Tema selecionado: TEMA 03 – Roark diz à junta do edifício do Banco de Manhattan que sua negativa a realizar mudanças no seu desenho é “a coisa mais egoísta que jamais se haja visto fazer a um homem”. Em que sentido é este “egoísta”? Por que Ayn Rand considera a Roark egoísta e a Keating altruísta?
Quando ouvimos o termo “egoísmo”, surge, em nossa mente, um ser humano de índole duvidosa, pronto para atacar qualquer um que ouse cruzar o seu caminho, atingindo seus objetivos a qualquer custo. “Egoísta” seria aquele que ignora completamente as necessidades e sentimentos alheios, vivendo apenas para servir a si mesmo, realizando seus próprios desejos e caprichos imediatos ou de longo prazo.
Porém, com uma simples consulta ao dicionário, a Ayn Rand conseguiu ver muito além desse senso comum. É que, lá, o significado de “egoísmo” é apenas “preocupação com seus próprios interesses”. Perceba: não há qualquer conotação negativa nessa frase!
A autora ateve-se a esse detalhe, e foi capaz de, brilhantemente, provocar uma reflexão: preocupar-se com seus próprios interesses não é, por si só, algo negativo. Pelo contrário – pensou ela –, pode ser a mais bela das virtudes!
Mas como saber quando “preocupar-se com seus próprios interesses” pode ser uma virtude ou um defeito? É função da ética responder a essa pergunta, e a filosofia objetivista, criada pela Ayn Rand, busca, entre outras coisas, esclarecer esse ponto.
Acontece que filosofia não costuma ser algo acessível para o homem comum. Nós sabemos que apenas pequenos grupos de estudiosos costumam interessar-se por essa matéria. Romances, por outro lado, alcançam um público consideravelmente maior. Ciente disso, a Rand escolheu transmitir sua filosofia por meio de ficções, incutindo em seus personagens características, ações e diálogos que representassem suas ideias.
Ela tinha razão: sua obra “A Nascente”, publicada em 1943, foi um grande sucesso, tendo chegado ao sexto lugar na lista de best sellers do The New York Times, em 1945, com cem mil cópias vendidas. Pouco antes disso, a mesma obra já havia lhe proporcionado a almejada independência financeira, com a venda dos direitos à Warner Bros, para adaptação cinematográfica.[1]
Segundo a própria autora, o livro tem por escopo retratar a dicotomia individualismo versus coletivismo, não na política, mas na alma humana. Howard Roark, o personagem principal, é a personificação do homem ideal, individualista, essencialmente “egoísta”.
Tudo isso pode ser observado em cada uma de suas ações e manifestações ao longo do texto. Um belíssimo exemplo está na cena onde o arquiteto passa por sérias dificuldades em sua carreira, estando sem clientes e, consequentemente, sem dinheiro. Surge, então, uma proposta para construção do edifício do Banco de Manhattan, que seria sua última chance de manter aberto o seu escritório.
Todavia, posteriormente, Roark acaba rejeitando a proposta que seria a sua salvação naquele momento. O motivo? O cliente lhe fez uma exigência de que ele incluísse, em seu projeto, um pórtico dórico na fachada da construção – algo que, para ele, seria quase uma ofensa. É que esse estilo não lhe agradava, e, por isso, não fazia parte do seu desenho arquitetônico costumeiro. Ele tinha um estilo próprio, peculiar, único, do qual não estava disposto a abrir mão.
O custo da decisão seria alto: teria que trabalhar em uma mina de granito para poder custear sua sobrevivência. Mas seria isso um sacrifício?
Nathaniel Branden, discípulo da Ayn Rand, responde a essa pergunta, em um dos capítulos do livro “A virtude do egoísmo”:
Um sacrifício, é necessário lembrar, significa a renúncia de um valor maior em favor de um valor menor ou de algo sem valor. Se alguém desiste daquilo que não valoriza para obter aquilo que valoriza – ou se desiste de um valor menor para obter um valor maior – isso não é sacrifício, mas um ganho.[2]
Assim sendo, a atitude de Roark, naquele momento, não poderia, jamais, ser considerada um sacrifício. Afinal, ele estava trocando algo que, para ele, tinha menor valor (sua vida financeira) por algo de maior valor (sua integridade). Se ele agisse de maneira oposta, rendendo-se aos desejos de seu cliente que iam de encontro aos seus princípios, aí sim, ele praticaria um sacrifício.
