Originalmente publicado no jornal Zero Hora (24/05/2019)
Difundir os princípios filosóficos da razão e de um “egoísmo racional” para a sociedade, aliados a uma visão econômica extremamente liberal, tornou-se a missão do empreendedor israelense Tal Tsfany. À frente do Instituto Ayn Rand, sediado nos EUA, o executivo busca propagar a visão da filósofa norte-americana que fundou o Objetivismo — para ele, uma figura genial que será reconhecida como a única que avançou no pensamento de Aristóteles, trazendo liberdade e prosperidade ao mundo. Entre as ideias que Tsfany expõe estão a defesa de que o objetivo da vida humana é atingir a felicidade, a desigualdade populacional é algo desejável e o governo não deve fazer mais do que garantir a ordem: todo tipo de serviço comercial precisa ser empreendido pela iniciativa privada. O instituto trará uma conferência sobre esses ideais a Porto Alegre em setembro. Neste mês de maio, Tsfany conversou por mais de uma hora com ZH por telefone. Confira a entrevista.
Qual a sua visão de um sistema econômico ideal?
Ayn Rand defende o capitalismo laissez-faire (entendimento de que o mercado deve funcionar livremente, sem interferência do governo nem quaisquer tipos de taxas). Se você entende a mente humana e como prosperamos, enxerga a política como consequência da moralidade: é a continuação lógica. Então você observa que as pessoas precisam de liberdade. Precisam de liberdade para criar, para dar início a projetos, para realmente serem o melhor que puderem. E, sempre que se introduz força e coerção, você vê que o nível de produtividade cai em países como Rússia ou Coreia do Norte, comparando com EUA e Coreia do Sul. A única diferença não é a inteligência das pessoas, mas que elas são livres para buscar seus próprios valores. E sabem que, se produzirem um valor, podem mantê-lo. Assim, não perdem o incentivo de criar.
O que mais, nessa sua avaliação, a ausência de liberdade pode causar em uma sociedade?
Antes de Israel se tornar um Estado, imigrantes russos que foram para a então Palestina disseram: “Ok, o comunismo falhou na Rússia, vamos criar o bom comunismo aqui”. Então criaram pequenas comunas chamadas kibutz (comunidades agrícolas em que todas as propriedades e os meios de produção são coletivos, inspiradas pelos ideais do sionismo e do socialismo no início do século 20). Eu cresci em um kibutz. Sei o que isso significa, o que faz para a alma humana. Imagine que um grupo de pessoas, digamos 200 ou 300 famílias, viva junto em um assentamento. E divida todas as propriedades. É o modo de pensar do comunismo. Cresci em uma casa de crianças, e via meus pais das 16h às 20h todos os dias, o que significava que não era “propriedade” dos meus pais, mas do kibutz. Quando ganhei um presente dos meus familiares na cidade, que foi um gravador para o meu Bar Mitzvá, eles não me deixaram ficar com aquilo, porque não era minha propriedade. Só para dar uma ideia do que aquele ambiente faz. Uma integrante do kibutz teve câncer. E ela saiu pedindo doações aos outros membros, porque todo mundo recebia a mesma “mesada”, não importando se você administrava a fábrica ou lavava roupas. E ela não conseguiu que ninguém desse dinheiro a ela. Porque todos sentiam ressentimento e ódio uns dos outros. Se você parar para pensar, todos estão dividindo a mesma torta, ninguém tem sua própria torta. Então o gerente da fábrica se ressente da lavadeira porque tem o mesmo “salário” que ele. Isso leva à imoralidade. Ambientes coletivos trazem o pior do homem. Causam ódio, corrupção, porque é o sistema do sacrifício. Todos estão se sacrificando pelos outros. E algo que o pensamento de Ayn Rand rejeita totalmente é a ideia de altruísmo. Esse modo de vida não permite que você seja o melhor que puder. Não o ensina. Seu próprio valor de vida diminui.
O senhor identifica que isso existe no mundo atualmente?
