objetiva. A teoria intrínseca (Intrinsicismo) defende que o bem é inerente a certas coisas ou ações como tais, não importando seu contexto e consequências, não importando quaisquer benefícios ou prejuízos que possam causar aos atores e sujeitos envolvidos… A teoria subjetivista defende que o bem não tem relação com os fatos da realidade, que é produto da consciência do homem, criado por seus sentimentos, desejos, “intuições” ou caprichos… A teoria objetiva defende que o bem não é nem atributo “das coisas em si”, nem dos estados emocionais do homem, mas uma avaliação dos fatos da realidade pela consciência do homem de acordo com um padrão racional de valor.[2]
É verdade que existem, essencialmente, “três escolas de pensamento sobre a natureza do bem” – e que Rand está contextualizando-as de acordo? (E por que essas teorias encontraram adeptos, e qual impacto tiveram?)
A menos que se conheça as principais teorias éticas na história da filosofia e se tenha formado uma visão sobre como devem ser agrupadas e conceitualizadas, deve-se tomar a perspectiva de Rand apenas como uma tipo de nota promissória – como um ponto de vista que alguém precisaria verificar através de maior investigação.
Se você leu o suficiente da obra de Rand, todavia, você poderia pensar: mas Rand não ofereceu, em seus ensaios filosóficos, uma análise das principais correntes e pensadores na filosofia? De certa forma, sim – de uma forma muito condensada e essencializada[3]. Mas, a menos que se conheça em primeira mão o que esses outros filósofos argumentaram e por que, não é possível avaliar se ou até que ponto a interpretação de Rand desses pensadores e tendências está correta.
Para ser objetivo quanto ao Objetivismo, e sua relação e análise de outros sistemas filosóficos, não é suficiente apenas repetir as análises de Rand; você deve estudar por conta própria – como a própria Rand fez.
Rand sobre a importância de estudar outros filósofos
Rand não era uma historiadora da filosofia: todavia, ela considerava vital estudar os principais argumentos e perspectivas oferecidas por outros filósofos.[4] Em uma carta à escritora Isabel Paterson, Rand escreveu:
Estou lendo A History of Philosophy (Uma história da Filosofia) de B.A.G Fuller e, ao mesmo tempo, as obras originais de Aristóteles, bem como muitas outras coisas. Às vezes, fico com os cabelos em pé ao ler o tipo de coisa que muitos “sábios” afirmaram […] É, com efeito, doloroso para mim ler Platão, por exemplo. Mas, eu devo fazê-lo. Eu não me importo com o que eles disseram – eu quero conhecer os motivos que os fizeram dizê-lo. Há um tipo assustador de racionalidade por trás das razões para os erros que cometeram, os propósitos que queriam alcançar e os resultados práticos que se seguiram na história.[5]
Rand estudou a história da filosofia não para alcançar erudição acadêmica, mas porque ela sabia que isso a ajudaria a entender melhor o mundo e as forças intelectuais que moldavam a cultura.
Em seus ensaios filosóficos posteriores à publicação de A revolta de Atlas, Rand extraiu repetidamente de seu conhecimento de outros filosóficos e sistemas filosóficos ao interpretar os eventos e tendências culturais que analisou.
Por exemplo, considere suas discussões acerca da influência do Pragmatismo, do Positivismo Lógico, da análise linguística e do Existencialismo em seus ensaios lidando com as tendências que prejudicavam o sistema educacional americano (The Comprachicos) e incitando os ativistas universitários que usavam a força física, supostamente em nome da “liberdade de expressão” (The Cashing In: The Student ‘Rebellion).[6]
“A fundação de qualquer cultura, a fonte responsável por todas essas manifestações”, escreveu Rand, “é a sua filosofia”[7]. E como uma filósofa que estudou a história da filosofia, Rand formou uma perspectiva definida e valiosa sobre os grandes filósofos e suas teorias, e sobre o impacto dessas teorias no mundo. Para Rand, tal perspectiva só pode ser conquistada com muito estudo.
Encorajando questionamentos mais profundos
Para destacar o valor no estudo de outros filósofos, considere a seguinte questão que surgiu durante uma aula no OAC. No ensaio, A natureza do governo, ela escreve:
A fonte dá autoridade governamental é “o consentimento dos governados”. Isto significa que o governo não é o soberano, mas o servo ou agente dos cidadãos; significa que o governo como tal não tem direitos, exceto os delegados a ele pelos cidadãos.[8]
Dada a tradição política herdada dos Pais Fundadores, é fácil ler o apelo de Rand ao “consentimento dos governados”, concordar e prosseguir para o próximo parágrafo. Mas quando tal passagem é lida junto com as obras de outros filósofos – tais como Thomas Hobbes, John Locke e John Rawls – que pensaram muito sobre a questão do consentimento e articularam posições sobre a natureza do consentimento, e do papel que ele tem na justificação da autoridade do governo, você é levado a fazer – e deveria fazer – muitas perguntas.
O que significa dizer que os governados consentem? E em que, exatamente, eles consentem? E quando, e de que forma, tal consentimento é registrado? É necessária uma declaração pública ou apenas um acordo tácito de algum tipo? O consentimento é mesmo necessário se o governo já estiver fazendo exatamente o que Rand acha que ele deveria?
Estudar e entender os debates filosóficos que tratam dessas e muitas outras questões ajuda a apreciar sua complexidade, e como suas respostas não são óbvias; tal fato lhe força a formular questões melhores sobre suas próprias visões, evitando aceitar respostas muito facilmente. Em última instância, se obtidas corretamente, elas podem ajudá-lo a alcançar entendimento claro e profundo do Objetivismo e a perspectiva única que essa filosofia oferece sobre os fenômenos e tendências culturais de nossos dias.
Então, se você está tentado a ignorar ou desconsiderar outros filósofos agora que Rand o convenceu de que ela está certa, eu o encorajo a combater tal tentação.
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Publicado originalmente em New Ideal.
Revisão de Matheus Pacini.
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[1] HARRIMAN, David Harriman (ed). Journals of Ayn Rand. New York: Plume, 1999. p. 66.
[2] RAND, Ayn. “What Is Capitalism?” in Ayn Rand, Capitalism: The Unknown Ideal. New York: Signet, 1967 Centennial edition.
[3] Veja a reflexão de Rand no primeiro ensaio do livro. RAND, Ayn. For the New Intellectual. New York: Signet, 1964 Centennial edition.
[4] Para mais sobre Rand e a história da filosofia, consulte LENNOX, James G. “Rand’s Approach to the History of Philosophy,” in Allan Gotthelf and Gregory Salmieri (eds.), A Companion to Ayn Rand. Chichester, UK, and Malden, MA: Wiley Blackwell, 2016. p. 321-42.
[5] BERLINER, Michael S. (ed.) Letters of Ayn Rand. New York: Dutton, 1995, p. 179.
[6] Os ensaios The Comprachicos (1970) e The Cashing-In: The Student ‘Rebellion (1965) foram reimpressos em RAND, Ayn. Return of the Primitive: The Anti-Industrial Revolution. New York: Meridian, 1999.
[7] RAND, Ayn. “Our Cultural Value-Deprivation,” in Leonard Peikoff (ed.), The Voice of Reason: Essays in Objectivist Thought. New York: Meridian, 1989. p. 104.
[8] RAND, Ayn. A Virtude do Egoísmo. Trad. de On Line-Assessoria em Idiomas. Porto Alegre: Ed. Ortiz/IEE, 1991. p. 139.