O (Ego)ísmo Sem um Ego: O Tribalista Não Conformista

Em minhas últimas duas cartas [“The Missing Link”], discuti a mentalidade anticonceitual e suas (tribais) manifestações sociais. Todos os tribalistas são anticonceituais em graus variados, mas nem todas as mentalidades anticonceituais são tribalistas. Alguns são lobos solitários (salientando as características mais predatórias da espécie).[1]

Muitos desses lobos são tribalistas frustrados, isto é, pessoas rejeitadas pela tribo (ou por pessoas de seu ambiente): são pouco fiáveis para obedecer as regras convencionais, bem como vilmente manipuladores para competir com o poder tribal. Se uma mentalidade perceptiva não pode fornecer a um homem um modo de sobrevivência, tal indivíduo, entregue aos seus próprios recursos, torna-se uma espécie de vagabundo intelectual, perambulando como um aproveitador eclético ou um colecionador de cérebros, selecionando pedaços de ideias de forma aleatória, substituindo-as ao seu bel-prazer, tendo uma única constante em seu comportamento: a deriva de grupo em grupo, a necessidade de se apegar às pessoas – qualquer tipo de pessoa – manipulando-as.

Seja qual for a construção teórica que seja capaz de manipular, fazendo malabarismos intelectuais em diversos campos, é o campo da ética que lhe faz sentir o mais profundo sentimento de terror por sua própria impotência. A ética é uma disciplina conceitual: a lealdade a um código de valores requer a capacidade de compreender princípios abstratos e aplicá-los a situações e ações concretas (mesmo no nível mais primitivo da prática de mandamentos morais rudimentares).

O lobo solitário tribal não tem compreensão primária de valores. Dentro de si, sente que isso é uma deficiência e que deve escondê-la a qualquer preço – e que, para ele, isso é o mais difícil de falsificar. Os caprichos que o guiam, mudando de momento em momento, não podem ajudá-lo a alcançar um estado interior de dedicação para com seus próprios valores escolhidos. Seus caprichos o condicionam ao oposto: automatizam sua recusa a qualquer compromisso permanente com nada nem ninguém. Sem valores pessoais, um homem não pode ter um senso de certo ou errado. O lobo solitário tribal é um amoralista integralmente.

O sintoma mais claro que pode ser identificado nesse tipo de pessoa é a sua total incapacidade de julgar a si mesmo, suas ações ou seu trabalho por meio de qualquer tipo de critério. O padrão normal de autoavaliação requer uma referência a algum valor abstrato ou virtude – por exemplo, “sou bom porque sou racional”, “sou bom porque sou honesto” e, até mesmo, a noção de segunda-mão de “sou bom porque as pessoas gostam de mim”. Independentemente de saber se o padrão de valor envolvido é verdadeiro ou falso, esses exemplos implicam o reconhecimento de um princípio moral essencial: que o próprio valor deve ser conquistado.

O padrão implícito de autoavaliação dos amoralistas (que eles raramente percebem ou admitem) é: “sou bom porque sou eu”.

Após o período dos três aos cinco anos (i.e., após o desenvolvimento do nível mental perceptivo), essa não é uma expressão de orgulho ou autoestima, mas sim do oposto: de um vácuo – de uma mentalidade estagnada que confessa sua impotência de alcançar qualquer valor ou virtude pessoal.

Não confunda esse padrão com o subjetivismo psicológico. Um subjetivista psicológico é plenamente incapaz de identificar ou provar a validade objetiva de seus valores, mas pode ser profundamente coerente e leal a eles na prática (embora tenha terrível dificuldade psico-epistemológica). O amoralista não sustenta valores subjetivos: não detém quaisquer valores. O padrão implícito de todas as suas estimativas é: “é bom porque eu gosto”, “é correto porque eu fiz”, “é verdadeiro porque eu quero que seja”. O que é o “Eu” nessas afirmações? Um corpo físico desajeitado movido por ansiedade crônica.

Os exemplos normalmente encontrados desse padrão são: o escritor que requenta fórmulas antigas e sente que o seu trabalho é novo, porque ele o escreveu – o artista não objetivo que sente que seus borrões são superiores aos realizados pelo rabo de um macaco, porque ele os fez – o empresário que contrata medíocres porque ele gosta deles – o “idealista” político que afirma que o racismo é positivo se praticado por uma minoria (da sua escolha), mas se torna maligno se praticado por uma maioria – e qualquer advogado com qualquer tipo de padrão-duplo.

Mas mesmo esses substitutos de má qualidade para a moralidade são apenas um pretexto: o amoralista não acredita no “sou bom porque sou eu”. Essa política implícita é a sua proteção contra a sua convicção mais profunda e nunca percebida: “Eu não sou bom por completo”.

