O que os fãs de Ayn Rand pensam sobre Os Incríveis?

É difícil dizer o que Ayn Rand pensaria sobre o nosso boom atual de super-heróis. Por um lado, a falecida autora, filósofa e criadora do Objetivismo era uma pessoa de mente nobre que desprezava o pensamento medíocre. Mas não devemos esquecer que ela via poder nas pulps.

Caso em questão: um discurso de Rand na década de 1960 intitulado “Arte na Educação” em que ela faz uma longa crítica sobre Buck Rogers, um protótipo de super-herói de ficção científica. “É fácil convencer uma criança, mais ainda um adolescente, que o seu desejo de imitar Buck Rogers é ridículo”, disse com seu carregado sotaque russo. Com tom reprovador, ela explica que os adultos “convencem-no de que ser como Buck Rogers significa usar um capacete espacial e eliminar um exército de marcianos com uma arma desintegradora, e que, para o seu bem, é melhor desistir dessas ideias se quiser ter uma vida respeitável”. Isso é trágico. “Se o homem quiser obter e manter uma postura moral, ele precisa de uma imagem do ideal do primeiro ao último dia de sua vida,” afirmou. “Para traduzir esse ideal em termos filosóficos conscientes e aplicá-lo na prática, uma criança precisa de apoio intelectual ou, pelo menos, uma chance de encontrar o seu próprio caminho.” E heróis ousados e notáveis como Buck podem ser a coisa certa.

Claro, é preciso dar um passo atrás e refletir sobre o que Rand quer dizer quando fala de “postura moral” de um herói. Considerando como ela enaltecia o egoísmo e a individualidade, é certo que não está falando do tipo de altruísmo cego e abnegado do Super-Homem; tampouco, da subordinação a uma causa patriótica como é o caso do Capitão América. Ela está falando, sim, de um herói objetivista, que opera baseado em um conjunto de princípios firmes que nunca se curvam, e que, na busca de seus próprios interesses, melhora a sociedade como um todo. Mais importante, seus heróis não são tímidos quanto à sua força: eles sabem que são diferentes, melhores, e não deixam o mundo apagar a sua luz.

E chegamos n´Os Incríveis. A obra-prima de Brad Bird, produzida pelo estúdio Pixar em 2004, recebe uma continuação neste fim de semana, e tem sido tanto elogiada quanto ridicularizada como uma obra randiana. O filme apresenta uma família superpoderosa que, devido a um sentimento anti super-herói e à uma ação judicial, é forçada pelo governo a parar de salvar o mundo e fingir ser uma família comum. Não obstante, quando um suposto supercampeão invejoso chamado Síndrome tenta matar o Sr. Incrível e planeja disponibilizar superpoderes para o mundo inteiro (“Quando todo mundo é super, ninguém é!”) a família unida decide mostrar do que é capaz e assume o papel heroico que tinha sido destinada a assumir. Eles triunfam, e o público agradece.

Desde o início, comentaristas viram paralelos objetivistas na história. A.O. Scott, em sua resenha para o New York Times, escreveu que “o filme lembrava uma imersão completa e febril tanto na história dos quadrinhos americanos quanto na filosofia de Ayn Rand”. Stuart Klawans do The Nation observou que os heróis são “como Ayn Rand lutando contra a valorização da mediocridade.” Essa análise se tornou senso comum entre os colunistas do tema super-heróis, para melhor ou pior – pesquise na internet sobre o filme e você ainda encontrará textos como esse.

Antes de prosseguirmos, é preciso salientar que Bird pensa que tudo isso seja uma grande bobagem. “Acredito que o filme foi mal-interpretado algumas vezes”, disse a Andy Patrizio da IGN, em 2005. “Algumas pessoas falam que fui influenciado por Ayn Rand ou algo assim, e essa afirmação é ridícula.” No mesmo ano, ele contou a Michael Barrier enquanto discutiam Os Incríveis: “às vezes, sinto que as pessoas emburreceram em suas análises, vide o absurdo que é a afirmação do filme ter qualquer sinal de Ayn Rand.” Esse discurso foi tão predominante que, em 2015, perto do lançamento de seu filme Tomorrowland, tornou-se moda escrever artigos sobre como Bird não é um randiano.

Um elemento que falta nesse debate sobre o cinema convencional são as vozes de objetivistas de verdade. Isso não é surpresa, dada a tendência progressista geral dos principais analistas de cinema. Mas não poderíamos deixar de nos perguntar: o que os objetivistas pensam sobre Os Incríveis? Depois de conduzir uma pesquisa muito pouco científica com diversos objetivistas antigos e atuais, a conclusão parece ser que o filme é objetivista, mas não tão objetivista quanto se poderia pensar.

