O “Cântico” de Rand e a Venezuela de Maduro

A obra Cântico de Ayn Rand, escrita em 1937, é um grande exemplo de crítica à realidade totalitária e coletivista da época. Enquanto o mundo se encontrava sob regimes autoritários e intervencionistas, como socialismo, fascismo e nazismo, a autora chocou a todos ao trazer naquela obra um contraponto frente à disseminação do coletivismo.

Tal contraponto é feito através do personagem principal da obra, “Igualdade 7–2521”, um jovem ingênuo que se mostra disposto a questionar o pensamento coletivo e ir atrás da descoberta da origem de todas as coisas e do seu próprio eu – atitude essa que não era comum entre os demais indivíduos na época. O pensamento individualista, dentro do contexto do romance, é na verdade considerado um crime, enquanto a criatividade é vista como um mal que deve ser combatido pela raiz.

É neste cenário que é então desenvolvido o enredo da obra, onde Igualdade 7–2521 é inicialmente apresentado como um dos milhares de escravos inconscientes do Estado, os quais desconhecem o profundo e verdadeiro significado do termo Liberdade. Tal realidade se dá, pois o Estado, dentro do contexto da obra, tem como propósito exercer um controle abusivo sobre os homens, extinguindo toda e qualquer individualidade, e impossibilitando a ocorrência de rebeliões e conflitos, uma vez que todos são iguais e, desse modo, não detêm poder de escolha. Assim, o herói que tinha um sonho de ser cientista, é rapidamente dissuadido e levado a perseguir uma carreira de varredor de rua, posição essa que foi julgada pelos sábios, membros do Conselho de Profissões, como a que melhor lhe convinha dados os interesses do coletivo.

Não apenas Igualdade 7–2521 não foi incentivado a perseguir uma carreira de cientista, mas é possível perceber ao longo da obra que a física e a ciência são tidas como prejudiciais ao coletivo; como exaltadoras de indivíduos perversos e capitalistas, os quais propõe invenções que trazem apenas benefícios para uma minoria e são vistos como pecadores. Tal cenário faz então surgir um sentimento pungente de culpa na cabeça de Igualdade 7–2521, que se considera um pecador por pensar diferente da maioria das pessoas.

O personagem só passa a repensar tal sensação quando se vê adentrando um túnel proibido juntamente com seus amigos. A passagem, que leva a uma floresta desconhecida, passa então a representar liberdade para o herói, que se vê rapidamente em uma trajetória buscando desvendar todos os mistérios por trás da máscara da sociedade controladora, se colocando em uma missão pela busca da liberdade e de um futuro promissor que até então ele nem imaginava ser possível.

Repentinamente, Igualdade 7–2521 se dá conta de que os feitos só são possíveis através do gênio humano. Ou seja, não são as leis que levarão ao brilhantismo e nem o cumprimento do seu dever definido pelo Estado que levará um indivíduo ao bem-estar; não é fazendo o mínimo e apenas o esperado que se alcança grandiosidade e progresso, e sim trabalhando arduamente e com esforço, produtividade, devoção e contribuindo com ideias e pensamentos individuais. Apenas assim cada homem irá encontrar o seu valor na sociedade.

Vale ressaltar também que o próprio relacionamento romântico é proibido, pois o Estado julgava que ter prazeres era considerado pecado e a liberdade de escolher um parceiro livremente não era destinada aos homens, pois estes eram tidos como seres irracionais, incapazes de identificar seus desejos e diferenças.

Porém, dado o seu espírito desbravador e desafiador das doutrinas impostas pela sociedade, Igualdade 7–2521 quebra mais essa imposição e se vê em meio a um relacionamento com “Liberdade 5–3000”, representada como personificação da imagem feminina e a principal companheira do herói em suas aventuras em busca de respostas e trilhas que os levem em direção a uma sociedade livre. 

