Objetivismo e Aristotelismo

A filosofia é o estudo da natureza fundamental da realidade. “Fundamental” refere-se a um princípio ou verdade que está presente em um vasto número de concretos. Dizer que alguma coisa é fundamental significa que muitas outras verdades dependem dela. Dizer que a filosofia estuda os fundamentos da realidade significa que ela estuda os fatos presentes em, e os princípios aplicáveis a, tudo que existe.

Toda abstração, e consequentemente todo princípio, manifesta-se em um número incalculável de concretos. É aquilo que os concretos têm em comum – mas não existe à parte deles. Uma abstração é uma forma de classificação humana pela qual o homem integra a evidência fornecida pelos seus sentidos. O homem eleva-se acima do nível perceptual ao integrar seus perceptos em conceitos, seus conceitos em princípios, seus princípios em ciências e todas as suas ciências em uma filosofia. Abstrações são objetivas, isto é, baseadas na realidade. Mas abstrações, incluindo simples conceitos de concretos, não existem por si mesmas. O que existe é apenas o material a partir do qual um conceito é formulado.

Eu normalmente afirmo que toda a história da filosofia é um duelo entre Platão e Aristóteles, e que esse conflito está presente em todas as questões. Se você pensa que princípios, e portanto a filosofia, existem separados dos concretos, então você é platônico. Platão acreditava que as abstrações são arquétipos ou universais que existem noutro reino, o mundo das Formas, sob a forma de entidades não materiais, sobrenaturais. Agora, aquilo que de mais profundo o Objetivismo tem em comum com Aristóteles – e existem muitas coisas em comum – é isto: Aristóteles foi o primeiro a compreender o que a maioria das pessoas ainda não compreende, isto é, que tudo aquilo que existe é uma entidade específica, concreta, ou um dos seus aspectos, tal como uma ação de uma entidade, um atributo de uma entidade, uma relação mantida por ela, etc. Mas a base de tudo é uma entidade – não uma ideia ou abstração. Uma abstração é a forma pela qual organizamos essas entidades com o intuito de entendê-las.

A fim de se tornar um completo aristotélico, você deve compreender que apenas eventos concretos, relacionamentos concretos, problemas concretos, existem. (Se você não é plenamente aristotélico, isso não é um crime moral; mas lhe causará problemas, então treine para sê-lo.) Por exemplo, o mesmo problema abstrato pode existir em diferentes partes do mundo, e envolver pessoas diferentes. Mas em cada caso, trata-se de um problema concreto. Assim como a abstração “mesa” envolve todas as mesas que existem – passadas, presentes, e futuras – então o problema abstrato “o homem versus o Estado” ocorreu praticamente em todas as sociedades na história. É o maior problema político do mundo hoje, mas não é uma abstração flutuante. É uma abstração dos relacionamentos entre o homem e um sistema político, e esses relacionamentos existem apenas em formas concretas. Eles existem na Rússia, na Alemanha, nos Estados Unidos – existe o homem contra o Estado na Rússia, na Alemanha, na América. Mas o mero fato de que são cobertos pela mesma abstração não muda o fato de que são concretos separados. A abstração envolve homens específicos, em situações específicas, enfrentando governos específicos. Não existe algo como o “homem versus o Estado” em outra dimensão, platônica.

Quando tudo estiver claro sobre esse assunto, você se sentirá seguro quanto às abstrações. Se não estiver tudo claro, o perigo imediato é que você será limitado ao concreto em sua vida real, e incorrerá em abstrações flutuantes em suas convicções filosóficas. Até os homens se tornarem plenamente aristotélicos não conseguirão aplicar seus princípios filosóficos às suas próprias vidas e ações. Então por um lado, eles podem ter uma filosofia complexa originada em uma torre de marfim e, por outro, apesar de tudo, agir como selvagens.

Objetivistas não cometeriam tal erro grosseiro, mas todo erro pode ser cometido ao longo de uma sequência contínua de graus. Assim, enquanto um objetivista não professaria o Objetivismo e, ao mesmo tempo, se uniria ao Partido Comunista, ele pode, conquanto, aceitar a ideia de que suas convicções filosóficas professas existem em um departamento, e sua vida diária, julgamentos e visões em outro totalmente diferente.

A raiz desse engano é que, normalmente, quando uma pessoa aceita certas convicções, ela não as integra completamente aos concretos que encontra. Ninguém precisa pensar novamente numa questão a cada vez que ela aparecer. Uma completa integração permite a uma pessoa reconhecer de forma rápida quando certas de suas convicções se aplicam a algum fato concreto; apenas em situações complexas ela terá que dedicar pensamento adicional. Apesar disso, não importa quão complexa ou simples, você deve lidar com todas as questões da sua vida de acordo com a sua filosofia, e você não pode manter sua filosofia em “algum lugar”, separada das suas ações diárias.

Se os homens pudessem viver de acordo com o expediente do momento – por um método limitado ao concreto – não precisariam de filosofia. O propósito da filosofia é guiar um homem pelo curso de sua vida. Infelizmente, muitos objetivistas não aceitaram, concretizaram e integraram completamente esse princípio. Por exemplo, na presença de um determinado evento, obra de arte, pessoa, etc., muitos objetivistas perguntam a si mesmos, “o que eu tenho que sentir?” ao invés de “o que eu sinto?” E se eles precisam julgar uma situação a qual eu não discuti antes, sua abordagem é “o que eu devo pensar?” ao invés de “o que eu penso?” Essa é a reminiscência infantil de alguém que, de alguma forma, foi influenciado pela religião da cultura ou, mais tarde, no ensino universitário, pelo platonismo. Ambas dão a impressão de que o bem, o importante, o filosófico, são como a Igreja aos domingos: você os utiliza em ocasiões especiais, mas eles nada tem a ver com a vida diária. Se qualquer parte dessa atitude permanece em você, é importante eliminá-la.

A filosofia não lhe diz concretamente o que sentir ou pensar; ela lhe diz o que é verdadeiro e correto. Se você tem que julgar algo (por exemplo, uma obra de arte, uma política do governo, um relacionamento pessoal), sua filosofia lhe dá os princípios corretos pelos quais fazer o julgamento. A filosofia lhe fornece um critério – mas não pode aplicá-lo por você. Ao julgar algo ou alguém, você deve decidir se ele é bom ou ruim.

A filosofia não pode lhe dar uma série de dogmas. A religião faz isso – e sem sucesso. A religião tenta reduzir princípios a regras concretas – dez ou cem mandamentos – que possam ser aplicadas de forma automática, como um ritual, a fim de se afastar a responsabilidade de pensar e de analisar moralmente.

Qual filosofia é a correta é um exame separado. Descobrir a correta é o propósito do estudo da filosofia. Mas uma vez que você se convence que uma determinada filosofia é a correta – que ela corresponde à realidade – você estará armado apenas com uma chave, a qual lhe dirá por qual critério julgar um evento, pessoa, decisão – ou artigo. Mas os dados concretos devem ser julgados, avaliados, e organizados por você. (1969).

Extraído e adaptado de The Art of Nonfiction. Essa obra reúne as transcrições de uma série de palestras sobre a escrita adequada de artigos apresentada por Ayn Rand aos colaboradores dos seus periódicos. Clique na imagem para adquirir a versão Kindle pela Amazon brasileira.

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Tradução de Breno Barreto

Revisão de Matheus Pacini

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