De forma análoga à relatada por Ayn Rand em “Cântico”, TSE define pela existência de “Palavra Inexprimível”

Ayn Rand (1905 – 1982), autora (best-seller) e filósofa criadora do Objetivismo, foi educada na Rússia e emigrou para os Estados Unidos ainda no início da vida adulta, em 1926. Ela escreveu em uma época na qual o coletivismo assolava o mundo, tanto na Rússia comunista, quanto na Alemanha nazista e na Itália fascista. Apesar de escrito há cerca de cem anos (1937), Cântico elucida os prejuízos de ideais que atentam contra a liberdade individual, o que parece ser uma realidade no Brasil, em 2022, considerando as recentes decisões do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que proibiram comentaristas da emissora Jovem Pan de falar sobre a situação judicial do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Lula).  

Na Obra, Ayn Rand retratou, de forma crítica, uma sociedade em que imperava um regime governamental totalitário de tipo fascista-comunista. Os personagens não tinham qualquer liberdade individual, o que fica claro através da ausência de nomes próprios e de poder de escolha da profissão; do local de residência; do parceiro para reprodução; de interesses e de lazer: todos definidos pelo Estado. No regime citado por Ayn Rand,todos os homens são um e não há vontade alguma, exceto a vontade de todos os homens juntos[pág. 44], motivo pelo qual o termo “eu” era tido como “Palavra Inexprimível [pág. 72].

Como veio a fazer em outras obras[1], Ayn Rand tratou dos princípios básicos do Objetivismo, “a saber: razão, individualismo, volição, a sustentação de valores que não contradizem a razão etc.” [pág. 8]. Tais valores foram apresentados através das características do personagem principal, Igualdade 7-2521: “indivíduo heroico que se revolta contra a ordem política totalitária, o brilhantismo individual que o conduz a ações “socialmente erradas”, a punição e a perseguição pela virtude etc.” [pág. 8].

Em Cântico, Igualdade 7-2521 narra a sua própria história. No entanto, como a palavra “eu” é inexprimível, ele faz o uso do plural majestático[2], motivo pelo qual utiliza a primeira pessoa do plural (nós), mesmo quando se refere a pensamentos e atitudes individuais. O recurso linguístico utilizado por Ayn Rand elucida, de forma bastante didática, a ausência de individualidade presente no regime governamental criticado.

No decorrer da obra, Igualdade 7-2521 relata fatos e sentimentos que vivenciou desde a sua infância, destacando a sua infelicidade por ser diferente e/ou superior aos demais, o que era coibido pelo Estado: “Nós, Igualdade 7-252, não éramos felizes naqueles anos no Lar dos Estudantes. Não que o aprendizado fosse difícil para nós. É que o aprendizado era muito fácil. Este é um pecado muito maior, nascer com uma cabeça que é muito rápida. Não é bom ser diferente de nossos irmãos, mas é maligno ser superior a eles” [pág. 45]. Situações e pensamentos similares aos mencionados acima se repetiram no decorrer da vida de Igualdade 7-2521, que se sentia culpado pelos seus anseios, pela sua curiosidade e pela sua vontade de entender a ciência das coisas.

Ao completar 15 anos de idade, o Estado definia a profissão que os cidadãos seguiriam através de decisão proferida pelo “Conselho de Vocações”. Igualdade 7-2521, por ser muito curioso e gostar de ciências, almejava ser designado para a função de “Erudito”, a única que permitia a realização de estudos e pesquisas. Entretanto, possivelmente por demonstrar, desde a infância, alguns traços comportamentais que poderiam indagar e gerar revoltas contra as regras estatais, foi designado como “Varredor de Rua”.

Na vida adulta, Igualdade 7-2521 vem a conhecer e se apaixonar por Liberdade 5-3000, o que também não era permitido pelo Estado, uma vez que preferências pessoais eram coibidas. Assim, Igualdade 7-2521 passa a viver um romance proibido, denominando a moça com o nome de “Excelente”, com a qual se encontrava de forma secreta.

No exercício das suas funções como “Varredor de Ruas”, Igualdade 7-2521 encontrou um “túnel secreto” com algumas anotações e experimentos abandonados, o que lhe gerou ainda mais curiosidade no campo da ciência. O local passou a ser frequentado por Igualdade 7-2521, que fugia do “Lar dos Varredores de Rua” à noite enquanto os outros dormiam para fazer pesquisas e descobertas científicas, vindo a descobrir a possibilidade de produção/condução de energia através de fios, os quais geravam “luz elétrica”. Na época, se vivia à luz de velas.

