Poucas pessoas trabalharam tanto como Henry Stuart Hazlitt (1894–1993) para promover a causa da liberdade. Hazlitt foi um crítico literário, economista e filósofo norte-americano que escreveu sobre negócios, literatura e economia para jornais como Wall Street Journal, The Nation, American Mercury, Newsweek, New York Daily Herald e Nova York.
Proponente do capitalismo laissez-faire e da Escola Austríaca de economia, Hazlitt foi um dos fundadores do Mises Institute, bem como editor-fundador da publicação libertária The Freeman, a qual foi posteriormente adquirida pela Foundation for Economic Education (FEE). Tanto a FEE quanto o Mises Institute disponibilizam gratuitamente uma grande variedade de livros e gravações de Hazlitt em seus respectivos sites.[1]
Hazlitt foi um escritor prolífico. Em seus mais de 70 anos de carreira, introduziu milhões de pessoas às ideias do liberalismo clássico e da liberdade individual. Além disso, era conhecido por conectar defensores do livre mercado. Por exemplo, Hazlitt apresentou Ayn Rand a Ludwig von Mises. De fato, Hazlitt disse a Rand que Mises a considerava “o homem mais corajoso da América”, um “erro” que a encantou, Não surpreende o fato de Hazlitt atrair as porque, segundo todos os relatos, era um homem de classe. Como conta Bettina Bien Greaves, bibliógrafa de Mises e amiga íntima de Hazlitt:
“Hazlitt era um homem acessível, de fácil abordagem; tinha uma atitude agradável, e não indiferente ou arrogante. Tinha estatura média, com feições regulares e um belo bigode. Vestia-se adequadamente para um jornalista que trabalhava no centro de Manhattan: terno e gravata. Além disso, era modesto, e sempre atencioso, gentil e gracioso com os outros.”[2]
Mais conhecido por seu livro clássico, Economia em uma única lição, Hazlitt escreveu mais de 15 livros, além de mais de dez mil editoriais, artigos e colunas. Suas outras contribuições incluem Thinking as Science, a The Anatomy of Criticism, Man vs. the Welfare State, The Foundations of Morality, The Failure of the New Economics, The Conquest of Poverty, The Novel Time Will Run Back, bem como vários volumes editados e milhares de ??capítulos de livros, artigos, comentários e resenhas). Certa vez, estimou ter escrito dez milhões de palavras e que sua obra geraria 150 volumes. Começando aos 20 anos, Hazlitt escreveu quase diariamente algo com o objetivo de promover a liberdade.
O que o distinguia de outros escritores de economia era a incrível clareza de seus escritos, além de sua capacidade de torná-los interessantes para leigos. Conseguiu tal feito concentrando-se em princípios, lançando mão de exemplos práticos ilustrados por um estilo de escrita direto e conversacional. Ademais, evitou o jargão técnico e a confiança exacerbada na estatística que contaminavam os textos da maioria dos economistas – para a tristeza da maioria dos leitores da época. Quando H. L. Mencken selecionou Hazlitt para sucedê-lo como editor literário na revista American Mercury, chamou Hazlitt de “único crítico competente de artes que era, ao mesmo tempo, um economista competente”, e “um dos poucos economistas da história que, de fato, sabia escrever”[3].
Autoconfiança em sua juventude
Henry Hazlitt nasceu em 28 de novembro de 1894, na Filadélfia. Seu pai faleceu quando ele tinha apenas dois anos de idade, deixando sua família na extrema pobreza. Sua mãe preferiu enviá-lo a uma escola para meninos pobres e sem pai na Filadélfia. Quando tinha nove anos, sua mãe se casou novamente com Frederick Piebes, que trabalhava na indústria, e a situação da família melhorou por um tempo. Então, a família se mudou para o Brooklyn, onde Hazlitt passou a estudar em escola pública. Quatro anos depois, de fora trágica, seu padrasto teve problemas com alcoolismo e veio a falecer, deixando a família novamente em apuros. Hazlitt disse que, em seu último ano do ensino médio, “desenvolveu o que supunha ser uma consciência intelectual.”
