Os vilões em A revolta de Atlas

Essa cena ocorre na casa de Hank Rearden, no contexto de uma festa organizada por sua esposa Lillian. Os comentários são dos anti-heróis.

CITAÇÃO ABAIXO

Ele teve vontade de arrancar a pulseira do braço da mulher. Em vez disso, obedecendo à voz de Lillian, que alegremente lhe apresentava uma convidada, fez uma ...

Essa cena ocorre na casa de Hank Rearden, no contexto de uma festa organizada por sua esposa Lillian. Os comentários são dos anti-heróis.

CITAÇÃO ABAIXO

Ele teve vontade de arrancar a pulseira do braço da mulher. Em vez disso, obedecendo à voz de Lillian, que alegremente lhe apresentava uma convidada, fez uma mesura para a senhora que estava ao lado dela, mantendo o rosto sem expressão.

– O homem? O que é o homem? Apenas um amontoado de substâncias químicas com mania de grandeza – disse o Dr. Pritchett a um grupo de convidados, no outro lado do salão.

O doutor pegou um canapé em um prato de cristal com dois dedos esticados e o colocou inteiro na boca.

– As pretensões metafísicas do homem – disse ele – são risíveis. Um miserável pedaço de protoplasma, cheio de ideiazinhas feias e emoçõezinhas mesquinhas – e se acha importante! Na verdade, é essa a causa de todas as desgraças do mundo.

– Mas quais os conceitos que não são nem feios nem mesquinhos, professor? – perguntou, muito séria, uma matrona cujo marido era dono de uma fábrica de automóveis.

– Nenhum – respondeu o Dr. Pritchett. – Nenhum conceito que esteja dentro da capacidade humana.

Um jovem perguntou, inseguro:

– Mas, se não temos nenhum conceito bom, como podemos saber que os que temos são maus? Quero dizer, com base em que padrões?

– Não existem padrões.

Essa resposta fez a plateia se calar.

– Os filósofos do passado eram superficiais – prosseguiu o Dr. Pritchett. – Coube ao nosso século redefinir o objetivo da filosofia, que não é ajudar o homem a encontrar o sentido da vida, e sim provar a ele que a vida não tem sentido.

Uma jovem bonita, filha do dono de uma mina de carvão, perguntou, indignada:

– E quem pode provar uma coisa dessas?

– Eu estou tentando – disse o Dr. Pritchett, que, havia três anos, era o diretor do departamento de filosofia da Universidade Patrick Henry.

Lillian Rearden se aproximou; suas joias brilhavam. A expressão que ela mantinha no rosto era um leve esboço de sorriso, fixo e delicadamente sugestivo, como o ondulado de seus cabelos.

– É essa insistência em achar sentidos que torna o homem tão difícil – continuou o Dr. Pritchett.

– Uma vez que ele compreenda que não tem a menor importância no cômputo geral do universo, que é absolutamente impossível atribuir qualquer significado a suas atividades, que não faz diferença se ele vive ou morre, ele se tornará bem mais… maleável.

O doutor deu de ombros e pegou mais um canapé. Um empresário, inquieto, disse então:

– O que lhe perguntei, professor, foi o que o senhor achava da Lei da Igualdade de Oportunidades.

– Ah, sim – disse o Dr. Pritchett. – Mas acho que deixei claro que sou a favor dela, porque sou a favor de uma economia livre. Uma economia livre não pode existir sem competição. Portanto, os homens devem ser obrigados a competir. Logo, temos de controlar os homens para obrigá-los a serem livres.

– Mas… não há uma espécie de contradição nisso?

– Não no sentido filosófico mais elevado. É necessário ir além das definições estáticas do pensamento antiquado. Nada é estático no universo. Tudo é fluido.

– Mas a razão diz claramente que…

– A razão, meu caro, é a mais ingênua de todas as superstições. Isso, pelo menos, é ponto pacífico em nossa época.

– Mas eu não consigo entender como é que se pode…

– É a ilusão muito difundida de que as coisas podem ser entendidas. É preciso se conscientizar de que o universo é uma contradição sólida.

– Uma contradição de quê? – perguntou a matrona.

– De si próprio.

– Mas… como?

– Minha cara senhora, o dever do pensador não é explicar, e sim demonstrar que nada pode ser explicado.

– Perfeito, é claro… mas é que…

– O objetivo da filosofia não é buscar o conhecimento, mas provar que o conhecimento é inacessível ao homem.

– Mas, quando isso for provado – perguntou a jovem –, o que vai restar?

– O instinto – disse o Dr. Pritchett, reverentemente.

