Internacional, o amigo de Igualdade

De acordo com Rand, o individualismo “considera o homem – todo homem – como uma entidade independente e soberana que possui um direito inalienável à sua própria vida, um direito derivado de sua natureza como ser racional” (The Virtue of Selfishness, p. 129). Para viver como um indivíduo, o homem deve pensar por si mesmo, em oposição àqueles que escolhem viver como pensadores de segunda-mão que se alimentam do trabalho de outros. O ato de pensar envolve duas questões filosóficas relevantes: o livre-arbítrio e o ato de valorar.

Em Cântico, International cresce e vive sua vida em uma sociedade coletivista na qual, por lei, as ações que visam a busca de valores individuais são proibidas. O estado lhe diz aonde ir, controla sua educação e lhe atribui trabalho, fazendo com que sua vida seja dedicada à seus irmãos e não à ele mesmo. A maioria das pessoas nessa sociedade aceita as ideias do coletivismo, o que faz com que o medo seja a emoção predominante expressada pelas pessoas, que têm a cabeça baixa, os olhos sem brilho, os ombros curvados e os músculos contraídos (Anthem, 12). A aceitação da ideia de que o homem deve viver para e por seus irmãos impede quase todos de buscar valores pessoais.

Mas International não é assim. Ele é um “jovem alto e forte e seus olhos são como vaga-lumes, pois há riso em [seus] olhos” (Anthem, 7). Apesar da doutrinação coletivista, ele ainda tem livre arbítrio e suas próprias preferências. Ele tem as características básicas necessárias para ser um individualista, mas lhe falta um pouco do conhecimento e do contexto político-social necessários para sê-lo de forma consistente. Dentro do escopo do que lhe é permitido fazer, ele age muitas vezes como um individualista. Ele comete a transgressão da preferência ao ser amigo de Igualdade. Quando estava na Casa dos Estudantes, ele fazia desenhos engraçados nas paredes com pedaços de carvão, fazendo com que os outros rissem. É justamente por ter várias preferências pessoais que ele foi designado para o trabalho de varredor de rua, como Igualdade.

Na cena da descoberta do túnel, que é fundamental na história, o compromisso de International com os valores que ele mesmo escolheu é contrastado com os valores de sua sociedade, e ele tem que escolher o que é mais importante para ele. Essencialmente, ele tem de escolher entre seguir sua própria mente ou aceitar as ideias de seus irmãos. A cena é a seguinte:

International e Igualdade estão varrendo as ruas como fazem todos os dias. Enquanto trabalha, ele ouve Igualdade chamá-lo, e Igualdade lhe mostra a barra de ferro no chão que ele não conseguiu abrir sozinho. Como amigo de Igualdade, International o ajuda a raspar a terra ao redor da barra e eles conseguem puxar a grade e revelar uma abertura no chão que leva à um túnel. A reação imediata de International à essa descoberta é dar um passo para trás e dizer que “é proibido” descer (Anthem, 7). Ele diz ao Igualdade que “tudo o que não é permitido por lei é proibido” (Anthem, 7). Igualdade não tem um contra-argumento, mas decide descer pelos anéis de ferro mesmo assim. Isso assusta International porque ele está testemunhando alguém violar as leis de sua sociedade. Ele optou por ficar parado e ver o Igualdade descer.

Quando o Igualdade retorna, International está visivelmente assustado, pois seu sorriso não era alegre, mas “perdido e suplicante” (Anthem, 8). Ele queria “relatar a descoberta [deles] ao Conselho da Cidade” (Anthem, 8). Igualdade diz que eles não devem relatar a descoberta ao Conselho Municipal ou à outras pessoas. Isso chocou International, pois ele nunca tinha ouvido nada parecido antes e, por isso, levou as mãos aos ouvidos. Mas quando Igualdade lhe perguntou se ele o denunciaria ao Conselho e o veria ser chicoteado até a morte diante de seus olhos, International imediatamente se endireitou e respondeu: “Preferimos morrer” (Anthem, 8). Esse é o momento em que os valores individualistas de International e os valores coletivistas de sua sociedade entram em conflito. Quando a Igualdade deixa claro as consequências de seguir as ideias coletivistas, International percebe que o que realmente lhe interessa é o valor que escolheu, ou seja, seu amigo Igualdade. Não é apenas o fato de International dizer que não denunciará Igualdade, mas que prefere morrer a trair seu amigo.

International tem livre-arbítrio e escolheu sua própria mente racional em oposição à vontade de seus irmãos. Isso exigiu muito foco mental e controle de suas emoções, pois seus olhos estavam cheios de lágrimas que ele não ousava deixar cair. Ele diz ao Igualdade que, embora o Conselho, que é a vontade de seus irmãos, seja sagrado, ele prefere obedecer ao Igualdade e prefere ser “mau” com ele em vez de “bom” com seus irmãos. Portanto, ele nunca traiu ao Igualdade.

Esse retrato do individualismo é distinto de Ayn Rand e as visões convencionais do que significa ser um individualista são bastante diferentes na cultura em geral. Eu penso que uma dessas visões convencionais combina o individualismo com o narcisismo, ou seja, fazer com que tudo o que você faz gire em torno de você. Se o International fosse de fato um “individualista-narcisista”, ele só pensaria em si mesmo. O objetivo do Internacional nesse caso seria o reconhecimento do Conselho por seu compromisso com a vontade de seus irmãos. Ele teria denunciado imediatamente o crime cometido por Igualdade e, de fato, o teria visto ser chicoteado até a morte. Como a descoberta do túnel é o pontapé inicial da jornada de Igualdade, se ele tivesse sido preso pelo Conselho por seu crime, é razoável pensar que ele poderia ter simplesmente aceitado seu crime e passado o resto da vida na prisão.

Mas Rand retratou sua visão do individualismo, que é filosoficamente distinta. Um individualista é alguém que respeita os direitos inalienáveis dos outros e que usa seu livre-arbítrio e sua mente racional para escolher seus próprios valores.

Embora em Cântico só vejamos os pensamentos de Igualdade porque o livro é composto de anotações em seu diário, temos uma noção de como International era como pessoa e o quanto estava comprometido com seus valores. Pelas breves descrições que vemos dele e pela cena no túnel, fica claro que International tinha as características básicas necessárias para ser um individualista. É por isso que, no final do livro, depois que Igualdade redescobre a filosofia do individualismo, ele decide voltar à sua antiga sociedade para resgatar International e alguns outros que apresentavam tais características.

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