“Tive interesse por filosofia e psicologia. Minhas grandes influências eram Herbert Spencer e William James. Pretendia ir para Harvard para me tornar professor de Psicologia, escrevendo filosofia à parte como tinha feito William James. Mas nada disso era possível por falta de dinheiro”[4]
Ao final do ensino médio, em vez de Harvard, matriculou-se no City College de Nova York, que não cobrava mensalidades. No entanto, poucos meses depois, teve de abandonar a faculdade fazer vários bicos para sustentar sua mãe viúva. Contudo, em vez de ficar depressivo pela situação, ficou ainda mais determinado a ter sucesso. Como escreveu mais tarde, seu pouco tempo na faculdade “teve uma influência maior do que se pode supor à primeira vista, não tanto pelo conhecimento lá adquirido, mas pela consciência que desenvolveu quanto à necessidade de aprender ainda mais.”[5]
Hazlitt estava determinado a obter o máximo de conhecimento que pudesse para se tornar bem-sucedido. Os livros que lia tornaram-se sua verdadeira universidade, levando-o a iniciar seus estudos de forma autodidata, lendo e escrevendo prodigiosamente. Fez uso de bibliotecas, estudou os clássicos, leu livros didáticos de faculdades e desenvolveu habilidades de taquigrafia e digitação. O seu grande desejo era se tornar escritor.
Todos os seus esforços foram recompensados ??quando conseguiu um emprego no Wall Street Journal que, na época, era uma jornal de nicho que cobria apenas as notícias do mundo financeiro. Descreveu seu trabalho no WSJ como “parte estenógrafo, parte repórter”. Surpreendentemente, enquanto trabalhava ali, escreveu um livro intitulado Thinking as a Science, publicando-o em 1916, aos 21 anos de idade. Hazlitt escreveu o livro porque percebeu – pela sua experiência autodidata – que era mais importante pensar com clareza do que simplesmente absorver informações. Como explica nas páginas iniciais de seu livro:
“Todo homem sabe que existem males que precisam ser corrigidos. Todo homem tem ideias bem-definidas sobre quais são esses males. Mas para a maioria deles, um sempre se destaca tão vividamente que faz perder todos os outros de vista, levando-o a tratá-lo como consequências naturais de um mal de estimação ainda maior.”
“Para o socialista, esse mal é o sistema capitalista; para o proibicionista, é a intemperança; para a feminista, é a sujeição das mulheres; para o clérigo, é o declínio da religião; para Andrew Carnegie, é a guerra; para o republicano convicto, é o Partido Democrata, e assim por diante, ad infinitum.”
“Também tenho um pequeno mal de estimação, que, em momentos mais exaltados, posso relacionar a todos os outros. Esse mal é a negligência do ato de pensar. E quando digo pensar, refiro-me realmente a pensar, pensamento independente, pensamento complexo.”[6]
O livro é excepcional considerando a idade de Hazlitt na época, bem como as dificuldades que enfrentou durante seus primeiros anos de vida. Na discussão da relação entre teoria e prática, já é possível ver sinais de seu estilo de escrita e de como abordaria a análise econômica.
No início da I Guerra Mundial, Hazlitt se alistou e foi enviado para uma base no Texas. Ao final da guerra, retornou a Nova York e seguiu escrevendo para vários jornais – como editor financeiro, editor literário, redator editorial e, por fim, membro do corpo editorial do New York Times, onde escreveu a maioria de seus editoriais sobre economia.
Hazlitt não precisou de faculdade, conquistando sozinho uma verdadeira educação autodidata na prática. Henry Hazlitt foi um herói de Horatio Alger da vida real, o epítome de um self-made man.[7]
Principais influências
Com o sucesso na carreira de escritor de negócios e finanças, Hazlitt se dedicou cada vez mais às ciências econômicas. Explica: “descobri que a economia exigia tanta deliberação, sutileza e precisão quanto os problemas mais obscuros da filosofia, psicologia ou ciências físicas”. Percebeu que, longe de ser uma “ciência sombria”, era um tema de crucial importância porque tinha muita influência sobre a esfera governamental. (Por exemplo, como seria o mundo se Karl Marx não tivesse promovido sua teoria econômica?[8])
Hazlitt então deparou com um livro intitulado The Common Sense of Political Economy de Philip H. Wicksteed, sobre o qual comentou: “foi a partir de sua leitura que o mundo da economia se abriu para mim, e percebi que – conforme Ludwig von Mises me ajudaria a entender de forma explícita – o mundo econômico é quase uma coextensão do mundo da ação e decisão humanas.[9]
Outra grande influência em seu pensamento econômico foi Benjamin M. Anderson, economista do Bank of Commerce e depois do Chase National Bank. Hazlitt leu o livro clássico de Anderson, The Value of Money e, mais tarde, se tornaram amigos. No início da década de 1920, quando Hazlitt passou a ser o editor financeiro do New York Evening Mail, passaram a se reunir regularmente para discutir os eventos econômicos.
