Antes de discutirmos Hayek e Rand, devemos distinguir filosofia de economia. Em economia, Hayek fez grandes contribuições, pois era um radical. Radical no sentido de ir à raiz, aos fundamentos. Em economia, Hayek rejeita a sabedoria convencional e destaca o papel fundamental da produção (e não da “demanda” keynesiana), a saber, a tarefa de produzir é, no fundo, intelectual – com a primazia sendo concedida, não ao “trabalho laboral” marxista, mas à “descoberta criativa” e ao cálculo econômico baseado na informação dos preços de mercado.
Mas, em filosofia, a história é diferente: Hayek é mais conservador que radical. Ele não verifica as premissas mais profundas da filosofia tradicional, trabalhando dentro de um quadro limitado de referências e, em última instância, autodestrutivo. Assim, ele se vê preso a um conjunto de falsos dilemas que dominaram a filosofia ao longo dos séculos: o Racionalismo de Platão versus o Empirismo de David Hume; misticismo versus ceticismo; absolutos sem contexto versus convenções subjetivas e arbitrárias; “instinto” versus tradição.
Por exemplo, Hayek escreve:
O mundo físico objetivo é diferente daquele percebido pelos sentidos[1]
Isso é a metafísica de Platão via Kant. Toda a filosofia platônico-kantiana é baseada na alegação de que o mundo que vemos, ouvimos, tocamos, etc não é objetivo – não “coisas como são em si mesmas”[2] (Kant), nem “a realidade verdadeira e real’ (Platão).
Da mesma forma, Hayek escreve:
Em oposição ao racionalismo ingênio que considera nossa racionalidade atual um elemento absoluto, devemos prosseguir com os esforços iniciados por David Hume ao “fazer voltar contra os iluministas as suas próprias armas”, e ao buscar “reduzir as pretensões da razão” utilizando a análise racional.[3]
E: “o cérebro humano nunca pode explicar totalmente a sua própria operação”[4].
De fato, a confiança na habilidade de a razão guiar a ação é “A Arrogância Fatal”.
A maior parte do conhecimento… é obtido não da experiência ou observação imediatas, mas do processo contínuo de filtrar uma tradição apreendida, o que requer a identificação e seguimento individuais de tradições morais que não são justificáveis em termos de cânones de teorias tradicionais da racionalidade [5].
Por que Hayek proclama a impotência da razão? Porque ele está operando sob a premissa de que razão tem de significar Racionalismo. Ele está trabalhando dentro do paradigma platônico, uma visão platônica da lógica e das abstrações. Ele não conhece solução para o problema dos universais – o velho problema de identificar a que os conceitos se referem na realidade. Por exemplo: ao que se refere “homem”? O antigo sofista grego Antístenes disse “eu já vi muitos homens, mas nunca vi o homem”.
Em toda a história da filosofia, só foram oferecidas duas respostas ao desafio de Antístenes. A resposta platônica: “você não pode ver o homem com seus olhos físicos, mas se usar seu olho intelectual para apreender o mundo das Formas, você pode intuir a Forma do Homem. A Forma do Homem existe noutra dimensão não perceptível” e 2) a resposta humeana: “não há tal coisa como o homem. Só existem homens. Eles se parecem, e usamos suas semelhanças brutas como base para chamar cada indivíduo de “um homem”. Quando assumimos que o que é verdadeiro para um homem será verdadeiro para outro, estamos dando um salto da fé, dizem os humeanos. Não há base racional para generalizações indutivas, pois não há atributo idêntico às coisas que aparentemente se parecem para as quais usamos a mesma palavra. Não há lógica nas generalizações – só associações acidentais que se tornaram habituais.
Tradicionalmente, o dilema epistemológico era: intuições de um mundo invisível, ou convenções sociais arbitrárias. Na Ética, isso se traduzia em: mandamentos do céu (divinos) ou caprichos subjetivos. Na linguagem freudiana, o dilema era o superego ou o ID.
