Ayn Rand acha que os ricos são maus?

Em resposta a uma postagem em meu Facebook em que cito Rand, muitos ficaram surpresos por alguém associado ao libertarianismo Bleeding Heart (LBH)[1] ter coisas boas a dizer sobre ela. Além de ela ter sido uma grande influência para nós em nossa juventude (um dia, contarei o caso de Matt Zwolinski), a obra de Rand contém ideias extremamente valiosas, ainda que alguém discorde de partes dela. Por exemplo, considero a ideia de “sanção da vítima”[2] uma análise sóciopsicológica poderosa e útil na compreensão tanto das minhas escolhas como as dos outros.

Outra parte valiosa da obra de Rand também é uma das mais mal-entendidas por seus críticos, de forma a retratá-la como uma inimiga maior do que realmente era[3] à preocupação dos LBHs com os pobres.

Esse mal-entendido foi ao ar em um domingo à noite, durante um episódio do seriado The Good Wife – normalmente, um ótimo show. A protagonista é uma advogada que trabalha para um empresário bastante conservador. Em meio a uma conversa sobre por que ele, como parte do 1%[4], sentir-se tão antagonizado, pergunta se ela já havia lido Rand. A protagonista responde: “você já leu os livros dela? Um cara explode um prédio e os ricos entram em greve? Parece a visão de mundo de uma criança de 12 anos”. Não sei se os roteiristas do show realmente pensam assim ou se acreditam que a personagem pensaria dessa forma. O ponto é que resumir A revolta de Atlas a um livro que mostra a história de “ricos” entrando em greve tem sido uma estratégia repetida frequentemente por intelectuais públicos críticos de Rand. No geral, a visão desses críticos é que Rand amava os ricos e odiava os pobres, e que A revolta de Atlas é uma história sobre ricos retratados como heróis nietzschianos que deveriam se libertar, de modo a salvar o mundo dos parasitas pobres e de classe média.

Essa visão, é claro, está totalmente. Não são os “ricos” que entram em greve, mas os produtores. A divisão entre o bem e o mal para Rand não está entre ricos e pobres, mas entre produtores e saqueadores. Não há qualquer interpretação remotamente plausível de A revolta de Atlas em que o “1%” é inquestionavelmente composto por heróis, e todas as outras pessoas são “parasitas”. É possível listar vários personagens que não se encaixam nessa descrição. O mais óbvio de todos é o próprio John Galt. Nenhuma das descrições de Rand sugere que ele seja rico. Confortável? Sim. Mas rico? Não. Francisco D’Anconia e Hank Rearden são ricos, mas Hugh Akston? Não parece ser particularmente afluente. Por outro lado, temos Jim Taggart: rico, sim, mas claramente um dos vilões da história. Wesley Mouch teve sucesso e parece ser rico, assim como muitos dos outros vilões com quem se relaciona. São esses que participam de festas chiques e vivem uma vida de luxo, enquanto os produtores estão, na maior parte do tempo, ocupados administrando ferrovias, extraindo petróleo, ou inventando novos metais.

O retrato de Rand dos pobres e da classe média também não se encaixa na caricatura de seus críticos. O caso mais óbvio é o de Eddie Willers, braço direito de Dagny. Ele é retratado como uma pessoa boa, um administrador esforçado de classe média. Para Rand, o fato de ele não ser um produtor do nível de Dagny ou Hank, ou de não ser rico, não justificam tratá-lo como um “parasita”. Para Rand, o que importa são os seus valores: Eddie compreende que produzir é moralmente superior a saquear, adotando uma postura profundamente íntegra frente ao seu trabalho e à sua vida, algo mais importante para Rand do que qualquer riqueza ou habilidade produtiva que possa ter. Mesmo não produzindo valor no nível de Dagny, Willers produz outros tipos de valor, recusando-se a viver da produção alheia. Rand entende como a vantagem comparativa possibilita que os mercados recompensem qualquer pessoa capaz de produzir valor para as outras, independentemente de sua inteligência ou força física. O que importa são seus valores, e há diversos outros personagens secundários no livro que geram valor e são íntegros, mesmo com habilidades modestas. Eles são moralmente dignos de louvor, mesmo sem ser ricos.