Hazlitt também estudou as ideias de Ludwig von Mises, e se tornaram amigos íntimos quando Mises emigrou para os Estados Unidos. Hazlitt disse a respeito de Mises: “suas ideias tiveram mais influência sobre mim do que as de qualquer outro autor nos últimos 25 anos.”[10] Como um dos críticos literários e revisores de texto mais influentes do país, Hazlitt apresentou aos americanos as ideias de Mises. Hazlitt revisou o livro Socialismo de Mises – o primeiro de seus livros a ser traduzido para o inglês – e, assim, transformou-o num clássico nos Estados Unidos. De forma análoga, revisou o livro O Caminho da Servidão de F. A. Hayek, o que culminou em sua publicação pela Reader’s Digest, catapultando Hayek para a fama.
Após anos de estudo, redação e debate com algumas das principais mentes da economia, Hazlitt desenvolveu a capacidade de prever as consequências das políticas econômicas. Por exemplo, Hazlitt previu imediatamente os efeitos inflacionários da criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial logo depois da II Guerra Mundial. Enquanto essas instituições ainda eram possibilidades discutidas na Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas em Bretton Woods em 1946, Hazlitt já escrevia poderosos editoriais no New York Times opondo-se a elas. No entanto, após o FMI e o Banco Mundial terem sido aprovados por 43 países, o editor do Times, Arthur Sulzberger, disse a Hazlitt que não poderia mais publicar editoriais criticando políticas econômicas. Hazlitt cedeu por algum tempo enquanto procurava outro emprego, e depois se demitiu do Times.
Economia em uma única lição
Naquele mesmo ano, Hazlitt escreveu um livro de mais de duzentas páginas, Economics in One Lesson (Economia em uma única lição), em menos de 45 dias. Com o subtítulo de The Shortest & Surest Way to Understand Basic Economics (A forma mais curta e precisa de entender economia), tornou-se o livro mais popular de economia básica de todos os tempos, vendendo milhões de cópias. O diferencial desse livro é o modo como Hazlitt reduz o complexo campo das ciências econômicas a princípios simples que qualquer pessoa pode entender e validar por meio da observação. De fato, diz que “toda economia pode ser reduzida a uma única lição”. E qual seria? “A arte da economia consiste em analisar não apenas os efeitos imediatos (de curto prazo), mas também os de longo prazo, de qualquer ação ou política; consiste em prever as consequências desses não apenas para um grupo de indivíduos, mas para toda a sociedade”.[11]
Ele ilustra esse princípio no livro com inúmeros exemplos, dando aos leitores uma compreensão ampla e profunda da economia. Mais importante, destaca a necessidade vital de entender as políticas econômicas em termos de seu impacto sobre os indivíduos, dizendo: “o que é prejudicial ou desastroso para um indivíduo deve ser igualmente prejudicial ou desastroso para todos os indivíduos que formam uma nação[12].
Além disso, destrói as principais falácias econômicas promovidas por políticos e coletivistas de todas as estirpes, tais como a de que gastos e resgates do governo estimulam a economia; que projetos de obras públicas aumentam a riqueza de uma comunidade; que os sindicatos e as leis de salário mínimo aumentam o valor dos salários; que o livre comércio gera desemprego; que o controle do alugueis ajuda a abrigar os pobres; que poupar prejudica a economia ou que os lucros das empresas são obtidos à custa dos trabalhadores. A escrita de Hazlitt é tão lúcida – e sua análise tão convincente – que é difícil acreditar que alguém que tenha lido o seu livro ainda tenha quaisquer dúvidas a respeito.
Um dos heróis de Hazlitt foi o economista francês Frédéric Bastiat. Assim como Bastiat, Hazlitt era mestre em reductio ad absurdum – o método de refutar uma posição mostrando a sua absurdidade quando levada à sua conclusão lógica. Em Economia em uma única lição, Hazlitt faz uso dessa técnica contra analfabetos econômicos e ludistas. Por exemplo, no capítulo 7, “The Curse of Machinery” (A maldição dos maquinários), diz Hazlitt, “Sr. Eleanor Roosevelt escreveu: “hoje chegamos ao ponto em que dispositivos econômicos de mão de obra (máquinas, precisamente) só são benéficos quando não substituem o emprego do trabalhador”. Hazlitt ataca a essência dessa falácia: “por que o frete deveria ser transportado por ferrovia de Chicago a Nova York quando seria possível empregar muito mais homens para levarem toda carga em suas costas?”
