Razão, egoísmo e progresso material andam de mãos dadas. Identificar a realidade é identificar a nossa própria natureza individual, perceber que somos responsáveis por nossa própria felicidade, e que ela depende de nossas escolhas. Identificar a realidade também é identificar a natureza do mundo que nos cerca e encontrar formas de usar os recursos disponíveis para melhorar nosso padrão de vida. O pensamento irracional, porém, segue a lógica contrária.
A antítese da razão é o que Ayn Rand chama de primazia da consciência[1], ou seja, a crença de que a mente não identifica, mas cria a realidade que percebemos. Quem não respeita a realidade, não é capaz de identificá-la e, em vez de agir para moldar o mundo à sua vontade, pode apenas moldar sua percepção do mundo, evadindo aquilo que lhe causa sofrimento. Como a incerteza é uma emoção desconfortável, a ilusão de uma vida sem riscos é uma fantasia comum entre evasores habituais.
Quem não reconhece a ação racional de seus antepassados como a origem do progresso material ao qual tem acesso se coloca na posição de um herdeiro incapaz de fazer jus à fortuna que adquiriu[2]. Por um lado, sem entender como manter a riqueza herdada, está fadado a vê-la desaparecer. Por outro, sem entender como aproveitá-la, está fadado a usá-la contra si mesmo, transformando-a em uma fonte de ansiedade e insegurança. Nas palavras mais belas e eloquentes de Ayn Rand: “O dinheiro é o flagelo dos homens que tentam inverter a lei da causalidade – os homens que tentam substituir a mente apoderando-se dos produtos da mente”[3]
O progresso científico dos últimos séculos nos aproximou cada vez mais desse ideal risk-free (livre de risco), diminuindo as incertezas. Processos de higienização e preservação de alimentos, como a pasteurização e a refrigeração, reduziram drasticamente o risco de infecções alimentícias. Os avanços médicos mitigaram o risco de doenças e lesões, transformando problemas mortais em pequenos inconvenientes. A produção em massa não só possibilitou que o cidadão comum ultrapassasse a qualidade de vida de reis e nobres[4] como, ao padronizar a produção, diminuiu os riscos associados ao uso de máquinas, veículos e outros bens.
Mais recentemente, até mesmo as relações sociais passaram por um processo semelhante de “pasteurização”. Ao padronizar as interações e estabelecer uma distância maior entre os indivíduos, as redes sociais diminuíram o risco de se relacionar com outras pessoas. O completo estranho em uma mesa de bar foi substituído por uma rede de perfis interconectados que nos fornecem informação a uma distância segura. Até mesmo o risco de deixar transparecer mais do que se quer em uma conversa, através da entonação e da linguagem corporal, foi suplantado pela conversa esterilizada dos chats virtuais.
Os benefícios desse processo no contexto medieval de miséria, fome e morte crônicas são óbvios – aqueles que criaram a riqueza, e a entendiam, conseguiram desfrutá-la. Ao abandonarmos os valores racionais que balizaram as revoluções científica e industrial, porém, nos tornamos reféns de nossa herança[5]. A redução dos riscos e incertezas da vida quotidiana, antes entendida como um valor subsidiário, como um meio para alcançar à felicidade do indivíduo, agora é tirada de contexto, tornando-se mais importante que a própria vida. É exatamente isso que pregam os defensores dos lockdowns forçados e do “novo normal”: sacrifique a sua felicidade para não correr riscos.
A riqueza material, antes entendida como consequência do empreendedorismo, da habilidade excepcional, e da coragem de utilizá-la, agora é considerada um fato metafísico[6], que sempre existiu e sempre existirá – por isso, achamo-nos capazes de parar a economia mundial para nos escondermos de uma ameaça sobre a qual pouco sabíamos. Preferimos, enquanto sociedade, incorrer em um custo alto, porém “seguro”, do que permitir que indivíduos corram riscos: esse mesmo princípio está por trás tanto do estado de bem-estar social que corroeu as nossas instituições, quanto da ditadura médica que agora corrói nossa economia e sanidade mental.
Para ilustrar o custo de nossa aversão ao risco, basta comparar um copo de leite não processado, ainda quente com o calor da vaca que o produziu, com seu equivalente industrial, pasteurizado e homogeneizado. A primeira opção traz consigo um risco, ainda que marginal, de doenças, mas são precisamente as bactérias e substâncias “perigosas”, retiradas no processamento industrial, que conferem ao leite um sabor objetivamente mais complexo – e na opinião subjetiva de muitos, tornam-no mais saboroso. Para evitar os riscos associados ao leite, acabamos com a sua existência, substituindo-o por um outro produto. Para mascarar nossa perda, batizamos esse novo produto de “leite”, e fingimos que nada aconteceu.
