A ‘escolha de Sofia’ e as decisões médicas

Uma “escolha de Sofia” não é exatamente o que os médicos estão sendo obrigados a fazer durante essa pandemia. Não há ninguém apontando-lhes uma arma na cabeça, dizendo que, se não escolherem entre um ou outro paciente, ambos morrerão. A escolha entre quem vai viver ou morrer faz parte da profissão que escolheram. E no Brasil, onde o sistema de saúde socializado sempre flertou com o colapso, isso não é nenhuma novidade.

Tampouco a profissão de médico envolve a emoção de uma mãe obrigada a escolher entre duas crianças, filho e filha. É para evitar decisões impensadas que, quando há envolvimento afetivo importante, os médicos são aconselhados a não agirem no caso. Médicos tomam decisões técnicas após mais de uma década de formação, seguindo uma determinada ética que lhes guia no exercício da profissão.

Na escolha de Sofia, não há liberdade presente na solução do dilema. A decisão é tomada mediante o uso da coerção, sendo que as alternativas apresentadas não incluem todas as opções dadas pela realidade, como por exemplo, manter as duas crianças e a própria mãe em paz.

Onde não há liberdade, o uso da razão é impotente e a ética inexiste.

Esse livro apresenta esse dilema: a mãe decide recorrer a uma ética utilitarista para chegar a uma decisão reconfortante. Racionaliza e forma uma justificativa que lhe parece certa. Escolhe a vida do filho em detrimento à da filha porque entende que, sendo homem e um pouco mais velho que sua irmãzinha, teria mais chances de sobreviver ao inferno de Auschwitz.

Entendo que muitos médicos se vejam como Sofias, tendo que decidir quem vive e quem morre dada a impotência frente ao colapso de um sistema caro e ineficiente como o SUS.

A pergunta que atormenta é: qual o padrão ético que os médicos estão utilizando para tomar suas decisões?

São eles mesmos que decidem? Existe um protocolo determinado baseado nos princípios que regem a profissão? Seguem ordens emanadas das autoridades que administram a instituição onde os pacientes estão internados? Ou quem determina quem vive e quem morre são as autoridades sanitárias vinculadas ao governo?

Percebam que Sofia resolveu seu dilema salvando aquele que teria, no momento da decisão, mais chance de sobreviver. Se Sofia fosse médica, e em outras circunstâncias, por exemplo, estar perante dois pacientes entre a vida e a morte precisando decidir quem viveria e quem não, ela não deixaria morrer aquele que tem mais chances de sobreviver, deixando o hospital são e salvo, em detrimento daquele que, pelas próprias características de seu estado de saúde, morreria logo.

Fico me perguntando se, numa situação obviamente hipotética, na qual eu fosse o médico e chegassem à UTI dois pacientes em estado crítico que exigisse de mim decidir a quem dar a única dose do antídoto que poderia salvá-los – sendo que um dos pacientes era um jovem irresponsável com a vida toda pela frente e o outro, seu avô, coincidentemente o responsável pela invenção e produção do antídoto cuja fabricação parou porque ele adoeceu – que decisão eu tomaria.

Salvando o jovem, não haveria mais produção de antídotos para salvar outras vidas. Salvando o avô, como eu explicaria para ele que matei o seu neto para salvar a vida dele e de outros que viessem a precisar do antídoto?

Isso suscita uma reflexão sobre qual o critério de valoração que se dará às vidas que são colocadas em nossas mãos. Deve ser subjetivo? Cada um decide como bem entende quem vive e quem morre de acordo com seu interesse circunstancial. Ou o critério deve ser objetivo? Cada um decide de acordo com um padrão de moralidade específico, como, por exemplo, a capacidade real dos que estão entre a vida e a morte de gerarem o bem, seja para si, seja para a sociedade?

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Revisado por Matheus Pacini.

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