Outra aplicação de sua lição ocorre no tema tarifas. Após lamentar a não adoção do livre comércio por parte dos políticos, Hazlitt explica que as tarifas são um exemplo clássico do fato de considerar apenas o efeito imediato sobre um grupo sem levar em conta os outros. Usando o exemplo de um fabricante de blusões americanos, Hazlitt discute o efeito sobre os consumidores que terão que pagar mais pelos bens protegidos devido à tarifa:
“Como terá de pagar mais por blusas e outros bens protegidos, terá menos dinheiro para comprar outros produtos. O poder de compra geral de sua renda foi, portanto, reduzido. Se o efeito líquido da tarifa é o de reduzir os salários ou aumentar a inflação, depende da política monetária estabelecida. Mas o que fica claro é que a tarifa – embora possa aumentar o valor dos salários acima do que teriam sido nas indústrias protegidas – reduz, com efeito, o saldo líquido dos salários, quando é considerado o seu efeito sobre todas as outras ocupações.”
“Apenas mentes corrompidas por gerações de propaganda enganosa podem considerar essa conclusão como paradoxal. Afinal, que outro resultado poderíamos esperar de uma política de uso desenfreado de nossos próprios recursos de forma menos eficiente e que, inclusive, contradiz a forma que julgamos que melhor seriam usados? Que outro resultado poderíamos esperar do ato de criar barreiras artificiais ao comércio e ao transporte?”[13]
Ao mostrar que o pensamento econômico sólido consiste em considerar as consequências de longo prazo para todos os grupos, Hazlitt ensinou a gerações de leitores uma ciência que é amplamente considerada exclusiva aos sábios que vivem em torres de marfim.
Hazlitt versus Marx e Keynes
Um dos maiores serviços prestados por Hazlitt foi a exposição das falácias e erros presentes nas obras de dois teóricos econômicos muito influentes – e perigosamente enganosos: Karl Marx e John Maynard Keynes. Em seu estilo maravilhosamente objetivo, Hazlitt resumiu o marxismo da seguinte forma:
“Todo o evangelho de Karl Marx pode ser resumido em uma única frase: odeie o homem em situação melhor que a sua. Nunca, em nenhuma circunstância, admita que o sucesso dele possa ser devido aos seus próprios esforços, à contribuição produtiva dele para a comunidade. Sempre atribua o sucesso dele à exploração, à trapaça e ao roubo.”
“Nunca, em nenhuma circunstância, admita que suas falhas possam ser fruto de sua própria fraqueza, ou que a falha de qualquer outra pessoa possa ser devido a seus próprios defeitos – a sua preguiça, a sua incompetência, a sua imprevidência ou a sua estupidez. Nunca acredite na honestidade ou desinteresse de quem discorda de você.”
Esse ódio fundamental é a essência do marxismo, sua força motriz. Descarte o materialismo dialético de seu argumento, a sua estrutura hegeliana, o seu jargão técnico, a sua análise “científica e, mesmo assim, sua essência se manterá: o ódio implacável e a inveja que alimentam todo o resto.”[14]
Hazlitt percebeu com clareza que Keynes era um neomarxista, e foi a devastação causada por sua influência nas políticas econômicas que motivou Hazlitt a escrever um livro buscando refutá-lo, ponto por ponto. Intitulado The Failure of the New Economics: An Analysis of the Keynesian Fallacies (O fracasso da nova economia: uma análise das falácias keynesianas), foi uma crítica devastadora à obra Teoria geral do emprego, do juro e da moeda de Keynes. Nele, Keynes trazia melodia para os ouvidos de políticos sedentos por poder, pois fornecia uma justificativa para o estatismo desenfreado e o planejamento central. Keynes afirmou que os preços não funcionam no livre mercado, que o investimento privado é instável, que o “barbarismo” do padrão-ouro deve ser descartado, e que uma intervenção governamental massiva é necessária para fortalecer o sistema capitalista e salvá-lo de si mesmo. Surpreendentemente, muitos economistas adotaram essas ideias e se tornaram keynesianos.
