Nós Que Vivemos – primeiro romance escrito por Ayn Rand – ambientado na Rússia Soviética no início da década de 1920, conta a história de Kira Argounova, uma jovem estudante de Engenharia que sonha em construir pontes. Kira se torna a figura central do livro, encarnando seu tema principal: o conflito do indivíduo contra o Estado.
A história começa com Kira retornando a Petrogrado com sua família após um prolongado exílio na Crimeia devido à Revolução Bolchevique. O pai de Kira era proprietário de uma fábrica têxtil, que foi confiscada e nacionalizada, assim como a casa da família, que foi convertida em alojamento para várias famílias. A vida é muito difícil nestes tempos, os padrões de vida são precários e os cidadãos, cansados, esperam em longas filas por alimentos e combustível. Com muito esforço, Kira obtém sua Caderneta de Trabalho, que lhe permite estudar e trabalhar.
Esse texto analisa um trecho do capítulo 3, pág. 38, que narra a interação entre Kira e o oficial responsável por preencher seu documento de trabalho. O objetivo é explorar as mensagens que Rand nos comunica através da narração sobre a primeira personagem criada por ela: um protótipo do “homem ideal” que personifica a filosofia para viver na Terra, o Objetivismo.
Enquanto o oficial está preenchendo a nova caderneta de trabalho de Kira como qualquer outra, meramente documentando suas características físicas como estatura, cor dos olhos e cabelos, a narração de Ayn Rand mergulha mais profundamente na personalidade de Kira e nos detalhes de sua intrinsecabilidade, mostrando aos leitores que a protagonista não é outro alguém que pode ser descrita tão ordinariamente. Ao contrário, Rand expressa a riqueza interior da heroína inspiradora que acompanhamos durante a história, revelando camadas de significado por trás de sua aparência física.
Apesar de ser descrita com estatura mediana pelo oficial, Kira transcende essa definição comum com sua presença notável. A primeira frase da narrativa já contradiz isso: “O corpo de Kira era esguio, muito esguio”. A elegância de seus movimentos a torna distinta, deixando uma impressão geral de que sua presença é tão poderosa a ponto de sua essência se tornar transparente para todos, mais do que seu corpo físico. O corpo de Kira está em harmonia com sua alma, superando sua estatura.
Os olhos de Kira são descritos como cinza. Ayn Rand faz uso de uma metáfora visual marcante para exemplificar a cor: “o cinza das nuvens de tempestade[…]”. Os olhos de Kira evocam a potência e a firmeza de uma tempestade, porém mantém o mistério do que pode estar escondido por trás das nuvens quando a chuva passar. “[…] atrás das quais o sol poderia aparecer a qualquer momento”. Por trás daqueles olhos está o Sol – apesar da seriedade e intensidade, existe ali esperança, uma luz subjacente, a calma e a clareza que mostra aos leitores a forma como Kira observa a vida.
Além disso, Kira é um indivíduo confiante e com autoestima, e seus olhos refletem isso: “Olhavam de forma tranquila e direta, com algo que as pessoas chamavam de arrogância, mas que não passava de uma calma profunda e confiante”. A certeza e a busca inabalável de seus objetivos emanam dos olhos de Kira como resultado de uma profunda autoconsciência, mostrando uma autoconfiança que é interpretada por alguns como arrogância, pois a maioria dos indivíduos no mundo de Kira não buscam seus valores, não utilizam a razão como guia para viver e não se permitem ter orgulho de si mesmos, condenando os que não fazem parte do status quo. Kira, a protagonista de Nós Que Vivemos é autêntica. Ela raciocina de forma independente, possui uma visão clara sobre a vida e não depende de dispositivos externos para alcançar a verdade.
A boca de Kira é descrita pelo oficial como: “NORMAL”. Dessa vez, Ayn Rand faz uma comparação entre o que os traços do atributo da personagem demonstram e a figura mitológica das Valquírias, virgens guerreiras que pertenciam ao esquadrão de guerra de Odin: “Quando se calava, era fria, indômita, e os homens pensavam em uma valquíria com sua lança e seu elmo alado, em meio à batalha”. Em silêncio, a boca de Kira reflete poder e bravura, como uma guerreira mortal, entretanto, com movimentos sutis, elementos de travessura e humor transparecem, evocando uma ampla gama de emoções em seus observadores masculinos.
E, por fim, seu cabelo, especificado apenas como castanho, é detalhado na narrativa da seguinte forma: “O cabelo de Kira era curto, jogado para trás da testa, raios de luz perdidos em um emaranhado confuso, o cabelo de uma mulher selvagem, primitiva […]”; “Sobre um rosto que havia escapado do cavalete de um apressado artista moderno: um rosto de contornos retos e nítidos, furiosamente traçados para insinuarem uma promessa não cumprida.” Esses trechos são de uma riqueza espetacular, adicionando mais detalhes sobre a necessidade de praticidade da personagem e leve desleixo, ao mesmo tempo que monstra sua naturalidade e autenticidade como uma qualidade indomável e instintiva. O rosto de Kira conclui a dualidade de caos e ordem que ambas as características representam juntas – seu cabelo selvagem contrastando com seu rosto preciso e ordenado. Simultaneamente, seus traços faciais não conseguem expressar com exatidão sua essência, deixando em aberto o potencial escondido entre eles.
Embora o oficial conclua que Kira não apresenta quaisquer sinais particulares, a descrição minuciosa da autora revela uma série de características que vão além do óbvio. Cada detalhe contribui para criar uma ilustração multifacetada que ultrapassa as definições superficiais, apresentada com maestria por Ayn Rand. Ela destrincha cada característica física da personagem para destacar a personalidade e essência heroica de Kira, deixando uma marca duradoura em todos que têm o prazer de encontrá-la nas páginas desse clássico romance.