A obra de Ayn Rand é mundialmente respeitada por trazer à tona discussões sobre a real face das políticas coletivistas e os perigos por trás de ataques à liberdade do indivíduo e suas consequências. A autora explora isso muito bem no livro Cântico, em que o herói Identidade 7-2521, nascido em uma sociedade completamente coletivista, luta contra um sistema sem saber que é possível uma alternativa ao mundo distópico coletivista onde vive. Ao primeiro olhar, o livro pode soar muito distante da realidade, mas traz analogias que, se verificadas com atenção, nada mais são que projeções extremas de exemplos bem atuais de políticas estatistas da história recente.
No prefácio do romance, Rand comenta sobre a crescente narrativa estatista ganhando popularidade – na época, em 1937. Ela reflete sobre o surgimento cada vez mais frequente de trabalhos compulsórios travestidos de políticas para o bem do povo e a constante isenção moral das pessoas que defendem isso, não se prestando elas a desdobrar as consequências mais óbvias dessas políticas. Talvez nem soubesse Rand que sua crítica continuaria tão atual nos dias de hoje, quase 100 anos depois.
A história começa apresentando o herói da história com um nome peculiar: Identidade 7-2521. Ele nasceu em uma época temporalmente muito à frente da nossa, onde o bem de todos está muito acima do bem pessoal, e toda e qualquer individualidade é um crime. A obra narra o pensamento do protagonista, que se mostra inicialmente preocupado com seus pensamentos e curiosidade. O mundo descrito ali é um em que todos os benefícios e regras sociais são determinados pelo Estado, desde as atribuições de trabalho até os horários de acordar, comer, trabalhar, socializar e dormir. O coletivismo é tão forte que não existe mais a conjugação singular dos verbos e as pessoas só conseguem se referir a si mesmas no plural com “nós” e “vocês”. A sociedade é completamente atrasada tecnologicamente, onde as pessoas viviam menos de 50 anos e velas eram usadas, além de todos usarem roupas antigas como túnicas simples com poucas cores padronizadas.
O herói reflete como era infeliz por ter nascido alto, pois isso o destacava dos demais: como diziam os mais sábios, isso era uma maldade intrínseca, já que seus cresceram acima de seus irmãos. Conta também como tinha dado azar de ser inteligente, uma vez que todos deveriam ser iguais em inteligência, ou seja, era injusto com seus irmãos. Queria ser um erudito – cientistas daquela sociedade -, mas o Estado determinara que ele fosse varredor de rua. Observa-se no protagonista uma irrepreensível curiosidade, inerente ao ser humano, que o leva, ainda que temeroso de ser repreendido pelos conselhos da cidade, a encontrar uma câmara subterrânea dos “Tempos não-mencionáveis” com tecnologias aparentemente muito avançadas, como paredes pintadas e trilhos de trem.
Depois de se aventurar escondido das regras da cidade e se atrever a estudar como funcionam as coisas da natureza – como dissecar animais mortos e testar misturas químicas -, o livro descreve a experiência de Identidade 7-2521 ao conhecer pela primeira vez Liberdade 5-3000, uma mulher que o faz sentir pensamentos proibidos. Ele não podia desejar uma mulher, pois relações entre homens e mulheres eram permitidas apenas para acasalamento, durante a primavera, e não para felicidade pessoal – o que contrastaria com o interesse de todos. O herói ignora isso e se sente feliz como nunca pela primeira vez ao conhecê-la. Tanto que dá um novo nome para ela, “Excelente” e, pela primeira e única vez por quase toda a obra, se refere a ela no singular. Com medo de um dia ser repreendido ou enlouquecer, Identidade 7-2521 descreve os limites da cidade, as Florestas Desconhecidas, para onde não se devia ir e também um louco que foi queimado em praça pública por dizer uma palavra proibida de ser dita pela sociedade, mas que não soube dizer qual era.
O tempo passa e o herói descreve uma grande descoberta que teve sozinho em sua câmara subterrânea: a eletricidade e a luz oriunda dela por fios, em uma caixa de vidro quadrada. Ele descobre isso testando os materiais encontrados no túnel e se sente mal por isso, pois estava transgredindo todas as regras que conhecia, mas isso não o impede de continuar.
Depois da descoberta, Identidade 7-2521 encontra novamente Liberdade 5-3000 e conversa com ela pela primeira vez. Se tocam pela primeira vez por acidente enquanto ela serve água para ele com as mãos e se separam com um sentimento de felicidade ardente pelo sentimento que sentiam um pelo outro misturado com um intenso medo do crime que cometeram. Extasiado por uma felicidade jamais sentida, o protagonista volta para seu túnel e sente uma vontade imensa de levar sua descoberta para o mundo e ajudar a todos a evoluir tecnologicamente.
