A segunda sinfonia de Ayn Rand

Fazia 5 anos que não lia ‘Cântico’ de Ayn Rand.
A primeira vez que li, o que é, sem sombra de dúvidas, a obra mais acessível de ficção da autora, minha mente estava em chamas. Tinha acabado de ler A revolta de Atlas, A nascente, e tudo, tudo que eu conseguia tocar que ela tinha escrito. Se Ayn Rand tivesse escrito um texto encontrado apenas em aramaico, era capaz, nessa época, de aprender a língua só para lê-lo.

Passei pela obra correndo como se fosse um carro de F1. Talvez tenha lido em apenas um dia; provavelmente, li em apenas uma hora.

Como todo exemplo da literatura, a profundidade do mergulho que se quer dar num bom livro depende do mergulhador, e não do oceano. Um bom livro lhe dá apenas aquilo que você está disposto a capturar, com atenção e cuidado. Um bom livro é como Deus do antigo provérbio espanhol, desde a primeira página, a partir da primeira palavra, ele comanda:

‘Pegue o que quiser, e pague por isso’

O produto? Combustível, motivação, a coragem de enfrentar o mundo. O Preço? Talvez o bem mais precioso que existe, seu tempo.

Desde que comecei a trabalhar na noite, adquiri uma maldição: a insônia. Ela, da mesma maneira que sua contraparte mitológica, o vampirismo, além de custar bem caro física e mentalmente, beneficia o maldito com duas coisas, solidão e tempo.

Então, em uma das minhas madrugadas, como diria um dos grandes, depois de rodar esse mundo quase mudo, esse livro, novamente, veio à mão. E dediquei mais uma hora para relê-lo, nessa vez na língua original, dessa vez depois da grande transformação produzida em mim, pelas ideias que ele carrega.

Talvez, valha a pena falar brevemente sobre essa transformação. Na primeira vez que li este livro trilhava outro caminho, em outra carreira, em outra cidade. Era um grande menino perdido, que estava olhando para a vida e tentando decidir o que queria fazer com ela.

Depois desta ignição, mudaria de faculdade, sairia da ação política, da casa e da cidade em que cresci. Por causa da mulher que escreveu tal livro hoje estou terminando de escrever minha tese sobre filosofia moral, em posse do pouco dinheiro suado que produzi vendendo cerveja, suficiente para sustentar uma vida escassa, porém feliz, de pensar, escrever e falar coisas difíceis e chatas.

Esta nova hora, este novo mergulho, vem, portanto, equipado por instrumentos muito diferentes do primeiro. E, agora, depois de realizá-lo, gostaria, caro leitor, de relatar um dos corais literários fantásticos que fui capaz de observar.

A principal coisa a me arrebatar com essa segunda leitura foi quão infundada era a minha perspectiva sobre a relação de Ayn Rand com a poesia.

Sempre a vi como uma autora distante dessa forma de expressão artística. Em seu livro sobre escrita ficcional, Rand não dedica muitos movimentos argumentativos para falar sobre estilo, não explicita uma teoria sobre o lírico. Para provar isso é preciso apenas perceber que no próprio Ayn Rand Lexicon, local que reúne passagens e conceitos da filosofia objetivista, não existe passagem alguma dedicada à poesia.

Seu estilo é claro e direto, seu texto literário muito mais conceitual, sua escrita profundamente filosófica, e tudo isso, apesar de ser uma opção da autora, é o cerne de diversas críticas ao seu fazer artístico. Rand é talvez a maior mestra na arte do discurso na literatura, o recurso de natureza mais explícita dentro de tantos outros dentro desta arte. Sua obra-prima neste gênero, O Discurso de Galt é talvez o maior exemplo do uso dele na literatura ocidental.

Sempre enxerguei no texto de Rand nuances irônicas, mais pretensão à sagacidade que exploração poética. As emoções por eles tecidas me provocavam uma mistura complexa de esclarecimento conceitual- o famoso “eureka”-, risos constantes e, por fim, diversos tapas na cara.

Em resumo, sempre aproximei Rand mais de Machado que de Pessoa. Porém, como já diria Dostoievski pela boca de seu magistrado Porfyry Petrovich:

‘cem suspeitas não fazem uma prova’

E como é bom estar errado.

