Livrar-se do vínculo feudal e místico que nos mantém estagnados por 90 anos é e será a principal de todas as batalhas.
Em uma palestra recente, o filósofo Onkar Ghate, do Ayn Rand Institute, explicou brevemente a evolução das ideias de liberdade nos últimos 5.000 anos.
Resgato aqui alguns dos aspectos mais relevantes da mesma com explicações, acréscimos e interpretações próprias.
Os ancestrais do homem, os primeiros hominídeos começaram a descer das árvores há 7 milhões de anos. O aumento do cérebro começou há 3 milhões de anos, mas as mudanças mais notáveis datam de cerca de 150.000 anos. Os Sapiens e os Neandertais cruzaram e acasalaram por volta de 100.000, mas os primeiros se consolidaram e superaram os segundos porque conseguiram gerar genes que estimularam a criatividade e que, por sua vez, ajudaram-os a sobreviver mais anos e, assim, acumular mais conhecimento que transmitiram para seus descendentes, permitindo-lhes uma melhor adaptação, resistir a lesões, doenças e envelhecimento precoce.
Os novos genes melhoraram o autocontrole, a autoconsciência, a capacidade de resolver conflitos e estimular a cooperação entre os membros do grupo.
Assim que os Sapiens conseguiram formar seus primeiros conceitos, aumentaram sua capacidade de pensamento e comunicação, bem como sua capacidade de interpretar e interagir com o seu entorno. Tendo cortado seus vínculos com os instintos e entregue sua sobrevivência ao método conceitual, compreender a operação e funcionamento do mundo que o rodeava tornou-se de fundamental importância.
É a partir da observação de seu ambiente que o Sapiens começa lentamente a separar o universo que o cerca em dois mundos diferentes e dissociados; o mundo em que pisa, regido pelas leis da natureza, que busca compreender para depois dominar. E o universo distante e inalcançável, dificilmente observável, cheio de fenômenos impossíveis de explicar: não só a Lua, os planetas, o Sol, as estrelas, mas também os fenômenos mais próximos como dia e noite, luz e escuridão, ventos, tempestades, marés, granizo, nevasca, secas, inundações, o próprio fogo, relâmpagos e raios. Esses fenômenos tornam-se incompreensíveis para a mente humana. Enquanto nossos ancestrais tentam entender e interagir no mundo próximo e tangível, a tarefa de enfrentar o mundo “distante” torna-se árdua, quase impossível…
Para esse segundo mundo incompreensível, o Sapiens inventa “a vida após a morte”, governada por deuses que exercem sua autoridade sobre o mundo tangível. O vazio e o incompreensível não são toleráveis e devem sempre ser preenchidos por uma “explicação” abrangente e compreensível.
Nesse contexto, os deuses costumam se expressar de maneiras misteriosas e caprichosas. Quem se oferece para interpretá-los? Quem adivinhará seus desejos? Quem será capaz de prever seus planos para o mundo e para cada um dos mortais que o habitam? Quem vai captar e decifrar suas mensagens?
Para aqueles incapazes de assumir tal responsabilidade, resta apenas a fé (ou seja, a confiança sem provas) e a obediência aos mandamentos que os deuses nos enviam, mandamentos interpretados por quem revela os seus “desejos”.
A história mostra que, tão logo esses mandatos ou mandamentos foram estabelecidos, tiveram que ser obedecidos mesmo quando não faziam sentido. A palavra dos profetas e mensageiros teve que ser respeitada e obedecida sob pena de punição não apenas na vida após a morte, mas também nesta vida, no mundo físico em que vivemos.
Diante do pânico e ansiedade causados por viver em um mundo governado pela razão e não por instintos automatizados, e sujeitando a razão a equívocos e erros lógicos, Platão propõe um mundo de trevas mal iluminado por reflexos que emanam do além.
Acessar o conhecimento sempre caprichoso que emana do mesmo exige aptidões especiais disponíveis apenas aos filósofos que, vindos da oligarquia e posições privilegiadas, serão aqueles que dedicarão a vida a interpretar e decifrar os mandamentos.
Por outro lado, Aristóteles recomendará concentrar-nos na razão humana e na observação como ferramentas úteis para “induzir” e “deduzir” e, assim, construir conhecimento.
Aristóteles experimenta, investiga e é pioneiro em todas as áreas da pesquisa científica. Ele compreende a enorme possibilidade de errar e também entende que o homem não é onisciente, mas decide embarcar na aventura do conhecimento. O homem deve descobrir, por meio da observação e interpretação do que é observado, aqueles comportamentos que levam à felicidade e ao florescimento e descartar aqueles que o prejudicam.
O cristianismo consagra a visão platônica da existência, transformando-a em monoteísta; o florescimento de Grécia e Roma então caem no esquecimento. O esquecimento da razão como fonte de conhecimento leva o mundo à Idade das Trevas e a 1.000 anos de obscurantismo.