Um dia voltando para casa, o herói perde a hora e é pego pelo conselho da cidade fora do dormitório em horário proibido. Resiste a falar onde estava com medo de lhe roubarem suas invenções e, por isso, é fortemente torturado a chibatadas, mas não se entrega. Após alguns dias, decide fugir da prisão para seu túnel e percebe encontrar pouca dificuldade em fugir, uma vez que era extremamente raro e sem sentido alguém fazê-lo, dada a falta de opções para um fugitivo naquela sociedade. O conceito de liberdade era pobre para alguém que não seguisse as regras e não tivesse para onde ir.
Depois de chegar de volta ao seu esconderijo, Identidade 7-2521 decide, mesmo que machucado, levar sua invenção para o Conselho dos Eruditos e apresentar sua invenção – a lâmpada elétrica, em uma caixa de vidro com uma luz no meio. Foi surpreendido pela reação dos eruditos quando o hostilizaram por ser apenas um varredor de rua se desviando da função que o Estado lhe determinara e depois quando eles negaram sua invenção por não ser uma invenção coletiva e aprovada por toda a sociedade mundial. Curiosamente, eles explicam como a vela demorou 50 anos para ser aprovada pelo Conselho Mundial como evolução à tocha.
Desolado duplamente por ser torturado e hostilizado pelo Conselho dos Eruditos, do qual sempre sonhou fazer parte, o protagonista agarra sua caixa de vidro e foge incansavelmente da cidade até se ver dentro da floresta desconhecida, onde só os loucos iam parar algumas vezes ao longo das décadas.
Depois de alguns dias vivendo na Floresta, o herói sente uma estranha sensação de felicidade por não precisar obedecer mais a nenhum ritual de sua cidade, acordando sem uma campainha e sem pressa. Se sentia feliz por correr atrás de sua própria comida e percebeu como essa liberdade – o herói não descreve com esta palavra, pois até então não a conhecia – o fizesse mais feliz e vigoroso que seus conhecidos na cidade antes de sua fuga. Além disso, para seu espanto, encontra uma pessoa na Floresta: Liberdade 5-3000. Ela havia o seguido uma vez que tomara notícia de sua fuga e deixou claro que queria fugir com ele para viverem juntos.
Completamente inebriados pela felicidade da companhia um do outro, eles viveram por dias vagueando pela floresta querendo ficar o mais distante possível da cidade até que encontraram, no alto de uma montanha, uma estranha casa. O lugar possuía tecnologias completamente desconhecidas para os dois, como espelhos, panelas de cobre e roupas coloridas e desgastadas pelo tempo. O herói descreve com espanto como aquela casa parecia ter sido construída para apenas 2 pessoas morarem ali, o que era estranho, dado que as casas da cidade abrigavam pelo menos 1 ou 2 dezenas de pessoas.
Após vários livros encontrados pela casa, Identidade 7-2521 descobre pela primeira vez a palavra “eu” e aprende a conjugar os verbos e pronomes no singular. A partir de então, o herói descobre com revolta o atraso da sociedade em que vivera com sua companheira e o quão caro custou para aquele povo o coletivismo exacerbado no qual as pessoas perdem sequer o direito de se identificarem com um nome que os separe dos demais.
A partir de então, eles se dão nomes: Prometeu e Gaia, e começam a refletir sobre a importância do que obtiveram desde que fugiram da cidade. Dos bens que adquiriram e como era importante proteger aquele “forte” das influências retrógradas dessa sociedade. Prometeu reflete finalmente sobre a importância de construir as coisas para si mesmo antes de pensar nos seus irmãos e conclui que não há mal nisso como lhe fora ensinado, e que, pelo contrário, o bem estava em ensinar isso a seus amigos, deixados para trás na cidade. O livro termina então com Prometeu construindo proteções contra invasões de sua propriedade e prometendo espalhar suas descobertas para o maior número de pessoas possível ao redor do mundo, recuperando para a sociedade seus tempos áureos de respeito à individualidade do ser humano e defendendo a palavra sagrada, outrora proibida pela sociedade: ego.
Interessante como as alegorias trazidas por esta obra, ainda que distópica, nos convidam a pensar sobre os limites dos impactos que políticas estadistas podem ter na nossa sociedade. Na Alemanha oriental, o Estado determinava com que as crianças deveriam trabalhar quando adultas logo na adolescência; cada vez mais o controle da informação é sugerido de maneira convidativa travestido de combate à “desinformação” e; na América Latina, é comum ver os fins justificando os meios em ditaduras financiadas pela narrativa do “bem de todos”. Como Rand comenta em suas notas, as pessoas que suportam ideias coletivistas “esperam ver-se num mundo de ruínas sangrentas e de campos de concentração e escapar da responsabilidade moral lamuriando: ‘Mas não foi isso que eu quis dizer'”.
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Revisado por Matheus Pacini.
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