Por Lívia Dalla Bernardina Abreu.
São muitas as semelhanças entre ambos – mas também há uma diferença fundamental.
Em A Revolta de Atlas, Hank Rearden dedica sua vida à criação de um metal revolucionário, o metal Rearden, uma liga nova, mais leve e resistente que o aço, produzida após anos de pesquisa e investimentos.
Por se tratar de algo novo, sofreu severa oposição da opinião popular e de diversos políticos, que buscaram, inclusive, proibir sua utilização, não obstante os resultados positivos dos testes e estudos a seu respeito.
No entanto, uma vez comprovada a eficiência – e, mais ainda, as vantagens – na utilização deste novo metal, havia muitos interessados em usá-lo, mas poucos dispostos a remunerar o criador por sua criação.
São muitos os defensores da propriedade privada, mas poucos são aqueles que reconhecem no fruto do intelecto, na propriedade intelectual do indivíduo, uma legítima forma de propriedade.
Ora, nesse sentido, Frédéric Bastiat já colocava a propriedade como um dos direitos fundamentais do indivíduo, que, junto com a liberdade e a vida, deveria ser protegida pela lei. Isso porque a propriedade é a materialização da vida; em termos simples, é a vida que o ser humano gasta trabalhando que permite a criação ou aquisição da propriedade privada.
Curioso que, para muitos bens palpáveis – móveis, imóveis e bens concretos – a questão parece muito óbvia para a maioria, ao passo que, em se tratando de bens incorpóreos – serviços e criações intelectuais, por exemplo – são poucos os que enxergam seu valor enquanto propriedade.
Não é difícil ver, na prática, pessoas pedindo “conselhos” a advogados ou “opiniões” a médicos – vulgo serviços advocatícios e serviços médicos, respectivamente – sem julgar necessário remunerar tais serviços. Diversamente, é muito mais raro que se peça a qualquer amigo ou conhecido que vende produtos – ainda que seja um pão, ou outra coisa banal – sem esperar pagar nada em troca.
O dinheiro, tal como afirma Francisco D’Anconia, também personagem da obra supracitada, é a forma material dos princípios de que os homens que querem negociar uns com os outros precisam trocar um valor por outro.
Ocorre que, na obra, em determinado ponto da história, já provados o valor e a utilidade da nova liga metálica, o Governo decide extinguir todas as patentes e os direitos autorais – ou seja, toda a propriedade intelectual – para eliminar práticas monopolísticas e promover o tão aclamado “bem comum”.
E por que as vacinas contra a Covid-19 são o novo metal Rearden?
Bom, muito se tem falado da quebra das patentes das vacinas contra a Covid-19 – tecnicamente, “licenciamento compulsório” – como a condição para o fim da pandemia. Tudo isso em prol do “bem comum” e da dignidade humana, duas expressões altamente subjetivas, que comportam diversas interpretações. É claro que, em número, são muitas as pessoas que se beneficiariam da quebra das patentes. Mas é assim como toda a criação intelectual: são muito menos os inventores e pesquisadores do que o resto das pessoas. Mas será que isso torna legítimo que o mundo se aproprie da criação intelectual de um indivíduo em prol dos demais? Estará aquele com maior capacidade, empenho ou persistência em seu trabalho condenado a trabalhar para os demais, suprindo suas necessidades? Estaríamos, como sociedade, caminhando para sufocar a relação causa e efeito entre o trabalho e seus frutos?
Se for isso, já podemos antever muitos efeitos colaterais. Alguns países já quebraram patentes de medicamentos – como o Brasil com medicamentos para tratamento do HIV, com algumas peculiaridades –, mas, se isso se tornar uma constante em situações de doenças graves ou altamente contagiosas, cientistas e pesquisadores estarão dispostos a doar seus esforços de uma vida ao “bem comum”? Até que ponto a expropriação do produto do trabalho intelectual não sufoca novas descobertas?
Não é demais lembrar que sequer há provas de que a quebra de patente garantiria vacinação para todos, porque há problemas de matéria-prima, bem como de capacidade tecnológica dos laboratórios que produzem o medicamento. A fabricante Moderna, por exemplo, comprometeu-se a não fazer valer suas patentes relacionadas ao combate à Covid-19, mas há uma série de segredos comerciais e qualificação técnica que são necessários para produzir vacinas.
Por outro lado, há uma diferença fundamental entre as vacinas contra a Covid-19 e o inovador metal Rearden. O metal leva o nome de seu criador, que financiou por conta própria toda a criação e desenvolvimento da nova liga – portanto, sem sombra de dúvidas, é o proprietário absoluto de sua criação. Já as vacinas foram amplamente financiadas com dinheiro público; portanto, com dinheiro dos contribuintes.
A Moderna, por exemplo, recebeu cerca de 2,5 bilhões de dólares para pesquisas e sob a forma de pré-encomendas. A própria companhia reconheceu que a contribuição de 1 bilhão de dólares para pesquisas já foi suficiente para cobrir a totalidade de seus custos. Já a Pfizer recebeu uma doação do governo alemão de 455 milhões de dólares para desenvolver a sua vacina.
Por essa razão, há veículos de imprensa, leigos e até mesmo especialistas que defendem a quebra de patente das vacinas contra a Covid-19: já que financiadas com dinheiro público, elas pertencem aos cidadãos. No Brasil, surgiram diversos projetos de lei para regulamentar a questão – que, diga-se de passagem, já tem previsão na Lei de Propriedade Industrial, eis que seus artigos 68 a 74 já regulamentam a licença compulsória (conhecida como “quebra de patente”). No plano internacional, o diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS), sustenta que as empresas “renunciem temporariamente às patentes e recebam royalties pelo uso delas”.
Entretanto, não há qualquer notícia de que os governos financiadores tenham previsto contrapartidas ao investir em pesquisas, a despeito de a OMS tê-los orientado neste sentido. Não é demais lembrar que são corriqueiros os incentivos dados pelo governo a diversos setores produtivos e que, nem por isso, pensamos que aqueles bens nos pertencem enquanto sociedade. Inclusive, foi massivo o auxílio do governo brasileiro às companhias aéreas, mas, nem por isso, seus serviços têm sido compulsoriamente requisitados para transportar as vacinas contra a Covid-19, por exemplo – algo tão essencial no combate à pandemia quanto as próprias vacinas.
O licenciamento compulsório é uma medida extrema, com sérias consequências, e que deve ser considerada só em última instância. Via de regra, o Estado deve respeitar e proteger a propriedade privada e honrar seus contratos. Quisessem os governos quaisquer contrapartidas a seus incentivos, assim deveriam ter acordado. Qualquer novo entendimento que afete os contratos passados viola sobremaneira a segurança jurídica e o indispensável respeito às obrigações contratualmente acordadas. Nesse aspecto, há de se notar, inclusive, que os pactos foram firmados quando já instaurada a pandemia, de modo que sequer se haveria de ventilar a aplicação da teoria da imprevisão, tão discutida desde o início da crise causada pela Covid-19.
Fato é que existem numerosas medidas alternativas ao licenciamento compulsório, que deve ser usado com a devida parcimônia. Como se não bastasse, abrir o precedente para tanto, pode ser um tiro no pé das instituições de pesquisa brasileira, eis que o Brasil já se encontra a poucos passos de colocar a vacina canarinha no mercado.
Não é demais lembrar que costuma parecer justificável a violação de um direito individual em prol do “bem comum” quando não é nosso o direito violado.
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Revisado por Roberta Contin
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