Buscando fazer um paralelo o século XXI, são evidentes as similaridades entre o contexto vivido pela sociedade em Cântico com a realidade do povo Venezuelano, que atravessa uma das piores crises econômicas e humanitárias já vividas na América Latina. O Estado autoritário apresentado no romance, que controla instintos individualistas e pune qualquer ameaça notável ao coletivo com severas punições, muito se assemelha ao rumo que a liderança de Nicolas Maduro traça para a Venezuela. As similaridades não estão apenas nas punições físicas impostas pelas autoridades, mas também nas punições sociais que os indivíduos são obrigados a enfrentar em um regime autoritário.

Dados que comprovam a comparação vem da Pesquisa Nacional de Condições de Vida colhida por três grandes universidades da Venezuela, os quais mostram que 94,5% da sociedade vive na pobreza, com menos de 3,2 dólares por dia, fato esse agravado pela realidade de que 75% desse contingente habita a zona da miséria. Essa realidade de pobreza não é encontrada em nenhum outro lugar do planeta, nem mesmo em nações africanas onde a escassez historicamente maltrata os indivíduos, como Madagascar e o Sudão do Sul.

É claro que não é razoável atribuir a pobreza do país apenas às diretrizes tomadas por um regime que se inclina ao autoritarismo – até porque a Venezuela não chega nem de perto a ser o regime mais extremo do planeta. Existem outros, como a China, que mesmo adotando medidas que vão severamente contra o individualismo, vem diminuindo significativamente os níveis de pobreza absoluta do país nos últimos anos. A título de comparação e de acordo com dados do Banco Mundial, a China tirou mais de 800 milhões de habitantes da pobreza desde o lançamento de suas reformas econômicas no final dos anos 1970 e alcançou em 2019 uma impressionante taxa de pobreza absoluta de apenas 0,2%. Obviamente que, por se tratar de um país autoritário onde o controle de dados está nas mãos do governo, é possível questionar a acuracidade de tais dados, mas a tendência de queda nas últimas décadas é inquestionável, uma vez que vem sendo suportada por um crescimento notável da economia chinesa, ilustrado por métricas um pouco mais tangíveis e confiáveis, como o PIB do país.

Dessa forma, deixa-se claro que a pobreza não pode ser atrelada unicamente ao fato de existir um governo autoritário. Mas, de forma incontestável, o regime coloca algumas barreiras para o enriquecimento pessoal da população, afinal, em países como a China, quaisquer recursos podem ser confiscados ao bel-prazer do Estado – o que já ocorreu anteriormente na história.

Apesar da estrutura autoritária chinesa, algumas exceções teimam em perseverar, como o empresário Jack Ma Yun, que conseguiu construir riqueza dentro do regime autoritário Chinês. Uma hipótese para a possibilidade do surgimento das exceções (outliers) é de que o regime sem liberdades resulta em dois cenários: sendo um benéfico ao indivíduo e outro que o coloca em desvantagem – a depender do quão associado ao partido que controla o Estado aquele indivíduo está. Como as rédeas da economia estão na mão do governo, e medidas como a imposição de regulações e taxas são usadas como mecanismos de controle, existe claramente margem para aqueles indivíduos que souberem navegar a política (ou estiverem agindo em parceria com o Estado) tirarem vantagem do sistema.

É possível perceber na realidade Chinesa um certo contraponto ao que é exposto por Rand, uma vez que a autora ressalta que a riqueza de um indivíduo é fruto de sua liberdade para pensar (sem ser coagido) e que a mesma só é moralmente sua se for fruto da concretização de seu propósito na realidade, sem intervenções governamentais.  Entretanto, nota-se que em regimes autoritários há indivíduos que constroem e acumulam riquezas, inclusive utilizando-se do Estado para tanto.

Em suma, a realidade de um povo e sua capacidade de enriquecer não deve ser necessariamente atrelada exclusivamente ao regime de governança do país em que vive, pois existem diversos outros fatores que devem ser considerados, tais como aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais. De qualquer forma, em meio a realidade do século XXI, é impossível fechar os olhos e não enxergar a péssima influência que o autoritarismo traz para um país. A se ilustrar pela Venezuela, a qual, sem um ajuste de trajetória em um futuro próximo, pode estar caminhando a uma realidade que muito poderá se assemelhar àquela vivida pelo “Igualdade 7–2521” de Rand.

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Revisado por Matheus Pacini.

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