Traduzido por Stephanie Gonçalves
Nós que Vivemos não se trata da Rússia Soviética em 1925 – é um romance sobre qualquer ditadura, em qualquer lugar, e tomara que previna uma nos Estados Unidos.
Quando você leu Nós que Vivemos pela primeira vez?
Na minha juventude. Eu estava nessa onda de distopias no ensino médio, lendo Admirável mundo novo [de Aldous Huxley], A revolução dos bichos [de George Orwell], e 1984 [Orwell], e minha mãe sugeriu que eu lesse Cântico, de Ayn Rand. Então, eu li. No ensino médio, estava lendo muita literatura anticomunista e me tornei anticomunista, mas, estranhamente, só li Nós que vivemos mais tarde. Também li A nascente [de Ayn Rand] no ensino médio e, na faculdade, A revolta de Atlas [Rand]. Um pouco mais tarde, li Nós que vivemos. Vi que era melhor, mais eficaz, doque as outras literaturas anticomunistas, embora tenha ficado chocado com o final, que não parecia um final de romance da Ayn Rand.
Quantas vezes você leu Nós que vivemos?
Seis ou sete.
Como você o compara aos outros romances?
Uma das coisas que eu amava em A nascente e A revolta de Atlas era que [os personagens heróicos] acordavam de manhã pensando em seu trabalho. Eu realmente amava isso e admirava sua produtividade. Isso, é claro, não estava presente em Nós que vivemos.
Alguma opinião sobre o novo prefácio de Leonard Peikoff para a primeira edição em brochura de Nós que vivemos?
O Dr. Peikoff destaca um ponto muito importante; isto é, que Nós que Vivemos não se trata da Rússia Soviética em 1925 – é um romance sobre qualquer ditadura, em qualquer lugar, e tomara que previna uma nos Estados Unidos. E ele expõe de forma fundamental que há duas coisas que tornam o totalitarismo possível: a rejeição da razão em favor de outra coisa, normalmente a fé, e a rejeição do egoísmo em favor do autossacrifício. Em seguida, ele o situa no contexto atual, tornando-o universal – e ele faz isso de forma muito concisa.
Quais são as principais diferenças entre as edições de 1936 e 1959 de Nós que vivemos?
Em termos gerais, eu diria que a escolha de palavras, frases embaraçosas, gramática e uso de vírgulas, por exemplo, ela erra as e like. Ela usou a palavra pulpit (púlpito) quando queria dizer lectern (púlpito). O que me surpreende é que os editores da Macmillan não perceberam isso. Havia também algumas passagens no original que eram ambíguas ou pareciam contradizer suas próprias visões filosóficas. Às vezes, há o que se chama de passagens nietzschianas [do filósofo alemão Friedrich], por exemplo, em torno da rejeição ao comunismo por parte da [heroína] Kira [Argounova], em que ela parece estar dizendo para sacrificar muitos em prol de poucos, o que não faz parte da filosofia de Ayn Rand.
Vale a pena ler a versão de 1936?
Para alguém como você, eu diria que sim. Acho que vale a pena ler e eu adoraria preparar algo como o que foi feito com Cântico, em que você vê as correções reais de Ayn Rand; há uma espécie de condensação que ela pratica e você poderia aprender muito com elas. Não recomendaria para um leitor de primeira viagem.
Qual é o tema de Nós que vivemos?
O indivíduo contra o Estado – especialmente o mal do estatismo. Acho que é assim que Ayn Rand fala sobre isso em The Art of Fiction. Nunca seria o mal da Rússia soviética. É por isso que acho que Nós que vivemos é muito mais eficaz do que algo como O Arquipélago Gulag de Alexander Solzhenitsyn, em que você sai pensando que os soviéticos são maus, bastardos, sádicos, mas não fica claro qual é a alternativa. Em Nós que vivemos, fica evidente o porquê de qualquer ditadura ser perversa. Não se trata apenas de uma crítica à Rússia soviética. Solzhenitsyn, na verdade, diz que a Rússia Soviética é perversa, Ayn Rand diz o porquê ela o é.