Esse é o conjunto de falsos dilemas que Hayek aceita em filosofia. E isso prejudica sua economia, que corretamente enfatiza o processo do cálculo econômico, a transmissão de informação via preços, e a concorrência como processo de “descoberta criativa” – todos os quais envolvem confiança no poder do intelecto.
A filosofia de Ayn Rand oferece uma saída para esse dilema filosófico. O Objetivismo defende uma posição que não é nem platônica, nem humeana, nem racionalista, nem empírica, nem dogmática, nem cética, nem mística, nem subjetiva. Essa nova alternativa é: objetividade – entendida de uma forma nova e mais profunda. Para Rand, objetividade significa, como Leonard Peikoff formulou, “adesão volitiva à realidade pelo método da lógica”.[6]
Platonistas defendem que o conhecimento não requer nem método, nem escolha – só precisamos abrir nossa mente para a verdade. Humeanos, observando que a “intuição” de um indivíduo contradiz a do outro, concluem que estamos condenados intelectualmente. Só o conhecimento automático seria confiável, supõem, mas temos uma escolha de como proceder que é: não há padrão racional para julgar formas alternativas de procedimento.
Ambos os lados do falso dilema concordam, em essência, com a frase de Dostoyevsky: “se Deus não existe, tudo é permitido”. Místicos e céticos concordam que Deus (ou algum domínio místico) é requerido para termos conhecimento da verdade e do valor. (Céticos concluem que tal conhecimento é inatingível).
Rand rejeita essa premissa. O conhecimento não tem de ser automático para ser válido e correto. Um método racional de formação e uso de abstrações pode ser definido; esse método é a lógica, “a arte da identificação não contraditória”[7]. Mas o Objetivismo expande a lógica aristotélica ao incluir uma consciência dos requerimentos impostos pela natureza de nosso sistema cognitivo; lógica é mais que raciocínio silogístico (como até mesmo Aristóteles sabia) –, incluindo formação de conceitos, definição e indução.
Uma teoria racional de formação de conceitos é a raiz (base) de todo o resto. Para Rand desenvolver seu conceito de objetividade, o primeiro passo crucial foi apreender a relação de conceitos a perceptos, isto é, de abstrações a concretos – por exemplo, resolver o problema dos universais. Rand realizou esse feito singular/distintivo ao analisar o que subjaz a similaridade. “Similaridade”, ela escreve, “é a relação entre dois ou mais existentes que possuem as mesmas características, mas em nível ou medida [diferentes]”[8]. Eu não entrarei na parte técnica da teoria da “omissão de medidas” de Rand, meramente referindo ao leitor a clara exposição encontrada em Introduction to Objectivist Epistemology, cap. 2.
Considere agora a aplicação da razão à questão do juízo de valor. Aqui, Hayek também trabalha com noções recebidas, em vez de questionar as premissas fundamentais. Como a maioria dos economistas, Hayek (corretamente) rejeita a noção de valor intrínseco – a crença de que o valor de um bem ou serviço é inerente a ele, independente das ideias, valores e necessidades humanas. É um erro pensar que existe um “preço justo” contra o qual o indivíduo pode julgar o preço de mercado. Mas Hayek abraça o outro lado do falso dilema: se o valor não é intrínseco, ele deve ser subjetivo. Ele existe somente na mente das pessoas.
Ayn Rand oferece a terceira alternativa: o valor é objetivo. O valor não é nem uma característica intrínseca de um objeto, separado das avaliações humanas, nem um valor que só existe em nossa mente, independentemente dos fatos. Em vez disso, o valor é uma relação – relação entre nossa mente e os fatos, baseando-se na aplicação de um padrão racional de valor aos fatos. Ela chama essa alternativa de “teoria objetiva” do valor. Nós avaliamos o valor de um bem ou serviço para nós com base em nossas ideias sobre a totalidade dos fatos – fatos relacionados aos atributos da coisa/do objeto, suas propriedades causais, o quão difícil é produzi-las la/lo, e tantos outros dados econômicos.