Cântico precisa da linguagem poética. Diferente de um ‘Orwell’, de um ‘Huxley’, Rand precisa construir e, mais importante, desconstruir uma distopia em apenas 90 páginas. Rand precisa fazê-lo enquanto descreve uma jornada não só pessoal, como linguística, pertinente ao uso dos conceitos. Tudo isso realizando um arco analógico com um mito grego.

Eu sei, é bastante coisa para entender. Lendo o texto, no entanto, você recebe tudo isso em uma hora.

Como?

Poesia.

E a poesia faz isso, principalmente por sua precisão no uso das palavras. Diferentemente dos outros livros de Rand, aqui o espaço é tão diminuto, que o crivo que geralmente é aplicado a cenas, enredo e capítulos precisa ser aplicado por caracteres. Cada escolha de sentença, de frase, de palavra, de letra, é necessária.

Por isso, Cântico talvez seja o maior desafio à tradução de toda a obra de Rand. Não só pela fama universal da dificuldade de traduzir-se a poesia, mas também pela necessidade de se atentar a um romance, com personagem-narrador que é todo escrito em terceira pessoa até seus últimos dois capítulos. Sim; existe uma virada completa na forma no método de expressão do narrador em meio ao livro, e todo o seu enredo é necessário para explicá-la com clareza.

Um enredo distópico, feito em alusão à um mito grego, com sua constituição produzindo uma virada linguística; se um feito deste calibre não valeria um Nobel, é difícil justificar o que valeria.

A dificuldade só se agrava, honestamente, pelas insuficientes tentativas já realizadas no Brasil. O próprio título talvez cometa o maior crime de tradução em toda a obra de Rand, lembrando que esta já sofreu grande golpe na invenção da palavra Revolta junto da palavra Atlas.

A palavra ‘Anthem’, o título original, tem diversos significados, e sim, possui conotação religiosa, como nota Leonard Peikoff em sua introdução à obra. Porém, Ayn Rand tinha acesso a uma palavra muito mais precisa com tal sentido, a palavra ‘Hymn’. Parece existir uma deliberada escolha num tipo discursivo ambíguo que pode ser utilizado tanto como uma declaração de ode a uma figura sagrada, como uma filiação a um local, espaço ou nação.

Cântico, como expressão, conota sussurros, conota melodia harmoniosa, conota algo dito em comunhão, em conexão pública. E a verdade é que assim começa o romance, afinal:

‘É um pecado escrever isso’

O seu término, no entanto, é completamente diferente. Se o romance começa em sussurros, ele termina em um brado, uma poética declaração de independência, não política, mas espiritual. Anthem tem uma forma similar a uma sinfonia de Tchaikovsky, um início silencioso e profundo, e um final vigoroso e triunfante. Em seus capítulos finais temos a expressão mais poética da vitória do indivíduo, da vitória do ego.

Como Prometeu, precisamos de uma palavra para expressar tudo o que dizemos de maneira completa. Não é suficiente atestarmos que as opções que nos foram dadas são insuficientes, e por graça divina, ou melhor linguística, possuímos, no português, o recurso perfeito.

A palavra correta é ‘Hino’, pois é isto que é este livro.

Um feito heroico e representativo de toda a revolta de um povo, mas não de qualquer povo, o único povo eterno que existiu e que sempre, como atesta o livro, vencerá.

Um povo chamado eu.

Espero um dia escutar esse hino, escutá-lo com as palavras corretas, escolhidas com a dedicação profunda, crucial para trazer uma obra complexa à vida da língua portuguesa.

Espero um dia vê-la sendo lecionada em escolas, ouvir suas palavras pelas ruas, como se fossem tão banais como outras carregadas por hinos tão piores dedicados a vilezas. Que sendo tão cotidianas essas palavras, tornem-se parte não só da maneira de cantar, falar e jogar palavras fora, mas se tornem também parte da maneira de pensar.

E, talvez, tendo as palavras, tendo os símbolos, consigamos expressar aqueles poucos, dignos, momentos de lucidez, compartilhados a todos. Lucidez análoga à luz que um titã antigo foi punido por entregar a nós humanos.

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