Embora praticamente sozinho no combate a Keynes, Hazlitt não ficou calado. Criticou linha por linha a Teoria Geral, com base em observações e integrações avalizadas num mercado real. A abordagem de Hazlitt fez um brilhante contraponto a Keynes – que tinha iniciado quase todos os capítulos da Teoria Geral apontando algum aspecto da teoria econômica clássica (de livre mercado) que estava supostamente errado. Hazlitt iniciou cada capítulo de seu livro mostrando como Keynes tinha descrito erroneamente a teoria do livre mercado. Por exemplo, em sua citação de Keynes:
“Um ato de poupança praticado por um indivíduo é, a título de exemplo, a decisão de não jantar hoje. Mas não é necessário tomar uma decisão de jantar ou comprar um par de botas daqui a uma semana ou daqui a um ano – ou de até mesmo de consumir qualquer outra coisa especificada em qualquer outra data específica. Essa ausência, portanto, frustra o negócio de ‘preparar o jantar de hoje’ sem estimular o negócio de ‘se preparar para algum ato futuro de consumo’. Isto não é uma substituição da demanda futura de consumo pela demanda atual de consumo – mas uma redução absoluta dessa demanda.”[15]
A isso, Hazlitt responde:
“A verdade é que um ato de poupança individual significa, para a esmagadora maioria dos poupadores, apenas uma decisão de não jantar duas vezes. É mais sensato reservar o suficiente para jantar amanhã. Com base nas próprias definições formais de ‘poupança’ e ‘investimento’ de Keynes em sua Teoria Geral: ‘ambos são tratados necessariamente iguais em quantidade, sendo, para a comunidade como um todo, apenas aspectos diferentes de uma mesma coisa’, toda essa passagem é, portanto, sem sentido e contraditória. Ora, ela só terá sentido se definirmos ‘poupança’ como simplesmente ‘não gastar dinheiro’. No mundo econômico moderno, um ato de poupança, se não for seguido dentro de um mês ou mais por um gasto equivalente, é quase invariavelmente seguido por um investimento. Essa é simplesmente uma forma de dizer que as pessoas em uma dada comunidade econômica moderna não acumulam dinheiro debaixo do colchão. Mesmo que ainda depositem o valor numa conta corrente, a maior parte é imediatamente emprestada pelo banco. Se depositarem numa conta poupança, o montante é investido para eles.”[16]
É difícil imaginar qualquer pessoa inteligente ou racional lendo ambos os livros e, ao final, favorecendo o intricado, confuso, pretensioso e contraditório Keynes, em detrimento do lúcido, principiado e logicamente coerente Hazlitt. Hazlitt explica ao leitor o estilo de escrita de Keynes, que consiste em ser pouco claro e em fazer uso pretensioso de jargões técnicos. Escreveu Hazlitt:
“E mais uma vez, ‘a elasticidade dos preços monetários em resposta às mudanças na demanda efetiva, medida em termos de moeda’, poderia ter sido simplesmente expresso como ‘a resposta dos preços às mudanças na demanda’. É em grande parte por causa de tais pretensiosos pleonasmos e circunlóquios que a escrita de Keynes carece de profundidade.”[17]
Infelizmente, as ideias de Keynes tiveram grande influência nos Estados Unidos, começando com Frank Delano Roosevelt e foram de tal maneira assimiladas pelos governos que poucos políticos as questionam ou mesmo entendem sua capacidade de destruição. No entanto, Hazlitt as condenou assim que surgiram, mostrando sua falsidade.
Hazlitt sobre filosofia moral
Desde jovem, Hazlitt teve interesse em filosofia, sabendo da relação íntima entre ética e economia. Apesar do fato óbvio de o capitalismo gerar riqueza e prosperidade, percebeu que os ataques a esse sistema avançavam com força, e que o capitalismo tinha de ser defendido em termos morais:
“O sistema capitalista está sendo atacado, principalmente, em termos éticos, como sendo materialista, egoísta, injusto, imoral, selvagemente competitivo, insensível, cruel e destrutivo. Se vale a pena preservá-lo, hoje é inútil defendê-lo apenas por razões técnicas (por ser mais produtivo, por exemplo), mas também é fundamental mostrar que as críticas dos socialistas, à luz da ética, são falsas e sem fundamento.”[18]
Em 1964, aos 70 de idade, Hazlitt escreveu um extenso tratado filosófico intitulado The Foundations of Morality (As bases da moralidade), cujo objetivo era fornecer uma defesa moral do capitalismo e da liberdade. Mais tarde, concluiu que, de todos os seus livros, era o que mais o orgulhava. Em muitos aspectos, foi o pior de seus livros.