De forma mais ampla:
A teoria objetiva sustenta que o bem nem é um atributo das “coisas em si mesmas” nem dos estados emocionais do homem, mas uma avaliação dos fatos da realidade pela consciência do homem de acordo com um padrão racional de valor. (Racional, nesse contexto, significa: derivado dos fatos da realidade e validade por um processo da razão.) A teoria objetiva sustenta que o bem é um aspecto da realidade em relação ao homem – e que ele deve ser descoberto, e não inventado, pelo homem.[9]
Rand baseia sua defesa do funcionamento econômico do capitalismo em sua objetividade em relação ao valor. “A visão objetiva dos valores permeia toda a estrutura da sociedade capitalista”.[10]
Hayek é famoso pela ideia da “ordem espontânea”. Direitos de propriedade, respeito pela autonomia do indivíduo e o surgimento das instituições capitalistas não são coisas que alguém planejou desde algum ministério ou trono. Elas simplesmente evoluíram.
Por que Hayek defende tal posição? Qual é a vantagem de dizer que o sistema capitalista não foi imposto de cima, mas emergiu de baixo? Por que ele tem de ser espontâneo? – o maior tema na metaeconomia hayekiana? A resposta é: se não há forma racional de decidir como a sociedade deve ser organizada, como Hayek acredita, então ele pode, pelo menos, argumentar: “Deixemos a seleção ao que evoluiu naturalmente. Não intervenha na natureza. Obtemos o capitalismo como resultado de tentativa e erro e concluímos que funciona. Então, não me venha com algum sistema dedutivo, racionalista, de ideias para bagunçar as coisas”.
Ora, esse é um argumento terrível. É o mesmo que um ambientalista dizer: não tente melhorar o que a natureza ofereceu – quem somos nós para brincar de Deus? Da mesma forma, o argumento de Hayek é: quem somos nós para brincar de Deus, estabelecendo leis, regras e instituições?
Mas ele só adota essa frágil linha de argumento porque não entende que se pode estabelecer uma ética racional e uma política racional baseada nela. Isso é muito diferente de “planejamento central”. É verdade que você não pode impor racionalmente suas ideias às pessoas, forçando-as a obedecer, na economia (ou em qualquer outra esfera da vida). Mas o aspecto negativo da iniciação da força contra os outros não é devido a isso ser “não natural”; como identificado por Rand, a coerção é má, pois “interpor uma ameaça de destruição física entre o homem e sua percepção de realidade, é negar e paralisar seu meio de sobrevivência”.[11]
Assim, contra Hayek, a questão não é a ignorância do planejador. Mesmo se alguém soubesse o que outra pessoa deveria fazer, um indivíduo não poderia alcançar o bem-estar dela ao forçá-la a fazê-lo.
Um valor que alguém é forçado a aceitar ao preço de desistir da própria mente, não é um valor; aquele que através da força torna-se destituído de sua mente não pode julgar, nem escolher, nem valorizar. Uma tentativa de alcançar o bem pela força é como uma tentativa de fornecer a um homem uma galeria de arte ao preço de lhe arrancar os seus olhos. [12]
É à própria mente que uma pessoa tem de recorrer. A força é destrutiva porque “o antimente é antivida”[13].
Os princípios morais e políticos sobre os quais o capitalismo é baseado não surgiram espontaneamente. Os princípios basilares do capitalismo foram consciente e cuidadosamente propostos pelos pensadores iluministas, tais como John Locke. Locke, por sua vez, recorreu aos princípios metafísicos e epistemológicos estabelecidos por Aristóteles (transmitidos ao mundo moderno por Tomás de Aquino). Pensadores como Hugo Grócio, Pufendorf e Locke desenvolveram o princípio que tornou o capitalismo possível: os direitos individuais.