O amor é uma resposta a valores. A real autoavaliação do amoralista é revelada em sua necessidade de ser amado (mas não no sentido racional da palavra) – ser “amado por si mesmo”, isto é, sem causa. James Taggart revela a natureza de tal necessidade: “eu não quero ser amado por qualquer coisa. Eu quero ser amado por mim mesmo – não por qualquer coisa que eu faça ou tenha ou diga ou pense. Por mim mesmo – não por meu corpo ou mente ou palavras ou trabalhos ou ações". Quando a sua esposa pergunta: “Mas então o que/quem é você mesmo?”, ele não tem resposta.

Um exemplo da vida real: anos atrás, conheci uma escritora mais velha e muito inteligente, porém inclinada ao misticismo, amargura, hostilidade, solidão e infelicidade. Sua visão sobre o amor e a amizade eram semelhantes a de James Taggart. Na época da publicação de A Nascente, eu disse a ela que era muito grata a Archibald Ogden, editor que tinha ameaçado demitir-se caso a editora não publicasse o meu livro. Ela ouviu com um olhar cético ou desaprovador e, em seguida, disse: “Você não precisa se sentir grata a ele. Ele não fez isso por você, mas por ele próprio, afinal, pensou que era um livro bom que promoveria a carreira dele”. Fiquei realmente chocada. Eu perguntei: “Você quis dizer que a ação dele seria melhor – e que eu deveria preferir – se ele pensasse que era um livro inútil, mas lutasse por sua publicação como uma forma de caridade para comigo?” Ela não respondeu e mudou de assunto. Fui incapaz de obter qualquer explicação da parte dela. Levei muitos anos para entender o ocorrido.

Um fenômeno similar, que me intrigou por muito tempo, pode ser observado na política. Com frequência, os comentaristas exortam qualquer político que diz colocar os interesses do país acima dos seus (ou os de seu partido) e buscar um pacto/compromisso com seus adversários – e essas exortações não são dirigidas para politiqueiros mesquinhos, mas a homens de boa reputação. O que isso significa? Se o político está convencido de que suas ideias estão corretas, então, seria o país que ele estaria traindo se estabelecesse um pacto/compromisso. Se está convicto de que as ideias de seus adversários estão erradas, é o país que seria prejudicado. Se não tem certeza de qualquer uma das duas alternativas, então, deve verificar seus pontos de vista, para o seu próprio bem, não apenas pelo bem do país – porque a verdade ou falsidade de suas ideias deve ser do seu extremo interesse pessoal.

Mas essas considerações pressupõem uma consciência conceitual que leva as a sério – i.e., que deriva seu ponto de vista de princípios verificáveis na realidade. A consciência perceptiva é incapaz de acreditar que as ideias podem ser de importância pessoal a qualquer um, pois considera as ideias como questão de escolha arbitrária, como meios para quaisquer fins imediatos. Nessa perspectiva, um homem não busca ser eleito para um cargo público com o fim de realizar determinadas políticas – ele defende determinadas políticas para ser eleito. Se assim for, porque diabos ele deve ser eleito? Mentalidades perceptuais nunca fazem tal pergunta: o conceito de uma meta de longo prazo está fora de seus limites. (Há grande número de políticos, bem como de comentaristas desse tipo – e por essa mentalidade ser considerada adequada e normal, o que isso indica sobre o estado intelectual da cultura atual?).

Se um homem subordina princípios e ideias aos seus “interesses pessoais”, quais são seus interesses pessoais e por quais meios ele consegue determiná-los? Considere a labuta dura e sem sentido a qual um político condena a si mesmo, se o objetivo de seu trabalho – a boa administração do país – não é de seu interesse pessoal (ou um advogado, se a justiça não é de seu interesse pessoal; ou um escritor, se o valor objetivo de seus livros não é de seu interesse pessoal, como sugeriu a mulher que mencionei). Mas uma mentalidade perceptual é incapaz de gerar valores e metas, e deve obtê-los de segunda mão e, como esperado, segue conforme movimentos determinados. (Nem todos esses homens são lobos solitários tribais – alguns são tribalistas fiéis, porém confusos, sem profundidade psicoepistemológica – mas todos são mentalidades anticonceituais).

Com toda sua ênfase em “si mesmo” (e em ser “amado pelo que é”), o lobo solitário tribal não tem ego e nem interesses pessoais, apenas caprichos momentâneos. Ele está consciente de suas sensações imediatas, e nada muito além disso. Observe que sempre que se arrisca a falar sobre valores espirituais – isto é, intelectuais – das coisas que ele pessoalmente gosta ou admira – qualquer um se choca com a banalidade, a vulgaridade, a cafonice emprestada que sai dele.

