Ayn Rand, realismo romântico e o gênero literário ‘fantasia’

Recebi um questionamento interessante: o ideal literário de Ayn Rand é o realismo romântico, isto é, a ideia de que a literatura deve retratar a vida humana como ela pode e deve ser. Esse ideal implica necessariamente em uma condenação do gênero literário fantasia? A sua visão da arte é incompatível com obras de ficção populares como Harry Potter, Star Wars ou Game of Thrones, por causa de seus elementos irreais?

Sim. E não.

Antes de tratar do “não”, é importante explicar o “sim”. Em The Romantic Manifesto, Rand mostra como muitos autores românticos utilizaram aspectos sobrenaturais para conciliar sua representação do heroico na arte com sua negação na vida real. Se um artista aceita, implícita ou explicitamente, a ideia de que não existem heróis de verdade, mas, mesmo assim, deseja retratar o heroísmo na arte, pode utilizar o sobrenatural para “justificar” o heroico. O raciocínio é algo assim: “Sim, pessoas de verdade não são heroicas, porém esse personagem consegue mover as coisas com o poder de sua mente, então, é uma exceção à regra”.

Quando elementos fantásticos são utilizados para justificar um heroísmo irrealista, pioram a arte. Dito isso, acredito que há um argumento válido em defesa da fantasia, na medida em que é realista. Para explicar o que quero dizer com “realista”, preciso estabelecer a diferença entre o que, por falta de um termo melhor, chamo de “realismo estreito” e “realismo amplo”.

O realismo estreito é a crença de que a arte deve retratar a realidade tal como ela é agora, já foi, ou pode ser no futuro. Por essa perspectiva, a representação de um dragão ou de uma nave espacial é, na melhor nas hipóteses, boba – na pior, evasiva. Afinal, a não ser que alguém esteja tentando “fugir” para um mundo fictício, não há razão para representar algo que não existe.

A fantasia – e a ficção em geral – também pode ser usada como uma forma de escapismo. Ainda assim, acredito que o realismo estreito tem a mesma falha da visão naturalista do realismo: ignora os aspectos essenciais da existência em prol do superficial. Um naturalista se oporia à representação do homem heroico na arte, com base na crença de que “homens assim não existem”. Todavia, ainda que ignoremos a existência de todos os heróis vivos neste exato momento, de cientistas a empresários, essa crença ainda seria errônea, já que a arte deve representar aquilo que pode ser. Mesmo em um mundo em que não haja um único herói, um escritor é capaz de identificar a natureza racional do homem, concebendo um herói que poderia existir.

Acredito que esse é o papel de uma visão ampla do realismo: identificar os aspectos essenciais da existência. Tomemos como exemplo as Crônicas de Gelo e Fogo, de George Martin, que deram origem ao seriado Game of Thrones. Os livros são, claramente, fantasias – dragões e mortos-vivos não existem – mas, mesmo assim, a trama é considerada extremamente realista por muitos. Por quê?

Acredito que a resposta esteja na capacidade de Martin abstrair os aspectos essenciais da existência. Seu mundo não é arbitrário. Seus “dragões e mortos-vivos” tem uma identidade específica, e obedecem estritamente à causalidade – não são uma espécie de deus ex machina, que possibilitaria a um personagem alterar a narrativa através de seus sentimentos, ou acomodaria alguma outra forma preguiçosa e inverossímil de resolver o enredo. Seus personagens são seres humanos realistas, totalmente volicionais, que variam do mais vil dos bandidos ao mais nobre dos heróis. Suas ações tem consequências realistas: personagens mais bem-intencionados perecem se escolhem agir com frequência de forma irracional; personagens maus têm êxito limitado pela natureza de sua maldade; e personagens que agem de forma boa e bem-pensada costumam se sobressair.

Quanto mais fantástico um romance, mais pode explorar esse aspecto, desde que mantenha a essência realista. Os vários mundos de um universo como o de Star Wars, por exemplo, representam concretamente como outros mundos, sujeitos a circunstâncias distintas, podem ser (com base em nossos conhecimentos de Física). Suas muitas raças mostram como outras espécies de seres racionais poderiam ser, caso outros seres que não os nossos antepassados primatas, tivessem desenvolvido a razão.

Há, porém, um trade-off entre fantasia e realismo, e para entendê-lo, precisamos ter em mente a natureza e o propósito da arte. A arte é uma recriação seletiva da realidade, baseada nas valorações metafísicas do artista – seus julgamentos mais fundamentais, muitas vezes subconscientes, sobre a existência, o homem e a vida como um todo. Sua função é dar forma concreta às nossas abstrações mais elevadas, para que possamos percebê-las, assim como percebemos entidades, de forma direta.

Em essência, a arte é uma forma de perceber abstrações de forma concreta. E o que uma boa obra de fantasia faz? Do mito religioso ao romance popular, usa elementos fantásticos como metáforas para abordar temas reais – dando forma ainda mais concreta a abstrações. Um romance realista pode representar o amor, enquanto abstração geral, de forma concreta, ao descrever um evento ou um relacionamento amoroso específico. Por outro lado, um romance fantástico pode torná-lo ainda mais concreto retratando, por exemplo, um cupido – uma entidade física.

Apesar de facilitar a representação concreta de abstrações, a fantasia tem um custo. A metáfora de um inimigo morto-vivo, como o Sauron de Tolkien ou o Rei da Noite de Martin, pode dar uma forma mais concreta à abstração da morte, embora exija um ato mental adicional para que a trama adquira um significado real – o ato de relacionar o símbolo à realidade. Não faz nenhum sentido pensar em um rei morto-vivo, porém, faz sentido quando se percebe que Martin retrata, por exemplo, diversos senhores feudais em guerras fúteis entre si, enquanto ignoram seu verdadeiro inimigo – a morte. Perceber que a obra trata sobre a futilidade de disputas políticas tribais em relação à manutenção da vida humana, todavia, requer uma interpretação mais ativa, que não seria necessária em uma obra que abordasse o assunto de forma direta, falando sobre políticos e produtores, por exemplo.

Um romance mais realista, como A revolta de Atlas, representa ideias abstratas através de instâncias particulares de abstração, e não através de metáforas. Por isso, não há tanto simbolismo para “desempacotar” – entidades representam tipos de entidades, e não abstrações mais gerais. Um produtor específico, como Hank Rearden, serve como uma representação de todos os produtores semelhantes a ele, mas não como uma personificação da produtividade em si. O seu metal, mais resistente que o da concorrência, pode ser entendido como um símbolo de sua integridade moral, porém essa interpretação é secundária, e o valor da narrativa não depende dela, pois a trama em si é uma descrição coerente e autossuficiente de eventos.

A fantasia possibilita que o artista dê forma mais concreta a abstrações, mas introduz o custo de atos mentais adicionais. A arte realista, por outro lado, pode ser entendida literalmente, mas torna a concretização do abstrato mais difícil para o artista. Elementos fantásticos, portanto, podem ser entendidos como uma espécie de “atalho” estético útil, mas custoso.

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Revisado por Matheus Pacini.

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