Incidentalmente, contra a ideia de “ordem espontaneamente desenvolvida”: a Constituição das Carolinas foi elaborada por John Locke! A Declaração da Independência tomou emprestado algumas das passagens do II Tratado de Governo de Locke. Os pais fundadores dos Estados Unidos obtiveram a ideia dos direitos individuais e fundaram nossa Constituição de forma consciente, baseada no estudo cuidadoso da filosofia e da história. Ler os Federalist Papers revela quão eruditos eram, e quanto sabiam não só de Locke, mas de Cícero, Montesquieu e outros grandes pensadores da teoria política.
Hayek, com alguma justificação (justificativa), fala de “evolução cultural”, mas de onde vêm as variantes desse processo seletivo? Na evolução biológica, as variantes advêm da mutação randômica e recombinação sexual de elementos genéticos. De onde vêm as variações ético-políticas? Elas vêm dos filósofos. E quando a requerida base filosófica para “o que funciona” perde aceitação, a sociedade retrocede – como na queda de Roma ou no colapso na Idade Média. A “evolução cultural” de Hayek é totalmente incapaz de explicar como tal fenômeno como a Idade Média pôde ocorrer, se instituições surgem ou perecem com base no que funciona na prática.
A filosofia de Hayek é o que lhe impede de reconhecer o impacto cultural da filosofia. O ceticismo de Hayek sobre a razão abstrata está intimamente ligado ao seu ceticismo quanto à moralidade. A razão abstrata é a “arrogância fatal”. E a citação frontispícia daquela obra é esta citação do arquicético David Hume: “as regras da moralidade não são produto de nossa razão”. Qualquer pessoa que nisso acredita fica, obviamente, totalmente perdida quando falamos da justificativa dos direitos individuais, e [a] sua consequência: o Estado de Direito e o livre mercado. A “ordem espontânea” é onde Hayek busca se esconder, dada sua crença que nenhum código moral racional e objetivo possa existir.
[O que] Hayek necessita [é] da explanação de Rand de como conceitos podem ser objetivos, como a razão, não importa quão abstrata, reflete a estrita adesão à lógica, e como isso pode ser aplicado na definição de um código de moralidade racional, objetivo e científico. (Veja, A Ética Objetivista na Virtude do Egoísmo|).
A conclusão é a de que os imensamente valiosos pontos econômicos de Hayek precisam da base filosófica que Ayn Rand desenvolveu. E deixe-me enfatizar que essa base não snão se constitui da junção aleatória de alguns slogans/chavões. (“Seja lógico”, “o homem é um fim em si mesmo”), mas um corpo volumoso, rico e detalhado de princípios sistemáticos e precisamente definidos. (Veja Rand’s Introduction to Objectivist Epistemology, Leonard Peikoff’s Objectivism: The Philosophy of Ayn Rand, Tara Smith’s Ayn Rand’s Normative Ethics, and my own How We Know: Epistemology on an Objectivist Foundation.)
[1] The Sensory Order, 8.37.
[2] Em filosofia, são, coisas em si, as coisas que existem mas não podem ser experimentadas pelos seres humanos, pois não podem ser intuídas. A expressão é de origem kantiana. Em princípio, a coisa em si é algo que existe por si próprio, independentemente de o sujeito perceber sua existência, tornando-o um objeto. Em Kant, o termo númeno é usado para falar da coisa em si, isto é, da coisa em sua existência pura independentemente de qualquer representação.
[3] The Constitution of Liberty
[4] The Sensory Order, 8.69.
[5] The Fatal Conceit, p. 75.
[6] Objectivism: The Philosophy of Ayn Rand, p. 116.
[7] Atlas Shrugged, p. 934.
[8] Introduction to Objectivist Epistemology, p. 13.
[9] “What is Capitalism?” in Capitalism: The Unknown Ideal, p. 22.
[10] Ibid., p. 23.
[11] Atlas Shrugged, p. 940.
12]What is Capitalism?” in Capitalism: The Unknown Ideal, p. 23.
[13] Atlas Shrugged, p. 930.
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Tradução de Matheus Pacini
Revisão de Breno Barreto
Publicado originalmente em Harry Binswanger Newsletter
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