Hazlitt escreveu: “a verdadeira distinção necessária não é entre indivíduo e sociedade, ou mesmo entre ‘egoísmo’ e ‘altruísmo’, mas entre interesses de curto ou longo prazo.”[19] Identificou o fato de que não há conflitos de interesse de longo prazo entre indivíduos racionais.
“As regras morais deveriam ser estruturadas para promover a felicidade de longo prazo do indivíduo ou da sociedade? Logo no início, Hazlitt expõe uma falsa antítese: só uma regra que atenda a primeira condição torna a segunda possível. A sociedade nada mais é que o conjunto de indivíduos que a compõem.”[20]
Além disso, sem nem definir “egoísmo” ou “altruísmo”, Hazlitt afirmou que essas “duas atitudes” não eram opostas e que “quando consideramos o longo prazo (…) ambas se completam.”[21] Ele chamou a sua filosofia – que se encontrava numa zona intermediária entre egoísmo e altruísmo – de “mutualismo” ou “cooperativismo”.
Em seus aspectos essenciais, é difícil distingui-la do utilitarismo. Ele sustenta que a felicidade e bem-estar humano de toda a comunidade é o bem supremo, citando que o autossacrifício ocasional é um dos meios legítimos para esse fim.
Em um capítulo intitulado The Problem of Self-Sacrifice (O problema do autossacrifício), escreveu: “o autossacrifício só é exigido ou justificado para garantir ao outro ou outros um bem maior do que o bem sacrificado. Contento-me aqui em dizer que considero o autossacrifício essencialmente um meio às vezes necessário para promover a felicidade e bem-estar de toda a comunidade. “Esse é precisamente o argumento usado por coletivistas, estatistas e tiranos ao longo dos tempos para sacrificar o indivíduo em prol do “bem comum”. Como um defensor da liberdade poderia endossar essas ideias, sabendo de suas consequências lógicas e práticas? A resposta é que Hazlitt igualou equivocadamente altruísmo à benevolência, aceitando a caracterização do egoísmo de Moritz Schlick como a “falta de consideração para com os interesses dos outros homens, a busca pelo propósito individual às custas dos outros”. Este erro é imperdoável dada a interação ocasional de Hazlitt com Ayn Rand, que demonstrou (a) que o altruísmo é a moralidade do autossacrifício, do coletivismo, do socialismo e da morte – e (b) que o egoísmo é a moralidade do não sacrifício, do autointeresse racional e o que fundamenta os direitos individuais e o capitalismo. Se Hazlitt tivesse compreendido plenamente o conceito de egoísmo racional de Rand – e a natureza do altruísmo – seus erros teriam sido impossíveis, a menos que por clara evasão.
Hazlitt merece crédito por não buscar fundamentar a sua defesa do capitalismo com apelos à fé – o modus operandi dos conservadores. Conforme escreve:
“Não é a função do filósofo moral como tal proclamar a verdade de sua fé religiosa ou tentar mantê-la. Sua função é, antes, insistir em uma base racional para a moralidade, salientar sua independência do sobrenatural e mostrar que sua normatividade é ou deveria advir de regras de conduta que tendem a aumentar a cooperação humana, a felicidade e o bem-estar nessa vida presente.”[22]
Evitar argumentos baseados na fé ajudou Hazlitt a perceber que a equivalência do termo direitos naturais à lei natural é, em alguns aspectos, infeliz. O fato de muitos ignorarem tal fato perpetuou um misticismo que considera a existência desses direitos desde o início dos tempos, como se tivessem sido conferidos ao homem por um ser superior, como algo autoevidente e de fácil consideração.”[23]
O livro também demonstra a familiaridade substancial de Hazlitt com a história da filosofia e a forte influência de Aristóteles, Tomás de Aquino, David Hume, Adam Smith, Jeremy Bentham, John Stuart Mill, Philip Wicksteed, Ludwig von Mises e F. A. Hayek. Hazlitt aproveita para criticar outros sistemas éticos, incluindo o marxista, o kantiano e o cristão. Assim, apesar das falhas substanciais do livro, recomendo a leitura por sua rica apresentação da história da filosofia moral e política.