O kibutz é como um microcosmo. Pense em um país como a Coreia do Norte, ou como a Rússia. Não é a mesma vida humana, aquela, disponível às pessoas em uma sociedade capitalista em comparação com a que se vive em uma sociedade coletivista. Yaron Brook, chairman do Instituto Ayn Rand, escreveu um livro chamado Equal Is Unfair (“o igual é injusto”, em tradução literal). O que ele quer dizer com isso é: olhe para seus arredores. Você vê algum ser humano igual ao outro? Todos são diferentes. Em capacidade, em gostos, naquilo que amam. A beleza de gostar de coisas diferentes é que isso possibilita a troca. Sempre pensamos que a igualdade é algo que deveríamos atingir. E Ayn Rand diz que não. Não precisamos chegar à igualdade. Essa não é uma característica dos seres humanos. Se você tentar fazer com que todas as pessoas tenham os mesmos resultados, você basicamente as mata. Diz que elas não podem ser quem são. É o que acontece também em sociedades como o Camboja, que levaram a coletividade e a igualdade ao extremo. Isso resulta em mortes em massa. A igualdade tem um significado, que é frente à lei. Quando a lei é aplicada, devemos ser todos iguais perante ela. Essa é a única igualdade válida que devemos ter como seremos humanos, em uma perspectiva política.
Não poderiam esses regimes que o senhor cita serem boas ideias, porém mal executadas?
Não. Essa é a beleza da filosofia. É como a física das ideias. É como você dizer: se eu for para a China, minha bola de boliche vai cair no chão da mesma maneira? E nos EUA, vai cair? Talvez eu tente o Brasil, pode ser que ela não caia lá. Aí você pensa: “Uau, pode ser que haja um princípio aqui”. É a gravidade, que funciona em qualquer lugar. Entende? Então, não, o coletivismo nunca vai funcionar. Não enquanto os seres humanos forem seres humanos. É muito simples: sempre que você dá liberdade às pessoas e separa força e coerção das suas vidas, elas prosperam. A raiz de todos os males é a força. Todo o capitalismo é baseado em um princípio muito forte: direitos individuais. Você não pode me ferir, eu não posso lhe ferir, e teremos um monopólio da força chamado governo, que vai garantir que teremos nosso direito à vida, à liberdade e à propriedade.
Para os liberais adeptos do Objetivismo, qual deve ser o tamanho do governo?
Em tudo o que o governo controla, seja transporte, saúde, educação, o que for, há estagnação. Se você misturar a arma (uso da força) com economia, chega aos resultados que se vê no Brasil e em outros lugares: corrupção, estagnação. É o que chamamos de “economia mista”. O que eu espero que o governo faça, além de garantir a polícia e Forças Armadas (para segurança interna e externa), é manter um sistema judicial. Que mantenha leis garantindo que você não vai me machucar, e eu não vou machucá-lo, e que jogaremos limpo. Se você me pergunta: o governo deveria cuidar da saúde? Não. O governo deveria cuidar da educação? Não. O governo deveria cuidar das estradas? Não. O governo deveria proteger os direitos? Sim. Se você comprar um terreno e alguém invadi-lo, você deve ir ao governo, que precisa usar da força – como reação, não de maneira proativa. Sempre que se introduz liberdade nos negócios, na economia, você obtém uma explosão de inovação. Se quiser ver a assistência médica tão barata quanto possa ser, e com mais qualidade, basta privatizar a saúde. É incompreensível, para mim, como as pessoas entendem isso quando diz respeito a restaurantes, mas não quando se fala de assistência médica e educação. Por que permitimos isso com a comida, mas não com a comida para a alma, que é a educação? Não há uma verdadeira diferença filosófica.
O liberalismo econômico não abre caminho para a corrupção que tanto se deseja combater?
Sempre que se misturam poder e dinheiro, haverá corrupção. Não é um mal exclusivo do Brasil. Veja qualquer governo no mundo com uma economia mista. O principal problema é a corrupção. Não é porque seus políticos são piores do que os outros. Não é porque Dilma ou Temer ou qualquer outro foram piores do que os demais. É o que acontece quando se mistura a arma (uso da força) com o dinheiro (administração da economia): ocorre a corrupção. A melhor maneira de acabar com isso é não deixar o “bruto com o bastão” administrar o dinheiro. O que você acha que aconteceria com os políticos se houvesse uma separação total entre governo e economia? Se eles não pudessem mais administrar o dinheiro? Essa é a ideia. Quando o governo controla o dinheiro, não corrompe apenas a si mesmo, mas a toda a economia ao seu redor.