No outro lado do salão, havia um grupo de pessoas ouvindo Balph Eubank. Ele estava sentado na beira de uma poltrona, muito teso, a fim de atenuar a aparência geral de seu rosto e de seu corpo, que tinha uma tendência a se espalhar quando relaxava.

– A literatura do passado – dizia Balph Eubank – era superficial e mentirosa. Ela pintava tudo de cor-de-rosa para agradar os milionários aos quais servia. A moralidade, o livre-arbítrio, a realização, os finais felizes, o homem como ser heroico – tudo isso se tornou ridículo para nós. Pela primeira vez, nossa era deu profundidade à literatura, expondo a verdadeira essência da vida.

Uma moça bem jovem de vestido branco perguntou, tímida:

– Qual é a verdadeira essência da vida, Sr. Eubank?

– O sofrimento – disse Balph Eubank. – A derrota e o sofrimento.

– Mas… mas por quê? As pessoas são felizes… às vezes… não é?

– Isso é uma ilusão daqueles cujas emoções são superficiais.

A moça enrubesceu. Uma mulher rica, que herdara uma refinaria de petróleo, perguntou, cheia de sentimento de culpa:

– O que podemos fazer para elevar o gosto literário das pessoas, Sr. Eubank?

– Isso é um grande problema social – respondeu Eubank, que era considerado o líder da literatura da época, mas jamais escrevera um livro que vendesse mais de 3 mil exemplares. – Pessoalmente, acho que uma Lei da Igualdade de Oportunidades que se aplicasse à literatura seria a solução.

– Ah, o senhor é a favor daquela lei para a indústria? Não sei muito bem o que acho, não.

– Decerto que sou a favor. Nossa cultura está atolada num pântano de materialismo. Os homens perderam todos os valores espirituais, em sua busca da produção material e das maravilhas tecnológicas.

Estão acomodados demais. Eles hão de retomar uma vida mais nobre se os ensinarmos a suportar privações. Assim, é necessário impor limites à sua ganância material.

– Nunca tinha encarado a coisa desse ângulo – disse a mulher, como se pedisse desculpas.

– Mas como é que você vai fazer uma Lei da Igualdade de Oportunidades para a literatura, Ralph? – perguntou Mort Liddy. – Isso para mim é novidade.

– Meu nome é Balph – disse Eubank, contrariado. – E é novidade para você porque é ideia minha.

– Está bem, está bem, não estou brigando, estou? Só estou perguntando. – Mort Liddy sorriu. Ele passava a maior parte do tempo sorrindo nervosamente. Era compositor, fazia músicas antiquadas para trilhas sonoras de filmes e sinfonias modernas para plateias minguadas.

– É muito simples – disse Eubank, haveria uma lei que limitaria a venda de qualquer livro a um máximo de 10 mil exemplares. Isso abriria o mercado literário para novos talentos, ideias novas, obras não comerciais. Se as pessoas não pudessem comprar 1 milhão de exemplares de uma mesma porcaria, seriam obrigadas a ler livros melhores.

– Até certo ponto você tem razão – reconheceu Liddy. – Mas não seria um baque financeiro para os escritores?

– Tanto melhor. Só poderiam escrever aqueles cujo objetivo não é ganhar dinheiro.

– Mas, Sr. Eubank – perguntou a moça do vestido branco –, e se mais de 10 mil pessoas quiserem comprar um mesmo livro?

– Dez mil leitores bastam para qualquer livro.

– Não é isso que estou dizendo. E se elas quiserem ler?

– Isso é irrelevante.

– Mas se o livro tem uma história interessante que…

– O enredo é uma vulgaridade primitiva na literatura – disse Eubank com desprezo.

O Dr. Pritchett, que atravessava a sala em direção ao bar, parou para comentar:

– Perfeitamente. Do mesmo modo que a lógica é uma vulgaridade primitiva na filosofia.

– Do mesmo modo que a melodia é uma vulgaridade primitiva na música – acrescentou Mort Liddy.

– Que falatório é esse? – perguntou Lillian Rearden, parando junto ao grupo. Suas joias faiscavam.

– Lillian, meu anjo – disse Eubank –, eu já lhe disse que vou dedicar meu novo romance a você?

– Obrigada, querido.

– Qual o título de seu novo romance? – perguntou a mulher rica.

– O coração é um leiteiro.

– É sobre o quê?

– Frustração.

– Mas, Sr. Eubank – perguntou a moça do vestido branco, corando desesperadamente –, se tudo é frustração, para que se há de viver?