O que surpreende as pessoas que leem Nós que vivemos?
O final trágico, a natureza conflituosa do [aristocrata] Leo [Kovalensky], o herói com falhas, e a natureza conflituosa do [comunista] Andrei [Taganov], um vilão que, de certa forma, é heroico.
Será que Ayn Rand pensou em um final diferente para Nós que vivemos?
Não sei. Quando lhe perguntaram, em anos posteriores, ela foi muito inflexível e disse que, dado o tema, Nós que vivemos tinha que terminar daquela forma, não havia outra possibilidade. Não sei se ela tentou sair dessa situação. Eu ficaria surpreso se assim fosse. É interessante que [o roteiro de Ayn Rand] Red Pawn, que é comparável a Nós que vivemos, tem um tema semelhante, mas com um final mais positivo. Foi-me sugerido que isso se deve ao fato de ela estar escrevendo para Hollywood. Acho que o Dr. Peikoff menciona que Ayn Rand começou com o clímax do romance, a cena da prisão, quando começou a escrever Nós que vivemos. Ela queria uma reviravolta no enredo padrão e banal como a [ópera de Giacomo Puccini] Tosca, em que uma mulher se vende a um vilão para salvar o homem que ama. Ayn Rand perguntou: e se o vilão fosse alguém [com qualidades heroicas] como Andrei? Esse é um enredo realmente interessante.
Kira tinha evidências de que Andrei entenderia seu dilema e que teria sido melhor deixar Andrei saber do segredo?
Acho que sua principal preocupação era salvar Leo, embora, de certa forma, Andrei tenha reagido favoravelmente quando soube do que aconteceu. É Kira e Leo contra 150 milhões de pessoas, e a principal preocupação de Kira era o que esse [sistema comunista] faria com Leo. Essa era a única maneira de salvar a pessoa que ela ama, e Andrei fica feliz com isso, pois reafirma seus valores. Na verdade, Andrei se oferece para levar Kira para fora do país e Kira nem se sente tentada – ela está sempre tentando salvar a alma de Leo, porque ele é seu bem mais valioso.
Por que as pessoas se interessam por Andrei?
Porque Ayn Rand faz um excelente trabalho ao fazer Andrei parecer heroico, e ele descreve o comunismo em termos que sabemos ser impossíveis na realidade, então, ela consegue mostrar que ele tem integridade, é heroico e apaixonado, tendo uma correspondência com todas as qualidades positivas de Kira. De certa forma, Ayn Rand achava que um personagem como Andrei era impossível na realidade.
O personagem secundário Stepan Timoshenko é um vilão?
Acho que ele é uma mistura. Ele é desagradável de certa forma, se vangloria de ter filhos bastardos em todo o Báltico, mas ele tem esse outro elemento, e suspeito que Ayn Rand admirava algumas coisas nele. Há degraus no inferno e pessoas como Victor e a camarada Sonia são muito mais desprezíveis, pois falam sobre o comunismo e depois vendem até mesmo seus próprios ideais. Timoshenko não fez isso; ele foi um soldado leal na medida do possível. Além disso, ele não conseguiu fazer a distinção entre a derrubada do regime czarista e o que viria em seu lugar. Andrei queria elevar todos [estabelecendo o comunismo]. O interessante é que uma das histórias sobre [o herói de A Revolta de Atlas] John Galt como Prometheus é que não se pode elevar todos arrastando todos para baixo. E Timoshenko tem o mesmo destino de Andrei. Ele percebe que lutar pelo comunismo foi um erro. Timoshenko é o único que poupa Leo e Kira, mas também é o único que os impede de ir para o exterior.
Andrei é um herói?