O senhor esteve recentemente no brasil, participando do Fórum da Liberdade em Porto Alegre. O que essa visita lhe disse sobre as privatizações no país?
Minha última visita ao Brasil abriu meus olhos. Estive em Porto Alegre (durante o Fórum da Liberdade) e fui recebido por uma equipe de empreendedores sociais que começaram uma revolução social nessa área há 35 anos. Vi centenas, milhares de pessoas realmente entendendo as ideias de liberdade. Toda vez que se fala em privatização se quer dizer que será algo voluntário. A privatização é, basicamente, um retorno à liberdade, permitindo que as pessoas criem. No meu mundo, o governo não deveria ter que fazer nada. Voltando ao Brasil, fiquei maravilhado com o que está acontecendo, com a revolução em andamento.
O governo federal, com o presidente Jair Bolsonaro, tem se mostrado liberal na economia, porém conservador nos costumes e ideias. Essa combinação funciona?
Em vez de pensar em esquerda e direita, em liberalismo e conservadorismo, Ayn Rand oferece outra dimensão: pensar sobre seres humanos e sua prosperidade. Há um pouco de bom na esquerda e um pouco de bom na direita. E muito de ruim na esquerda, e também na direita. O que ela sugere é: pegue o melhor de cada mundo. Você deve ser livre por uma perspectiva pessoal. Ninguém deve dizer a você com quem casar, com quem fazer sexo, o que fumar, o que fazer da vida. Por outro lado, você deve ter liberdade política. Ninguém deveria te tachar. Ninguém deveria pegar seu dinheiro e dizer que é sua obrigação moral ajudar outras pessoas. É uma dicotomia falsa. Você deve ser livre sob todos os ângulos, do quarto à casa, do restaurante ao hospital. Você não pode ser um defensor da liberdade humana se é contra o aborto. Essa é a maior violação de direitos humanos: dizer o que alguém pode ou não fazer com o próprio corpo.
O senhor disse ter ficado “maravilhado” com o que soube da atual administração brasileira. Por quê?
Não posso comentar muito sobre o Brasil, porque não sou especialista na política brasileira. Mas ouvi que há muitas coisas boas acontecendo, especialmente com o ministro da Economia, Paulo Guedes. Muitas iniciativas de privatização, de liberalização do mercado. Sob essa perspectiva, vejo um futuro brilhante para a economia brasileira. E estava brincando com meus amigos dizendo que precisamos encontrar boas ações para investir no mercado brasileiro. Mas logo poderemos ver os problemas de combinar isso com um líder religioso e conservador. Pode ser que vejamos a deterioração da liberdade pessoal. Com o governo usurpando sua habilidade de viver sua própria vida como você achar que deve. Ficaria preocupado se eu fosse uma mulher que engravidasse muito jovem e quisesse abortar porque gostaria de viver minha vida como eu quisesse. Ficaria preocupado se eu fosse gay. Ficaria preocupado com tudo o que diz respeito à liberdade pessoal, inclusive como repórter, integrante da mídia. É preciso ter cuidado.
Adeptos do pensamento de Ayn Rand veem problemas com o altruísmo e consideram que esse tipo de filantropia deve ser combatido. Por quê?
Ser altruísta significa que você precisa sacrificar seus valores em favor de outra pessoa. É o que as religiões pregam. E Ayn Rand acredita que a única obrigação moral que temos é com nós mesmos. Se você definir racionalmente seus valores, outros podem fazer parte desse seu sistema. Minha mãe é muito cara a mim, e vou fazer muitas coisas para ela. Não preciso de uma religião me dizendo para respeitá-la. Mas, se ela fosse uma pessoa abusiva, que me machucasse e colocasse meu bem-estar em risco, eu não teria qualquer obrigação para com ela. O bom não é se sacrificar por outros. Pergunte a você mesmo: por que o capitalismo é o sistema que mais cria filantropia, mais benevolência, mais bem-estar para todos, incluindo os mais pobres? Porque, em primeiro lugar, no capitalismo você é livre para criar. E, quando você cria, cria riqueza. Então você tem o que compartilhar. Seres humanos benevolentes, como é o caso de alguns bilionários, têm como valor ajudar os outros. Mas, quando você diz que sua obrigação moral é essa, então todos sofrem. Porque, aí, não se cria. E surge o ressentimento, porque isso se torna um fardo moral.