Outra das valiosas conquistas de Hazlitt foram o seu romance, Time Will Run Back. No prefácio, descreve o tema: “se o capitalismo não existisse, seria necessário inventá-lo – e sua descoberta seria considerada um dos grandes triunfos da mente humana”. O enredo do livro (uma forma invertida de distopia) dramatiza as diferenças entre comunismo e liberdade. Nele, conhecemos a história de um jovem ignorante que assume o controle de uma ditadura comunista, porém tem dúvidas se é o melhor sistema possível. Sua jornada consuma a transição lógica de uma ditadura para o livre mercado. Perto do final do romance, o herói idealista, Peter Uldanov, explica sua visão acerca da função apropriada do governo durante uma conversa com seu assessor econômico, o ‘companheiro’ Adams. Adams responde que, embora admire a produtividade do novo sistema, duvida dele por ser “egoísta e aquisitivo”. Uldanov responde da seguinte forma:
“Se quiser proibir o que for prejudicial aos outros, já terá um trabalho grande o bastante para um governo. Além disso, deparará com limites lógicos definidos para esse trabalho. Mas se começar a exigir o altruísmo por lei não haverá limites lógicos até que todos tenham sido forçados a doar tudo aquilo que produziram, inclusive o que produziram a mais que os outros – até o momento em que não haverá qualquer incentivo para ganhar ou produzir qualquer coisa.
Qualquer sociedade em que valha a pena viver deve, naturalmente, ser dotada de um espírito de generosidade e benevolência. Não há como depender apenas de virtudes negativas, esperando que as pessoas simplesmente respeitem a liberdade umas das outras e se abstenham de fraude ou violência. Concordo que isso seja verdade, mas não é função do governo forçar as pessoas a adotarem virtudes positivas; não poderia fazê-lo nem se tentasse, e essa tentativa levaria apenas a abusos horríveis. Essas virtudes positivas devem vir de dentro da própria sociedade, e isso é simplesmente outra maneira de dizer que devem vir dos próprios indivíduos.”[24]
Ao adotar a direção oposta aos típicos temas distópicos, Hazlitt criou um romance com gênero particular. Com sua promessa de progresso material e renascimento espiritual, o romance – embora não seja filosoficamente perfeito – é poderoso, esclarecedor e edificante.
Um gigante da liberdade
Se o jornalismo americano não tivesse sido controlado por esquerdistas no tempo de Hazlitt, ele teria ganho vários prêmios Pulitzer. Foi um defensor incansável da liberdade e do capitalismo ao longo de oito décadas. Não importando a política ou problema político, podia-se sempre contar com Hazlitt para explicar com simplicidade e em termos essenciais o assunto em questão, para depois analisar o quão bem o mesmo se adequava frente aos ideais americanos de livre iniciativa e liberdade política.
Ludwig von Mises proclamou o seguinte durante a celebração do septuagésimo aniversário de Hazlitt em 1964:
“Nesta época de grande luta em favor da liberdade e do sistema social em que os homens possam viver como homens livres, você é nosso líder. Você lutou incansavelmente contra as investidas dos poderes que tentam destruir tudo que foi criado pela civilização humana ao longo de séculos (…) você é a consciência econômica de nosso país e de nossa nação.”[25]
No mesmo jantar, Hazlitt fez um discurso intitulado Reflections at 70 (Reflexões aos 70 anos), que rememorava sua carreira e avaliava o estado da liberdade humana. Seu relato geral foi bastante pessimista, observando que os verdadeiros defensores da liberdade eram minoria. No entanto, lembrou a todos:
“Ainda não estamos na cadeia. Apesar de assédios e aborrecimentos, só está em risco a nossa popularidade. Temos o dever de falar com ainda mais clareza e coragem, trabalhando arduamente até nosso último suspiro. Mesmo aqueles que, como nós, já passaram dos 70 anos, não podem simplesmente cochilar no sol da Flórida. É preciso coragem e trabalho duro. Se o prêmio é valioso é porque as apostas são ainda maiores: nada menos que o futuro da liberdade, o futuro da civilização. Tenha bom coração e um espírito limpo. Se a batalha ainda não foi vencida, ainda não está perdida.”[26]
O legado que Hazlitt deixou através de seus escritos é extremamente relevante hoje e muito mais valioso do que o de seus colegas acadêmicos. Ele continua sendo o melhor escritor de economia que este país já viu, e qualquer um se beneficiaria pela leitura de seus escritos.