Em contraste, existem diversos personagens secundários que são explicitamente ricos, mas tratados como vilões. Pense na famosa cena do trem no túnel, em que o Cometa segue rumo ao desastre, e Rand cataloga os “pecados” intelectuais daqueles prestes a morrer, de certa forma sugerindo que esse é o destino que merecem. Minha intenção não é discutir se suas mortes eram ou não merecidas; quero apontar que, dentre os caras “maus” no Cometa, estão: um editor de jornal, um empresário corporativista, um financista que “ganhou fortuna” manipulando regulamentações, e um homem que herdou uma fortuna “e que vivia repetindo, ‘Por que o Rearden deveria ser o único a poder produzir o Metal Rearden?’” Esses são os ricos maus. Também há pessoas mais modestas a bordo do trem, que são retratadas como moralmente erradas não por seus meios modestos, mas por causa de seus valores. Novamente, minha intenção não é debater ética aqui. O ponto é apenas que existem vários personagens no romance que são ricos, mas retratados como maus, e várias pessoas pobres, retratadas como boas. (Também existem vilões ricos em A nascente, mas esse é um tema para outro artigo.)

O que os críticos da obra (geralmente de esquerda) perdem com sua simplificação “rico bom e pobre mau” é que Rand entendia a diferença entre um mercado genuinamente livre e o que hoje é chamado de “capitalismo de compadrio”. O segundo define tanto o mundo do romance quanto as economias ocidentais do início do séc. XXI. Como ilustra a cena do Cometa, muitos dos vilões ricos eram rentistas e empresários corruptos: pessoas cuja riqueza não tinha sido adquirida como pagamento em troca de valor criado para os consumidores (i.e. os 99%), mas através da redistribuição da propriedade tomada de terceiros. Em alguns casos, eles enriqueceram por suas conexões com a classe política, o que não produz nenhum tipo de valor. O capítulo “A Aristocracia do Pistolão” representa exatamente esse tipo de capitalismo de compadrio e os problemas que causa às pessoas que se propõe a ajudar. Além disso, é uma excelente introdução à teoria da escolha pública[5].

Entender que Rand não argumenta que os ricos são sempre moralmente bons, ou que os pobres são sempre imorais – ou amorais – tem implicações importantes para o Libertarianismo Bleeding Heart. É tentador, para os LBHs, simplesmente rejeitar toda a obra de Rand, mas não creio que essa seja uma decisão razoável. A crítica ao capitalismo de compadrio é um dos possíveis temas nos quais podemos cooperar com nossos amigos de esquerda. Felizes, muitos na esquerda usam produtos da Apple para organizar protestos e organizar ações políticas, e talvez não se importem com a riqueza acumulada por Steve Jobs e afins, se entendem implicitamente a ideia de trocar valor por valor. Se, como dizem, a esquerda realmente rejeita o capitalismo de compadrio e um mundo em que alguns membros do 1% ganham dinheiro não através da produção de valor e troca com os 99%, mas através de privilégios políticos, esse talvez seja um bom ponto por onde começar. Também é um ponto, diga-se de passagem, consistente com a mensagem representada, de forma tão poderosa, em A revolta de Atlas.

Meu objetivo não é transformar críticos esquerdistas do capitalismo de compadres em fãs de Rand. Em vez disso, quero simplesmente apontar que i) a leitura “rico=bom; pobre=mau” da obra de Rand não corresponde ao que, de fato, está no romance; ii) a distinção moral importante entre “produtores” e “saqueadores”, que podem ser ricos ou pobres dependo das circunstâncias; e iii) quando lido corretamente, A revolta de Atlas é uma crítica extensa ao tipo de “capitalismo de compadrio” característico da economia política americana atual.