A ética que exige que o homem se torne um “animal de sacrifício” é o ALTRUÍSMO, e não o egoísmo. Ela sustenta que o homem não deve existir para o seu próprio interesse, que ele deve servir aos demais e negar a si mesmo. Os outros devem ser a razão da sua existência e todas as suas ações devem ser praticadas em função deles.
Logo, entendemos por que Roark diz que aquela atitude seria “a coisa mais egoísta que jamais se haja visto fazer a um homem”. De fato, ele agiu de modo egoísta por essência, preservando a sua integridade, sem preocupar-se com o julgamento alheio ou com as consequências financeiras de sua decisão. Ele não se permitiu ser um meio para os fins alheios, porque, como indivíduo, é um fim em si mesmo, com o direito natural de buscar a sua própria felicidade.
A felicidade, para a Ayn Rand, é obtida quando o homem realiza seus próprios valores, utilizando-se da sua racionalidade. Então, um altruísta jamais poderia alcançá-la, já que suas ações o encaminham para a autodestruição. Um “homem de segunda mão”, que vive em função dos outros, age completamente desconectado do atributo humano mais valioso: a racionalidade.
Aliás, a autora enumerou os três valores primordiais da ética objetivista, que ela considera meios para a realização da vida de um indivíduo: a razão, o propósito e a autoestima, que têm como virtudes correspondentes a racionalidade, a produtividade e o orgulho.[3]
Roark sempre agiu guiado por esses valores e virtudes. Apesar de, naquele momento específico, ele ainda não ter sucesso financeiro, não se preocupava com isso. E – convenhamos – que sucesso ele poderia ter se agisse como um arquiteto medíocre, fazendo o que todos fazem? Ele poderia ganhar dinheiro naquele momento, mas estaria assinando a sua sentença de morte profissional, renunciando às características que o diferenciavam dos demais.
Não! Ele foi racional! Ele sabia que, assim, estava selecionando seus clientes, para atrair apenas aqueles que valorizavam seu trabalho exatamente como era executado, como foi o caso de Roger Enright.
Sua racionalidade, o trabalho produtivo e o orgulho que cultivava lhe traziam felicidade. Isso pode ser observado no trecho abaixo, de uma conversa entre Roark e Keating:
“Peter, antes que você possa fazer algo para os outros, é preciso ser o tipo de homem capaz de fazer alguma coisa. Mas, para fazer alguma coisa, é preciso amar o processo de fazer, e não as consequências secundárias. O trabalho, não as pessoas. A sua própria ação, e não qualquer objeto passível da sua caridade. Ficarei feliz se as pessoas que precisam disso encontrarem uma vida melhor numa casa projetada por mim. Mas não é essa a motivação do meu trabalho. Tampouco a minha razão para fazê-lo. Também não é a minha recompensa.”[4]
Howard era apaixonado pelo seu ofício e isso era nítido em cada passagem do livro. Em seu diálogo com o reitor, logo no início, demonstrando o valor que dava à sua autoestima, ele disse que, caso tivesse sessenta anos de vida pela frente, dedicaria a maior parte desse tempo ao trabalho. Se não encontrasse a felicidade no ofício exercido com excelência, sob seus próprios critérios, seria condenado a anos de tortura.[5]
Noutro fragmento, ele diz que não faz comparações e nunca pensa em si mesmo em relação a nenhuma outra pessoa, pelo fato de recusar-se a medir-se como parte de qualquer coisa.[6]
Peter Keating, por outro lado, é a personificação de um altruísta. Isso porque, em nenhum de seus atos, observa-se a presença de um “ego”. Seu objetivo maior era ser grande perante os outros. Desejos como fama, admiração e inveja derivam de terceiros. Assim, era nas opiniões alheias que ele concentrava seus interesses e convicções. Nas palavras de Howard Roark:
“Ele não queria ser grande, e sim que pensassem isso dele. Não queria construir, e sim ser admirado como construtor. Pegou emprestado de outros para causar uma impressão nos outros. Aí está a sua ausência concreta de ego. Foi o próprio ego que ele traiu, abriu mão de si mesmo. Mas todos o chamam de egoísta.”[7]
Veja: pautando suas ações nas expectativas alheias, ele jamais poderia ser tachado de egoísta! Não há ego! E o perigo de permitir-se ser meio para os fins alheios está no fato de que não demora para que se crie uma expectativa de poder utilizar os outros como escadas para os fins próprios. Temos, então, a famigerada figura do “brutamontes”, que se imagina quando se fala em “egoísmo”. Em verdade, ele nada mais é do que um altruísta! E faz muito mais sentido que seja assim!