“É possível ver uma conexão com a filosofia de Ayn Rand,” diz Onkar Ghate, membro-sênior do Ayn Rand Institute. “A sociedade não consegue apreciar esses heróis, e até mesmo se ressente deles”. Esse tema aparece nos romances de Ayn Rand, em particular em A nascente e A revolta de Atlas. Mas a história de Os Incríveis não é, de fato, focada nisso. Ela foca na família, e não na sociedade como um todo.” Além disso, na visão de Ghate, uma obra objetivista de verdade mostraria como, sem esses indivíduos excepcionais, “o crime correria solto” – demonstrando como individualistas corajosos são os pilares da sociedade – “mas não há nada disso na história.”

Ghate também possui um palpite interessante, relacionado à identidade secreta do Sr. Incrível. Durante seu exílio como super-herói, o poderoso homem trabalha numa companhia de seguros falida que se aproveita de seus clientes. Pode-se considerar heroico o esforço do Sr. Incrível no combate a essa burocracia em nome dos clientes, mas Ghate vê um grande problema neste ponto da trama. “Essa é uma visão muito estereotipada da indústria de seguros” diz ele. “A opinião de Rand é que todo o tipo de negócio é heroico. Você pode ter maus atores, mas o show business é algo criativo que construiu o mundo moderno. Não há semelhança aí – ela tem uma opinião contrária à do filme.”

“Acredito que há influências objetivistas nesse filme,” diz Stephen Hicks, professor da Rockford University. Na visão dele, a principal analogia é o modo como Os Incríveis melhoram o mundo ao serem quem são. “Há cenas que retratam admiração por conquistas, respeito por grandes feitos e a crença de que as pessoas deveriam ser livres para fazer o que quiserem com sua vida,” diz ele. “Aquela visão de que, quando deixamos pessoas com incríveis talentos serem livres e as respeitamos, seus feitos serão benéficos para todos.”

Dito isso, Hicks ressalta que os heróis fictícios de Rand possuíam uma diferença fundamental em relação aos de Os Incríveis: eles eram, até certo ponto, realistas. Os protagonistas dos romances são ideais excepcionais e estilizados, mas não são super-humanos. Rand sentiu que “se servirão para nos motivar a ser melhores em nossas vidas, é preciso haver realismo nisso,” destaca ele. “Para mim é possível levar a sério esse modelo de herói, pois, de fato, posso tornar-me um, se eu me esforçar tanto quanto esta pessoa.” Os Incríveis “transforma-se em fantasia do gênero de super-herói, recorrendo a uma metafísica diferente,” coloca Hicks.

O entusiasta mais encorajador da conexão Rand-Bird foi na verdade um objetivista reformado que abandonou a filosofia quando viu Os Incríveis em 2004. “Eu notei, de forma definitiva, a conexão quando a vi”, diz John Perich, agora escritor vivendo nos arredores de Boston. “A questão principal é a ideia de que o mundo precisa dessas pessoas excepcionais para continuar girando.” Perich também vê relação na representação de Síndrome: “Ele deixa explícito: eu não estou apenas destruindo você, estou destruindo essa ideia de que pessoas excepcionais merecem reconhecimento.”

Mas quando se trata de Síndrome, Ghate é cético quanto a ele se encaixar no ideal de um vilão randiano. Afinal, ele mesmo é excepcional: consegue construir uma ilha inteira de aparelhos e bugigangas assassinas. “Ele é um vilão padrão Bond, um gênio do mal”, relata Ghate. “Se você tem esse tipo de mente e consegue criar esses tipos de coisas, como quando ele derrota o Sr. Incrível e os outros, ele mesmo construiu algo incrível. Não é assim que Ayn Rand pensa em vilões. Para ela, vilões são pessoas incompetentes. Eles não querem ter que alcançar ou produzir nada.”

E quanto aos Incríveis 2? Não vamos dar spoiler, mas não é tão randiano quanto o primeiro. Bird descreveu com precisão a filosofia do novo vilão como “um pouco libertário”, mas não é realmente Objetivista. Hicks está ansioso para assistir ao filme, mas não espera que seja uma iniciação para jovens objetivistas em potencial – nem quer que seja. “Quando você vai ao cinema, não pensa nisso,” diz ele. “De modo geral, você quer ir e se divertir, quer que os problemas se resumam ao bem contra o mal, e quer aprender sobre os diferentes tipos de personagens e as dificuldades e dinâmicas possíveis na vida. Mas não é um sermão.” Em outras palavras, às vezes Buck Rogers é apenas Buck Rogers.

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Publicado originalmente na Vulture.

Traduzido por Verônica Ferrari Cervi.

Revisado por Matheus Pacini.

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