Ayn Rand explica, em diversas ocasiões, que o padrão pelo qual o indivíduo deve julgar suas ações não é sua mera sobrevivência, mas sua capacidade de viver como um ser humano, satisfazendo suas necessidades físicas e espirituais. A vida de um indivíduo deve ser seu valor último, e a sobrevivência é necessária à vida – mas trocar a capacidade de viver bem por uma sobrevivência com riscos mínimos é sacrificar aquilo que inicialmente confere valor à sobrevivência. Pautar-se pela sobrevivência é ter como padrão moral, não a vida, mas a morte – no caso, a mera ausência da morte.
Pautar-se pela sobrevivência é abandonar a busca pela felicidade em prol de uma fuga do sofrimento. Apenas aqueles que buscam viver como seres humanos e se arriscam para concretizar seus valores, podem conhecer o sofrimento de ter suas expectativas destruídas. Aqueles que buscam não sofrer, precisam apenas seguir o conselho dos filósofos estoicos[7], abstendo-se de dar valor à vida.
Pautar-se pela sobrevivência é abandonar a virtude da coragem, substituindo-a pelo medo. Agir sem conhecer os riscos de suas ações, ou ignorá-los deliberadamente, não é coragem, mas estupidez. Coragem é identificar apropriadamente os riscos envolvidos em nossas ações, e ainda assim agir para alcançar nossos valores. Ao inverter o padrão moral, o culto à pasteurização transformou a coragem em transgressão e irresponsabilidade, elevando o medo e a covardia ao patamar de virtudes.
A coragem de tomar riscos é uma virtude egoísta, pois se arriscar só é virtuoso se o indivíduo espera colher os frutos de seu esforço. O medo, por outro lado, é uma “virtude” altruísta – o meu medo me impede de agir, e a minha inação deixará meu vizinho seguro. Preciso, então, confiar que o meu vizinho compartilhe o meu medo e me proteja, punindo-o caso não o faça. Como previsto por Rand, abandonar a vida em prol da morte como padrão de valoração é abandonar o egoísmo em prol do altruísmo, e leva inexoravelmente à violência.
Abandonar a vida, a felicidade e a coragem de agir é abandonar a liberdade como valor político. A liberdade é a sanção social da capacidade de escolha e ação do indivíduo e, portanto, é importante apenas àqueles que desejam agir, e tomar riscos. Aqueles que desejam seguir um consenso, seja ele qual for, jamais precisaram ser livres para fazê-lo. O indivíduo que está disposto a sacrificar a felicidade em nome da segurança precisa apenas de um “bom soberano”, seja ele um rei, uma instituição burocrática, ou um suposto consenso científico.
A crise política em que nos encontramos é resultado da exacerbação desse processo cultural, de substituição da vida pela não-morte como padrão moral. Doenças sempre existiram – passamos por, pelo menos, meia dúzia de pandemias na última década sem muito alarde[8], e os pais fundadores dos Estados Unidos chegaram a fazer uma revolução em meio a uma epidemia de varíola[9]. O que mudou foi a nossa atitude em relação às doenças, de uma identificação racional do risco, seguida de ação, a uma projeção de nossos medos e desejos irracionais, seguida de uma inércia pseudomoralista.
A diminuição dos riscos, que sempre teve a vida como razão de ser, tornou-se um fim em si mesma, em detrimento da vida. Para proteger nossas crianças dos perigos que as espreitam lá fora, seguimos trancando-as em casa. Para evitar o desemprego, seguimos matando o empreendedorismo, na eterna missão de transformar todos em burocratas e funcionários públicos. Para evitar ofender o próximo, seguimos matando a arte, o entretenimento, o jornalismo e a ciência.
Assim como fizemos com o leite, vamos nos acostumando gradualmente a ter uma alma cada vez mais insípida, para evitar os riscos de uma alma verdadeira – depois, chamamos o ser resultante de “Homem”, e fingimos que nada mudou. Pessoalmente, eu prefiro viver – por mais arriscada e radical que seja essa ideia.
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Revisado por Matheus Pacini.