A autora dá um exemplo que distingue bem essas duas figuras: não há nada de errado em querer ganhar dinheiro, desde que ele seja visto como meio para a realização de algum propósito pessoal, e não um fim. Aqueles que desejam meramente a ostentação de uma vista luxuosa, em busca da inveja e admiração alheias, são “pessoas de segunda mão”, altruístas. Isso era o que Keating desejava. Como bem alertou Roark, em seu discurso, durante o seu julgamento:
“O homem que tenta viver para os outros é um dependente. É um parasita na sua motivação, e transforma em parasitas aqueles a quem serve. A relação não produz nada a não ser uma corrupção mútua. É conceitualmente impossível. O que mais se aproxima disso na realidade, o homem que vive para servir os outros, é o escravo. Se a escravidão física é repulsiva, quão mais repulsivo não é o conceito da servilidade de espírito?”[8]
Enquanto Keating vivia em um regime de servidão autoimposto, Roark buscava apenas a realização pessoal. Os aplausos não lhe comoviam, e as reprovações não lhe tiravam o sono; não o demoviam de seu propósito.
A maior prova disso é quando Roark promete para Keating que, com o projeto de Cortlandt Homes, ele teria tudo: sucesso, fama, dinheiro, admiração. Já a sua recompensa seria o que ninguém (além dele mesmo) poderia oferecer: o orgulho de ter construído aquela obra.
Nesse sentido, encontramos a palavra-chave para descrever o egoísmo da filosofia objetivista: independência. O sucesso de Roark aconteceu sem que, para isso, ele utilizasse qualquer pessoa como escada. Tampouco, para ele, importaram todos os percalços enfrentados. Mesmo caindo em uma armadilha de Ellsworth Toohey e sendo processado, ou vendo o templo Stoddard desfigurado, ele não é afetado.
Aqui, vale trazer outro trecho do seu discurso:
“O homem pensa e trabalha sozinho. O homem não pode roubar, explorar ou reinar sozinho. Roubo, exploração e reinado pressupõem vítimas. A dependência está implícita. São elas a província de quem vive de segunda mão. Os que reinam sobre os homens não são egoístas. Eles nada criam. Existem tão-somente através das pessoas e dos outros. Seu objetivo reside nos súditos, na atividade de escravizar. São tão dependentes quanto o mendigo, o agente social e o bandido. A forma da dependência não tem importância.”[9]
Como bem vimos no decurso da novela, a longo prazo, são os egoístas que alcançam o sucesso pessoal e a felicidade. Acompanhamos o processo de crescimento natural de Roark, à medida que vão surgindo clientes atraídos pelo seu estilo único. Foi sendo íntegro e fiel aos seus princípios que ele alcançou o sucesso. Keating, por outro lado, mesmo tendo uma carreira bem-sucedida num curto prazo, viu sua paz de espírito minguar aos poucos, restando-lhe o vazio existencial.
Em suma, considerando o conceito de liberdade trazido por Dominique – não pedir nada, não esperar nada e não estar sujeito a nada[10]–, ao agir de maneira egoísta, Roark era um homem livre. Keating, por outro lado, não passava de um escravo, contaminado pela raiz de todo o mal: o coletivismo.
[1] XAVIER, Dennys (coord.). Ayn Rand e os devaneios do coletivismo. São Paulo: LVM Editora, 2019. p. 50-51.
[2] RAND, Ayn. A virtude do egoísmo. São Paulo: LVM Editora, 2020. p. 54.
[3] Idem. p. 35.
[4] RAND, Ayn. A Nascente. Campinas: Vide Editorial, 2019. p. 767.
[5] Idem. p. 31.
[6] Ibidem. p. 772.
[7] Ibidem. p. 804.
[8] Ibidem. p. 902.
[9] Ibidem. p. 905.
[10] Ibidem. p. 188.