Até certo ponto, um comunista pode ser um herói. Em certo sentido, todos os personagens principais podem ter sido heróis em outro tipo de sociedade. O herói sem contradições é Kira – sua alma não foi danificada pela Rússia Soviética. É por isso que ela consegue sorrir no final.
Leo é um herói trágico?
Acho que sim. Cada um deles é uma figura trágica porque não consegue atingir seu potencial. Mas o ponto principal é que isso não reflete o senso de vida de Ayn Rand; a tragédia em todos os cenários em Nós que vivemos é a natureza de uma ditadura – eles exigem liberdade. Na primeira vez que vemos Leo, ele está procurando uma prostituta, e isso é uma forma de suicídio – Leo já está espiritualmente arrasado. Mas não há nada de inerentemente perverso na realidade e essa não é uma história de destruição de Leo; ele já está lá. De fato, uma ditadura cria um universo perverso.
Leo é digno de Kira?
Não podemos ignorar o fato de que Kira corresponde a ele – não podemos sair dos fatos que temos, que é o romance. Como o Dr. Peikoff escreve no posfácio, se Leo tivesse nascido na América, ele teria se tornado Francisco D´Anconia de A revolta de Atlas; ou seja, a medida de seu potencial heróico. Leo é realmente derrotado [pelos comunistas]. Não é um grande passo admirá-lo.
Qual é o título original?
Airtight (‘Hermético’/’Fechado’)). A ideia é que, em qualquer ditadura, os seres humanos que desejam viver, não apenas sobreviver, são sufocados quando se torna impossível para eles viverem. Há uma sequência em que Kira usa esse termo ao falar com Andrei.
Por que ela mudou o título para Nós que vivemos?
Eu não sei. Mas gosto do título We the Living (‘Nós que Vivemos’), “living” que se refere aos indivíduos, e we (nós) no título é irônico porque os comunistas querem colocar o we (nós) antes do I (eu). É como se tivesse sido escrito em nome de Ayn Rand e Kira.
Nós que Vivemos é respeitado na academia?
Eles nem sabem sobre isso. Eles ouviram falar de A Revolta de Atlas e A Nascente, mas nem ouviram falar de Nós que Vivemos. Eles deveriam conhecer este romance. Até historiadores da Guerra Fria não o conhecem.
Como você abordou a edição da compilação Essays on We the Living?
Cheguei à conclusão de que a cultura e as editoras acadêmicas estavam prontas para uma literatura secundária sobre Ayn Rand que não fosse lixo. Cheguei a um ponto em que poderia apresentar uma proposta [de livro] a algumas editoras acadêmicas, e outra coisa é que chegamos a um ponto no movimento em que havia um número suficiente de pessoas boas que poderiam escrever sobre Nós que vivemos. Eu sabia que havia muita coisa boa nos Arquivos [de Ayn Rand] e que esse romance, em particular, tinha uma história rica que valeria a pena incluir em uma coleção desse tipo. A primeira coisa que fiz foi perguntar o que eu gostaria de ter na coleção. Definitivamente, eu queria um ensaio sobre os rascunhos [de Ayn Rand], e Shoshana Milgram apresentou um ensaio brilhante. Perguntei a algumas pessoas o que elas gostariam que fosse abordado e, com outras, fiz sugestões.
Você já viu o filme?
Sim. Eu o vi duas vezes nos cinemas, uma com intervalo em Washington DC, e outra sem intervalo em Londres, e assisti ao vídeo três ou quatro vezes. Acho o filme maravilhoso. Acho que Alida Valli está excelente como Kira. Gosto muito de Rossano Brazzi no papel de Leo, embora eu não ache que ele tenha a aparência que Ayn Rand imaginou para o personagem. Fosco Giachetti tem o rosto de granito que Andrei teria se tivesse vivido até os trinta anos. E o ator que interpreta Timoshenko é muito bom. Estou realmente ansioso pelo DVD. Faz cinco anos que não vejo o filme. Esse é um filme com uma história rica. Ele realmente merece um livro.