Um lobo solitário tribal sente que seu “ego” é dissociado de suas ações, de seu trabalho, de suas buscas, de suas ideias. Tudo isso, sente, vem de fora – da sociedade, da realidade ou do universo material – forçando-o a aceitar. Seu verdadeiro “ego” é alguma entidade inefável desprovida de atributos. Uma coisa é verdade: o seu “ego” é inefável, ou seja, não existente. O ego de um homem é sua mente – a faculdade que percebe a realidade, faz julgamentos e escolhe valores. Para um lobo solitário tribal, a “realidade” é um termo sem sentido; sua metafísica consiste na emoção crônica de que a vida, de alguma forma, é uma conspiração de pessoas e coisas contra ele. Ele andará sobre pilhas de cadáveres com o fim de afirmar-se? Não – com o fim de esconder (ou preencher) o irritante vazio interior deixado pelo seu ego abortado.

A piada sinistra de nosso tempo é o fato de que ele é tido como um símbolo do egoísmo: isso o encoraja nas suas depredações: dá-lhe a esperança de sucesso ao simular uma situação que está além de seu poder. O egoísmo é uma conquista profundamente filosófica, conceitual. Qualquer um que considera algum lobo solitário tribal como imagem do egoísmo está apenas confessando a natureza perceptual do seu próprio funcionamento mental.

Não obstante, os tribalistas continuam proclamando que a moralidade é um fenômeno exclusivamente social e que a adesão a uma tribo – qualquer tribo – é a única maneira de manter a moralidade entre os homens. Mas os membros dóceis de uma tribo não são melhores do que o seu rejeitado irmão, e são tão amorais quanto ele: o critério deles é: “Nós somos bons porque somos nós”.

A abdicação e definhamento do Ego é uma característica marcante de todas as mentalidades perceptuais, seja a tribalista ou a do lobo solitário: eles temem a autossuficiência; temem as responsabilidades que somente um Ego (i.e., uma consciência conceitual) pode executar, procurando escapar das duas atividades que apenas um homem verdadeiramente egoísta iria defender com sua vida: julgamento e escolha. Eles temem a razão (que é exercida volitivamente) e confiam em suas emoções (que são automáticas) – eles preferem a tribo (o estabelecido) ao desconhecido (o novo) – eles preferem mandamentos (o memorizado) a princípios (o compreendido) – dão boas-vindas a todas teorias deterministas, cada noção que lhes permita chorar: “Eu não pude evitar!”

É óbvio a razão porque a moralidade do altruísmo é um fenômeno tribal. Homens pré-históricos eram fisicamente incapazes de sobreviver sem se vincularem a uma tribo para liderança e proteção contra tribos inimigas. Em eras civilizadas, a causa da perpetuação do altruísmo não é física, mas psicoepistemológica: o homem de ego aprisionado e mentalidade perceptual é incapaz de sobreviver sem uma liderança tribal e “proteção” contra a realidade. A doutrina do autossacrifício não o ofende: ele não tem senso de ego e, muito menos, de valor pessoal – ele não sabe o que ele é chamado a sacrificar – ele não tem noção própria de coisas como integridade intelectual, amor à verdade, valores pessoalmente escolhidos ou dedicação apaixonada a uma ideia. Quando ouvem tratados contra o “egoísmo”, ele acredita que o que deve renunciar é adoração bruta e irrefletida do lobo solitário tribal. Mas seus líderes – os teóricos do altruísmo – sabem mais. Immanuel Kant sabia disso; John Dewey sabia disso; B. F. Skinner sabia disso; John Rawls sabia disso. Observe que não é a brutalidade irrefletida, mas a razão, a inteligência, a habilidade, o mérito, a autoconfiança e a autoestima que eles estão à solta para destruir.

Atualmente, estamos vendo um espetáculo aterrador: a magnífica civilização científica dominada pela moralidade da selvageria pré-histórica. O fenômeno que torna isso possível é a divisão psicoepistemológica das mentes “compartimentadas”. O melhor exemplo são os homens que se refugiam nas ciências físicas (ou na tecnologia, indústria ou negócios) na esperança de encontrar proteção da irracionalidade humana, abandonando o campo das ideias aos inimigos da razão. Entre esses refugiados estão os melhores cérebros da humanidade. Mas tal refúgio é impossível. Estes homens, que realizam proezas de integração conceitual e pensamento racional em seus trabalhos, tornam-se anticonceituais impotentes em todos os outros aspectos de suas vidas, particularmente nas relações humanas e nos assuntos sociais (por exemplo, compare as realizações científicas de Einstein com as suas opiniões políticas).

O progresso humano requer especialização. Mas uma sociedade de divisão do trabalho não pode sobreviver sem uma filosofia racional – sem uma sólida base de princípios cuja tarefa é treinar a mente humana a ser humana, i.e., conceitual.

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Traduzido por Lucas Azambuja.

Revisado por Matheus Pacini.

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[1] Originalmente publicado em The Ayn Rand Letter, 4 de Junho de 1973.

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