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[1] A primazia da existência (da realidade) é o axioma de que a existência existe, i.e. que o universo existe independentemente da consciência (de qualquer consciência), de que as coisas são o que são, de que elas possuem uma natureza específica, uma identidade. O seu corolário epistemológico é o axioma de que a consciência é a faculdade de perceber aquilo que existe – e que o homem adquire conhecimento da realidade olhando para fora. A rejeição desses axiomas implica uma reversão: a primazia da consciência – a noção de que o universo não possui existência independente, que ele é o produto de uma consciência (humana, divina, ou ambas). Seu corolário epistemológico é a noção de que o homem adquire conhecimento olhando para dentro (ou para a sua própria consciência, ou para as revelações que recebe de uma outra consciência superior) – “Philosophy, Who Needs It”, 1982, Ayn Rand, p. 24 – Tradução Livre.
[2]“Só o homem que não precisa da fortuna herdada merece herdá-la – aquele que faria sua fortuna de qualquer modo, mesmo sem herança. Se um herdeiro está à altura de sua herança, ela o serve; caso contrário, ela o destrói. Mas o senhor diz que o dinheiro o corrompeu. Foi mesmo? Ou foi o herdeiro que corrompeu seu dinheiro? Não inveje um herdeiro que não vale nada: a riqueza dele não é sua, e o senhor não teria tirado melhor proveito dela. Não pense que ela deveria ser distribuída – criar 50 parasitas em lugar de um só não reaviva a virtude morta que criou a fortuna. O dinheiro é um poder vivo que morre quando se afasta de sua origem. Ele não serve à mente que não está a sua altura.” – A Revolta de Atlas, 1957, Ayn Rand, p. 84-85
[3] Trecho do “Discurso Sobre o Dinheiro” de Francisco D’Anconia, personagem de A Revolta de Atlas, disponível integralmente no Objetivismo Brasil.
[4] O caso de Henrique VIII, rei da Inglaterra e fundador da Igreja Anglicana, é especialmente emblemático. A maioria dos historiadores atribui sua morte a uma perna quebrada, que posteriormente levou à sua obesidade, furúnculos, e gota. Outras teorias atribuem sua morte à sífilis ou ao escorbuto – todos concordam, porém, que um dos homens mais ricos e poderosos do mundo no século XVI morreu devido a problemas facilmente solucionáveis para um indivíduo de classe média no Brasil atual.
[5] Para mais informações sobre a mudança cultural entre a Revolução Científica e a nossa era, ver The Dim Hypothesis, de Leonard Peikoff.
[6] Ayn Rand diferencia fatos metafísicos de fatos humanos (man-made). O primeiro tipo se refere àquilo que independe, e está fora do controle do Homem, como a lei da gravidade, e o segundo, aos fatos resultantes da escolha humana, como a existência de sistemas políticos.
[7] O Estoicismo foi uma escola filosófica famosa tanto na Grécia Antiga quanto no Império Romano, que vem ganhando popularidade ao longo das últimas décadas. A estratégia estóica consiste em deixar de dar valor à vida, para evitar sofrer com suas perdas inevitáveis. Marco Aurélio, estóico romano, ilustra perfeitamente essa noção em suas Meditações:
“Quando tiveres carne e outros petiscos à tua frente reflete: Isto é peixe morto, ou aves, ou galináceos, ou porco; ou: Este Falerno é uma parte do sumo de um punhado de cachos de uva; o meu manto purpúreo é lã tingida com um pouco de sangue de um marisco; a cópula é a fricção dos membros e uma ejaculação. Reflexões deste tipo vão ao fundo das coisas, penetrando nelas e expondo a sua verdadeira natureza. O mesmo processo deve ser aplicado a toda a vida. Quando as credenciais de uma coisa parecem muito plausíveis, desnuda-a, observa a sua trivialidade, e despe-a do manto de verborreia que lhe dá dignidade. A presunção é o que há de mais enganador, mas nunca ela é mais ilusória do que quando tu te convences de que o teu trabalho é muito meritório.”
[8] Desde a pandemia de gripe suína, em 2009, o mundo presenciou diversas infecções em escala internacional, como os surtos de MERS em 2012, ebola em 2014, zika em 2015, PFA em 2018 e varíola em 2019.
[9] A America do Norte presenciou uma trágica epidemia de varíola entre 1775 e 1782, em uma época na qual a doença ainda era extremamente mortífera. A guerra revolucionária que resultou na fundação dos Estados Unidos da América, por sua vez, se extendeu de 1765 a 1783.