Tanto Nós que Vivemos quanto Song of Russia, sobre os quais você escreveu em Ayn Rand and Song of Russia, foram feitos em 1942, um com valores máximos e outro sem. Você já viu Song of Russia?
Com certeza. Vi isso mais vezes do que qualquer ser humano merece ser exposto a isso. A adaptação cinematográfica de Nós que vivemos era para ser um trabalho de propaganda fascista [sob o comando do Estado italiano], mas não pôde ser feita porque o romance era muito bom. Por outro lado, tanto os conservadores quanto os liberais estavam afirmando que Song of Russia não era propaganda [comunista], e é. Não recomendo ver Song of Russia pelo valor temático, porque é um lixo, mas se alguém estiver interessado na história do comunismo em Hollywood, em filmes sobre a Rússia soviética ou no testemunho de Ayn Rands [House Un-American Activities Committee (HUAC)] e na avaliação de seu testemunho, esse filme precisa ser visto.
Em Ayn Rand and Song of Russia, você afirma que Hollywood nunca retratou o comunismo como era na Rússia Soviética. Você acha que é possível fazer um remake de Nós que vivemos?
É mais provável que haja um retrato negativo agora do que naquela época, embora não haja filmes anticomunistas sérios como tais, apenas filmes com vilões comunistas e esses não estão saindo de Hollywood; geralmente são feitos em países ex-comunistas, como Burnt By the Sun e East/West. Se eu ouvisse amanhã que algum diretor de grande orçamento estaria planejando um remake, eu não esperaria por uma adaptação cinematográfica brilhante.
Alguma omissão importante na versão cinematográfica de Nós que vivemos?
O que me surpreende é o quanto ela se aproxima do romance, embora o final, como foi editado, seja diferente. Além disso, a subtrama de Irina e Sasha foi cortada.
Alguns objetivistas se recusam a ler Nós que vivemos. O que eles estão perdendo?
Tudo sobre o que conversamos. Talvez eu tenha relutado inicialmente por algumas das mesmas razões que as pessoas se recusam a ler. Mas eu sinto algo do Nós que vivemos que não sinto dos outros. Preciso de um pouco de Kira em minha vida. Portanto, estão faltando os personagens de Ayn Rand, seu conflito, sua apresentação de um determinado ponto de vista e um ângulo de seu distinto senso de vida: o senso de vida benevolente e tímido diante de uma tragédia horrível. É a confirmação de que esse senso de vida benevolente pode sobreviver a qualquer coisa, e isso já é alguma coisa. Pode ser um combustível emocional, apesar do final trágico. Preciso ler Nós que vivemos pelo mesmo motivo que leio Os Miseráveis [de Victor Hugo]: é um mundo único e você não consegue isso lendo A nascente e A revolta de Atlas várias vezes. Você também precisa de Nós que vivemos.
Por que o Nós que vivemos é importante?
Eu voltaria ao motivo pelo qual gosto do novo prefácio de Leonard Peikoff; os Estados Unidos ainda não entenderam que a liberdade exige dedicação à razão e ao interesse próprio, e os americanos não entendem que se você renunciar o interesse próprio em nome do sacrifício próprio como virtude, como faz o presidente Obama, inevitavelmente haverá totalitarismo. Nós que vivemos nos lembra da importância da liberdade e do fato de que ela é incompatível com a irracionalidade e o auto-sacrifício; nesse sentido, Nós que vivemos é necessário. Isso é importante.
Como o leitor deve considerar a obra?
Como o primeiro romance de Ayn Rand; uma promessa do que está por vir. É um grande romance romântico – certamente não há muitos desses – com um tema universalmente importante que está ligado a tudo no enredo e na caracterização do romance. E é o mais próximo de uma autobiografia que ela jamais escreveria – o mais próximo de ver Ayn Rand em sua juventude.