Em dado momento, as fugas de Igualdade 7-2521 foram descobertas pelo Estado, que lhe perseguiu, torturou e prendeu. Ao ser julgado, Igualdade 7-2521 apresentou as suas descobertas e pediu que o Estado às recebessem, eis que a energia elétrica traria conforto à toda sociedade. O Estado, por sua vez, além de imputar diversas condenações à Igualdade 7-2521, determinou a destruição da descoberta científica sob o fundamento de que, “o que não é feito coletivamente não pode ser bom” [pág. 95]. Ademais, “traria o “Departamento de Velas” à ruína” e atrapalharia o funcionamento do “Conselho Mundial”, que “levou cinquenta anos para assegurar a aprovação de todos os Conselhos para a vela, para decidir quantas seriam necessárias e para reformular os planos necessários para substituição das tochas por velas” [pág. 96].

Embora não se importasse em cumprir as penas que lhe estavam sendo impostas, Igualdade 7-2521 resolve fugir para salvar as suas descobertas científicas, levando consigo a “Excelente”, com quem vivia um romance oculto. Por fim, o personagem encontra um local distante daquela sociedade, no qual suas liberdades individuais seriam respeitadas, concluindo que a sua felicidade está ligada aos seus tesouros: “meu pensamento, minha vontade, minha liberdade”, sendo a liberdade “o maior de todos [pág. 119].

No romance de Rand, a “Palavra Inexprimível” era “eu”, pois todos deveriam pensar de forma coletiva. Por analogia, pode-se dizer que as recentes decisões do TSE definiram ser “palavras inexprimíveis” àquelas relacionadas à condenação de Lula, as quais não devem ser abordadas pelos jornalistas da Jovem Pan, sob pena de multa diária para o canal e para os jornalistas de R$ 25 mil.

Em síntese, a Coligação Brasil da Esperança pediu ao TSE que a Jovem Pan fosse obrigada a dar direitos de resposta sobre a situação judicial do petista, considerando que, “nos comentários, exibidos em programas de 29 a 31 de agosto, os jornalistas afirmaram que o petista não foi inocentado, e sim “descondensado” pelo STF (Supremo Tribunal Federal) nos processos aos quais respondia[3].

Ocorre que, ao julgar o requerimento, o TSE proferiu decisão (18/10/2022) a partir do voto do Ministro Alexandre de Moraes, aprovada por 4 votos a 3, não apenas concedendo o direito de resposta, mas determinando que a emissora e seus comentarias “se abstenham de promover novas inserções e manifestações sobre os fatos tratados nas representações (situação dos processos de Lula). A emissora recorreu para tentar vetar a mídia de resposta apresentada por Lula, mas o Ministro Alexandre de Moraes manteve o conteúdo conforme decisão proferida na última sexta-feira (28/10/2022). O texto afirma, dentre outros, que “Lula é inocente”.

Recentemente nos debates de televisão e até mesmo em sua página oficial, o PT afirmou que “Lula foi inocentado e venceu todos os 26 processos que pesavam contra ele”. Contudo, essas expressões não são adequadas, uma vez o STF não analisou o mérito das acusações para anular as condenações de Lula por corrupção e lavagem de dinheiro nos casos do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia. As decisões de condenação foram invalidades com base em questões processuais, sob o entendimento de que a 13ª Vara Federal de Curitiba não tinha competência para processar os casos e o ex-juiz Sergio Moro teria atuado de forma parcial.

Embora o STF tenha anulado as condenações, “não houve uma revisão sobre a ocorrência ou não dos pagamentos de propina e tentativas de ocultar a vantagem indevida. Segundo a sentença da condenação na primeira instância e acórdão proferido na segunda instância, os imóveis receberam investimentos milionários da OAS e da Odebrecht em razão de contratos obtidos na Petrobras, e só não foram passados para o nome de Lula numa tentativa de esconder que ele era o beneficiário[4], fatos confirmados por três desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). “No caso do triplex, cinco ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmaram a condenação, afastando a ocorrência de má aplicação da lei no processo”.

É fato público e notório que a situação processual/criminal de Lula é controversa. Ainda, se tratando de uma “pessoa pública” e que, além de ex-presidente, disputa as eleições para cargo de chefe de executivo, proibir a discussão do assunto por àqueles que não entendem que Lula “foi inocentado”, não seria uma forma de censura e cerceamento da liberdade de expressão, garantida pelo art. 220 da Constituição Federal?

* Lucas Garcia Martins é Associado do IFL-SP e Advogado especialista em Direito Empresarial pelo Insper.


[1] Como “A nascente” (1943) e “A revolta de atlas” (1957), por exemplo.

[2] Disponível em: https://www.academia.org.br/artigos/plural-majestatico. Acesso em 25/05/2022.

[3] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/10/21/decisao-tse-jovem-pan-lula.htm Acesso em 30/10/2022.

[4] Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2022/lula-inocentado-justica-condenacoes-lava-jato/?ref=link-interno-materia Acesso em 30/10/2022.

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