Acima de tudo, Henry Hazlitt entendeu que ideias têm consequências e que o futuro da liberdade depende de uma compreensão mais ampla do que representa o livre mercado. Como ele disse, “tenho pregado liberdade contra coerção, pregado capitalismo contra socialismo, pregado essa doutrina de liberdade de todas as formas.” E assim ele fez, até o seu nonagésimo oitavo ano.
Hazlitt ainda compilou, com ajuda de sua esposa, um livro intitulado The Wisdom of the Stoics (A sabedoria dos estoicos). O livro consistia em passagens e citações dos filósofos estoicos Sêneca, Epíteto e Marco Aurélio. Uma das citações que escolheram de Seneca diz: “honras, monumentos e todas as obras de vaidade e ambição são demolidos e destruídos pelo tempo; mas a reputação da sabedoria é venerável à posteridade.”[27]
Não importa o que o tempo possa demolir, pois as palavras de sabedoria de Hazlitt continuarão iluminando mentes por meio do ensino de uma ciência vital: a economia.
__________________________________________
Publicado originalmente em The Objective Standard.
Traduzido por Matteo Guimarães.
Revisado por Matheus Pacini.
Curta a nossa página no Facebook.
Inscreva-se em nosso canal no YouTube.
__________________________________________
[1] Disponível em https://fee.org/people/henry-hazlitt/; and https://mises.org/profile/henry-hazlitt.
[2] GREAVES, Bettina. “A Man for Many Seasons,” in The Wisdom of Henry Hazlitt. Irving-on-Hudson, NY: Foundation for Economic Education, 1992.
[3] Mises Institute, “Profile of Henry Hazlitt,” disponível em https://mises.org/profile/henry-hazlitt.
[4] Henry Hazlitt, “Reflections at 70,” in The Wisdom of Henry Hazlitt. Irving-on-Hudson, NY: Foundation for Economic Education, 1992.
[5] Hazlitt, “Reflections at 70.”
[6] HAZLITT, Henry. Thinking as a Science. New York: E. P. Dutton & Company, 1916, p. 2.
[7] Horatio Alger Jr. (January 13, 1832–July 18, 1899) was a prolific 19th-century American writer, best known for his many novels about impoverished boys and their rise from humble backgrounds to lives of middle-class security and comfort through hard work, determination, courage, and honesty. His writings were characterized by the “rags-to-riches” narrative, which had a formative effect on America during the late 19th century.
[8] Hazlitt, “Reflections at 70.”
[9] Hazlitt, “Reflections at 70.”
[10] Hazlitt, “Reflections at 70.”
[11] HAZLITT, Henry. Economics in One Lesson (New York: Harper & Brothers, 1946), p. 20.
[12] Hazlitt, Economics in One Lesson, p. 34.
[13] Hazlitt, Economics in One Lesson, p. 62.
[14] Hazlitt, Economics in One Lesson.
[15] HAZLITT, Henry. Failure of the New Economics: An Analysis of the Keynesian Fallacies. New York: Van Nostrand Company, 1959´. p. 217.
[16] HAZLITT, Henry. Failure of the New Economics: An Analysis of the Keynesian Fallacies. New York: Van Nostrand Company, 1959´. p. 217.
[17] HAZLITT, Henry. Failure of the New Economics: An Analysis of the Keynesian Fallacies. New York: Van Nostrand Company, 1959´. p. 217.
[18] Henry Hazlitt, The Foundations of Morality (Irving-on-Hudson, NY: Foundation for Economic Education, 2010), p. 301.
[19] Henry Hazlitt, The Foundations of Morality, p. 44.
[20] Henry Hazlitt, The Foundations of Morality, p. 338.
[21] Henry Hazlitt, The Foundations of Morality, p. 97.
[22] Henry Hazlitt, The Foundations of Morality, p. 353.
[23] Henry Hazlitt, The Foundations of Morality, p. 281.
[24] Henry Hazlitt, Time Will Run Back . New Rochelle, NY: Arlington House, 1952. p. 323.
[25] Ludwig von Mises, “Indefatigable Leader,” in The Wisdom of Henry Hazlitt. Irving-on-Hudson, NY: Foundation for Economic Education, 1992.
[26] Hazlitt, “Reflections at 70.”
[27] HAZLITT, Frances e Henry. The Wisdom of the Stoics: Selections from Seneca, Epictetus, and Marcus Aurelius. Lanham, MD: University Press of America, 1984.