A preservação dos ensinamentos de Aristóteles pelo Islã permite a Tomás de Aquino entrar em contato com Aristóteles e este fato dá origem ao “Renascimento”.
Depois de Aquino, a razão é mais uma vez capaz de descobrir os segredos da natureza e inventar “coisas novas” e “criar riquezas”.
A existência existe e sua existência não depende da consciência do observador. É regida pelas leis naturais de causa e efeito e pela Lei de Identidade. Dessa forma, a razão está apta a identificar os caminhos que levam a uma vida de sucesso e aumentam as chances de ser feliz.
Os governantes não existem para cuidar de nós ou para nos comandar, mas são nossos servidores, contratados para proteger nossos direitos.
Esta enorme revolução consiste simplesmente em compreender que o conhecimento deve ser buscado não apenas tentando identificar os mandamentos divinos, mas também decifrando o conhecimento que a natureza nos oferece.
Ao se rebelar contra a autoridade da Igreja, os autores do Renascimento também se rebelam contra Tomás de Aquino e, embora resgatem sua defesa da razão humana, questionam o respeito pela autoridade da Igreja que emana de sua “Suma Teológica”.
É provável que Aquino tenha agido dessa forma tentando escapar da Inquisição; procura conciliar as “verdades da fé” das Sagradas Escrituras com os ensinamentos de Aristóteles.
Em reação ao obscurantismo da Inquisição e de Roma, os escritores do Renascimento recorrem à razão, mas, ao fazê-lo, distanciam-se de Aquino (por seu respeito pela autoridade da Igreja) e levam Aristóteles junto. Eles direcionam a busca para a “primazia da consciência” simbolizada em Descartes (“Penso, logo existo”).
A tentativa do Renascimento é, portanto, meio bem-sucedida: decidem estudar e se concentrar no estudo deste mundo, alcançando sucessos óbvios e nunca vistos antes, mas não conseguem estabelecer claramente a interação entre o mundo existente e a mente humana. Locke tenta refutar Descartes defendendo os sentidos, mas Hume primeiro e Kant depois anulam essa tentativa, negando a Lei da Identidade, as relações de causa e efeito e a possibilidade de descobrir qualquer lei.
O fato de um gênio como Kant negar a possibilidade de conhecer a “realidade tal como ela é” faz com que os intelectuais da época abandonem a razão humana, abrindo novamente o caminho para a moralidade, a política e a vida privada voltarem a se orientar não mais por mandamentos, mas por “imperativos categóricos” que são acessados por meio dos sentimentos e da fé.
O impulso do Renascimento e do padrão de vida do mundo “moderno” se deve ao florescimento desses pensadores “iluministas” e “românticos”. Devemos a eles a Revolução Industrial, a Modernidade e o surgimento das artes e das ciências: de Gutenberg (1468) a Da Vinci (1519) e Michelangelo (1564), Bacon (1626), Galileo (1642), Rembrandt (1669), Vermeer (1675), Spinoza (1677), Locke (1704), Newton (1727), Vivaldi (1741), Bach (1750), Voltaire (1778), Adam Smith (1790), Franklin (1790) e muitos outros que datam do final do século XIX.
O questionamento da modernidade e da razão humana como instrumento de progresso e orientação moral implica um retorno ao mundo do coletivo, em que o que é certo se torna o que uma maioria “ungida” ou “eleita” considera o “bem comum”. O sacrifício pelo próximo (altruísmo), a ideia de que “a necessidade cria direitos” torna-se o novo dogma moral, já não baseado na Sagrada Escritura, mas em uma moralidade secular que defende a justiça social e a redistribuição de renda em prol dos “mais fracos”.
Desafiar a fé cristã ou estatal sempre foi perigoso para os valentes que tentaram: Copérnico e Galileu foram perseguidos pela Inquisição. Voltaire fugiu de Paris para evitar ser preso, e Locke fugiu de Londres para evitar a censura católica da realeza. O próprio Spinoza foi perseguido por seu ateísmo dentro da comunidade judaica.
Em nosso jovem país, um pequeno grupo de patriotas ousou desafiar o absolutismo monárquico espanhol em seus aspectos econômicos e políticos (Belgrano, Saavedra, Moreno, Rivadavia, Alberdi, Sarmiento, Echeverria, Gutiérrez) e questionar as normas morais não só da Espanha absolutista e monárquico, mas também da Inquisição Rosista. Defenderam a liberdade de comércio, propriedade privada e direitos individuais. Mas apesar de tais tentativas louváveis, o peso do coletivo nacionalista, religioso e coletivista continuou e continua pesando sobre o sentido da vida e do “ser nacional”. Livrar-se do vínculo feudal e místico que nos manteve estagnados por 90 anos é e será a mãe de todas as batalhas que nós, argentinos, teremos que enfrentar se quisermos que o país volte a caminhar no caminho da modernidade e do progresso.
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Publicado originalmente em Infobae.
Revisado por Matheus Pacini
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