Os paralelos entre o mundo de A revolta de Atlas e os Estados Unidos de hoje são parte da razão pela qual a obra retornou à discussão intelectual nos últimos anos. Libertários não citam a obra porque defendem a riqueza de todo o 1%. Na verdade, os LBH enxergam no capitalismo de compadrio atual todos os problemas que o romance levanta: pessoas estão se tornando e se mantendo ricas através de conexões e privilégios, criando a “aristocracia do pistolão” sobre a qual Rand alertou. Para Libertários Bleeding Heart, isso é um problema real. A distinção de Rand, entre riqueza criada por produção em um mercado livre, e riqueza adquirida (não produzida!) através de privilégios políticos é uma que importa para LBHs porque a primeira cria benefícios (geralmente não planejados) para os menos favorecidos, ao contrário da segunda. A distinção de Rand também possibilita que LBHs e semelhantes evitem o problema do chamado “libertarianismo vulgar” e das defesas conservadoras do status quo, e nos fornece uma crítica mais radical do status quo que pode ressoar com a esquerda. Rand nos dá razões para criticar a riqueza tomada à força de terceiros, ao invés de adquirida trocando com eles, o que pode servir de base para uma crítica severa de setores da América corporativa, e muitos dentro do 1%.

A efetividade do romance ainda se deve à forma como expõe ideias corretas de economia política em forma de narrativa, ilustrando de forma poderosa as consequências indesejáveis e imprevistas de ideias e instituições ruins. LBHs podem tomar para si partes boas da obra, e apontar que muitas dessas consequências indesejáveis impactam principalmente a vida dos menos favorecidos. Com uma leitura correta de A revolta de Atlas, podemos aproveitar os elementos bons de Rand, a escritora, no projeto LBH mesmo sem concordar com todos os pontos da filosofia de Rand.

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Tradução de Bill Pedroso.

Revisão de Matheus Pacini.

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[1] N. do T. O Libertarianismo Bleeding Heart é uma ideologia que junta a defesa libertária dos direitos individuais às ideias de justiça social e equidade, comuns à esquerda. Esses libertários propõem a redução do Estado, e a substituição de seu papel na redistribuição de renda e ajuda aos mais pobres por organizações de caráter social financiadas voluntariamente. O Objetivismo não se opõe à caridade, mas rejeita patentemente qualquer ideia de justiça como algo essencialmente social.

[2] “A ‘sanção da vítima’ é a disposição do bom a sofrer pelo mau, aceitando o papel de vítima sacrificial pelo ‘pecado’ de criar valores.” – The Philosophy of Objectivism, Leonard Peikoff, palestra 8.

[3] Nota do Tradutor: A essência do Libertarianismo Bleeding Heart é a tentativa de integrar as ideias de liberdade individual e justiça social. Por não ser um corpo teórico coeso, o LBH engloba diversas formas distintas de pensar. Na medida em que o aspecto social da justiça é visto como uma consequência de sua essência individual, e a caridade é vista como um ato egoísta, o LBH se aproxima do Objetivismo. Na medida em que a justiça e a moral são considerados existentes essencialmente coletivos, e a caridade é entendida como um dever moral, um “bem social” ou alguma outra forma de altruísmo, o LBH é radicalmente contraditório ao Objetivismo. Como o autor ressalta, porém, as divergências não se devem a uma exaltação dos ricos, ou a um desprezo aos pobres, como dão a entender muitos críticos.

[4] N. do T. O “1%” é um termo frequentemente utilizado nos EUA – e infelizmente cada vez mais no Brasil – para se referir ao 1% mais rico da população, que geralmente é dono de grande parte da riqueza do país. O termo comete a “falácia do pacote”, isso é, agrupa existentes essencialmente diferentes em um mesmo conceito. No caso, o termo trata igualmente pessoas que ganharam muito dinheiro honestamente e criminosos “bem-sucedidos”, e geralmente é utilizado para condenar o acúmulo de riqueza.

[5] N. do T. A Teoria da Escolha Pública é uma escola de economia política positivista, criada na segunda metade do século passada por autores como Mancur Olson, Kenneth J. Arrow e Robert Downs. A escola busca entender fenômenos como o rentismo, a burocracia e o processo eleitoral por meio da utilização de modelos matemáticos que visam representar os incentivos que afetam um grupo de indivíduos. Apesar de sofrer de vários problemas que tratamos nesse artigo, a Teoria da Escolha Pública oferece insights interessantes sobre a relação entre o tamanho de um grupo e a forma como um indivíduo é capaz de influenciar suas decisões coletivas. Para mais informação sobre a Teoria da Escolha Pública, ver The Logic of Collective Action, de Mancur Olson.

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