Programas como o Bolsa Família, nessa acepção, seriam fundamentalmente ruins?
Os fins não devem justificar os meios. O que se está fazendo: roubando as pessoas de seu próprio dinheiro com a justificativa de que você não é esperto o bastante para saber a quem dá-lo. Você está indo em cada família que produz dinheiro no Brasil com uma arma e ameaçando suas vidas dizendo: “Se não me der dinheiro, você vai para a cadeia”. Essa é a forma de conseguir esse dinheiro, sejamos claros. Por mais que a arma esteja escondida sob o governo. Em segundo lugar: você acha que está ajudando alguém? A pior coisa que você pode fazer para uma criança pobre é dar vouchers de comida a ela e alimentá-la. Amor próprio e a habilidade de criar vêm de lidar com a realidade e descobrir seu caminho na vida. Um programa como esse é mau em sua essência.
O melhor, então, é ser egoísta?
Ayn Rand tenta se reapropriar da palavra “egoísmo”. Ela argumenta que ser racionalmente egoísta, ser autocentrado e viver a melhor vida que você puder é bom para você e para todos. Porque é assim que a humanidade prospera. O “valor padrão” é você mesmo. A boa ação humana não requer sacrifício. É por isso que você precisa estar totalmente preocupado consigo mesmo. É a sua única vida. Ela vai acabar em breve. Você vai morrer para sempre. Precisa tirar o máximo proveito da vida. Há dois significados ocultos no egoísmo — ela chama de um “pacote”. A primeira perspectiva é estar preocupado consigo mesmo. Você diria que é algo ruim? Pensar que é importante escovar os dentes, se alimentar. Não é ruim, é importante estar preocupado consigo mesmo. Mas, com o tempo, foi se encaixando a ideia de que o egoísmo envolve uma irracionalidade na maneira como você lida com isso, que você vai machucar alguém, e assim por diante. Ayn Rand quis retomar o verdadeiro significado do egoísmo: estar preocupado consigo mesmo. O que ela identificou é que muitas das guerras filosóficas foram criadas pela mudança do significado das palavras. As palavras são ferramentas do pensamento. E, se não forem afiadas como uma faca, não vão atravessar a realidade como deveriam.
Seria essa preocupação constante consigo mesmo o caminho para a felicidade?
O objetivo de cada um é a felicidade. É uma etapa de consciência que advém do alcance dos seus valores. Não é estar feliz na segunda-feira e sentindo-se péssimo na sexta: se você é feliz, esse é um estado de espírito. Você sabe que sua vida está indo em uma boa direção. Por outro lado, se alguém o machuca… Se há alguém em situação de pobreza na rua e você não tem dinheiro o suficiente para se alimentar, você não tem a obrigação moral de alimentá-lo. Você tem a obrigação de se alimentar. No avião, por que pedem para colocarmos as máscaras de oxigênio em nós mesmos antes de qualquer outra pessoa? Muitos gostam de retratar Ayn Rand como “a filósofa egoísta”. Mas o que ela quis mesmo dizer é que a única maneira de você viver a vida de maneira próspera é ser tão egoísta quanto possível. Assim, tudo ao nosso redor vai ser melhor. Até para os pobres. Eu prefiro ser pobre na economia mais próspera e capitalista do que alguém rico em um país coletivista. Quanto maior a diferença entre os ricos e os pobres, melhor a vida das pessoas em geral. Quanto maior a desigualdade, melhor é a vida. Se você realmente entende filosofia, vê que os socialistas fazem algo imoral e mau: propagam o sofrimento humano. Eles preferem machucar todos do que permitir que as pessoas vivam em um sistema de justiça, em que você consegue o que merece.