– Para o amor fraternal – disse Eubank, incisivo.

Bertram Scudder estava debruçado sobre o bar. Seu rosto comprido e fino parecia ter encolhido para dentro, com exceção da boca e dos olhos, protuberantes, como três esferas macias. Era diretor de uma revista chamada O Futuro e havia escrito um artigo sobre Hank Rearden intitulado “O polvo”.

Bertram Scudder pegou seu copo vazio e, sem uma palavra, o empurrou em direção ao barman para que o enchesse. Bebeu um trago, então percebeu que o copo de Philip Rearden, ao seu lado, estava vazio e, com o polegar, deu uma ordem silenciosa ao barman. Ignorou o copo vazio de Betty Pope, que estava em pé do outro lado de Philip.

– Escute, companheiro – disse Scudder, virando os olhos mais ou menos na direção de Philip –, gostando ou não, o fato é que a Lei da Igualdade de Oportunidades representa um grande passo à frente.

– E o que o faz pensar que não gosto dela, Sr. Scudder? – perguntou Philip com humildade.

– Bem, vai incomodar muita gente, não vai? Vai ter gente na sociedade que precisará economizar um pouco nos salgadinhos – disse, fazendo um gesto com o braço em direção ao bar.

– E por que o senhor acha que eu seria contra isso?

– E não é? – perguntou Scudder, sem curiosidade.

– Não! – exclamou Philip, veemente. – Sempre coloquei o bem público acima de quaisquer considerações pessoais. Contribuí com meu tempo e meu dinheiro para a organização Amigos do Progresso Global em sua cruzada em favor da Lei da Igualdade de Oportunidades. Acho absolutamente injusto que um homem fique com tudo e que os outros não tenham nada.

Bertram Scudder o olhou pensativo, mas sem nenhum interesse especial.

– Ora, estou agradavelmente surpreso com você – disse.

– Há pessoas que levam a sério as questões morais, Sr. Scudder – retrucou Philip, com um sutil toque de orgulho na voz.

– Sobre o que ele está falando, Philip? – perguntou Betty Pope. – A gente não conhece ninguém que tenha mais de uma empresa, não é?

– Ah, cale a boca! – exclamou Scudder, com um tom entediado.

– Não entendo por que criam tanto caso por causa dessa Lei da Igualdade de Oportunidades – disse Betty, agressiva, como se fosse perita em economia. – Não entendo por que os empresários são contra. A lei é vantajosa para eles. Se todas as outras pessoas ficarem pobres, eles não vão ter mercado para seus produtos. Mas, se pararem de ser egoístas e repartirem os bens que acumularam, vão poder trabalhar bastante e produzir mais.

– Pois eu não vejo por que levar em consideração os industriais – disse Scudder. – Quando as massas estão na miséria e existem os produtos de que elas precisam, é uma idiotice querer que as pessoas respeitem um pedaço de papel chamado título de propriedade. O direito à propriedade é uma superstição. O proprietário só possui o que possui por um favor daqueles que não o expropriam. O povo pode expropriar a propriedade a qualquer momento. E, se pode, por que não o faz?

– É o que o povo devia fazer – disse Claude Slagenhop. – Ele precisa. A necessidade é a única consideração importante. Se o povo está necessitado, ele deve se apropriar das coisas primeiro e conversar depois.

Claude Slagenhop havia se aproximado e conseguido se espremer entre Philip e Scudder, empurrando este para o lado imperceptivelmente. Slagenhop não era alto nem pesado, e sim atarracado e compacto e tinha o nariz quebrado. Era presidente da Amigos do Progresso Global.

– A fome não espera – disse Claude Slagenhop. – As ideias não passam de conversa fiada. Uma barriga vazia é um fato concreto. Como digo em todos os meus discursos, não é importante falar muito. A sociedade está sendo prejudicada pela falta de oportunidades econômicas, por isso temos o direito de aproveitar as que existem. Tudo o que é bom para a sociedade é direito.

– Ele não escavou aquela mina sozinho, não é? – exclamou Philip de repente, com uma voz estridente. – Ele precisou de centenas de trabalhadores. Foram eles que fizeram tudo. Por que ele se acha tão superior?

Os dois homens olharam para Philip – Scudder levantou uma das sobrancelhas; Slagenhop não tinha nenhuma expressão no rosto.

– Ah, meu Deus! – disse Betty Pope, lembrando-se.[1]

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Revisado por Matheus Pacini.

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[1] RAND, Ayn. A Revolta de Atlas. Trad. de Paulo Henriques Britto. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. V I, p. 142-146.

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