Questão: algumas pessoas dizem que Ayn Rand e seus romances são desprovidos de humor. Isso é verdade quanto ao romance A Nascente?
Resposta: “Como Ayn Rand enfatizou, o humor não desempenha um papel importante em seus romances, nem na vida dos heróis deles”, escreve Robert Mayhew em Humor em A Nascente[1]. Embora A Nascente não seja, de forma alguma, um romance cômico, ele é cheio de sátira e demonstra que Rand sabia onde empregar o humor para gerar os efeitos que buscava em sua obra.
Além disso, como romancista que também era filósofa, Rand escreveu com uma compreensão bem clara do que é o humor. Em sua visão, o humor funciona ao negar importância àquilo que contradiz uma apreciação básica de um indivíduo pela realidade e sua relação com ela. O riso, diz Mayhew ao resumir a abordagem de Rand, “advém (pelo menos, em parte) da consciência daquilo que não se encaixa com sua visão de realidade; é a resposta que acompanha o reconhecimento da insignificância de algo e a rejeição consequente disso.[2]
A pesquisa de Mayhew em A Nascente inclui exemplos de três categorias:
- Observações satíricas direcionadas a arquitetos, escritores e alpinistas sociais desprezíveis;
- Humor malicioso empregado pelo arquivilão do romance como uma arma para destruir e prejudicar o bem;
- Riso dos protagonistas frente aos obstáculos que enfrentam.
Sátira
A Nascente é rica em comentário satírico, tanto na voz do autor e como na de Dominique Francon, a protagonista feminina, que escreve uma coluna em um jornal. O herói do romance, Howard Roark, é um arquiteto independente que desafia a conformidade rígida da profissão aos estilos tradicionais de construção. Isso dá a Rand uma oportunidade de alfinetar a prática servil de imitar designs de eras antigas, como nesse exemplo:
O Instituto de Tecnologia de Stanton ficava em uma colina. Suas muralhas altas e ornadas com ameias formavam uma coroa sobre a cidade que se estendia abaixo. Assemelhava-se a uma fortaleza medieval, com uma catedral gótica encravada em seu interior. A fortaleza era notavelmente adequada ao seu propósito, com paredes resistentes feitas de tijolos, algumas aberturas largas o suficiente para abrigar sentinelas, baluartes atrás dos quais poderiam esconder-se arqueiros defensores, e torres nos cantos, das quais óleo fervente poderia ser derramado sobre quem tentasse atacá-la – caso tal emergência surgisse em uma academia de ensino.[3]
Em outra passagem, Rand descreve com humor um grupo de pseudointelectuais que formam o Conselho dos Escritores Americanos, cujos membros:
Incluíam uma mulher que nunca usava letras maiúsculas em seus livros e um homem que nunca usava vírgulas; um jovem que escrevera um romance de mil páginas sem uma única letra “o”, e outro que escrevia poemas que não tinham rima nem métrica; um homem de barba, que era sofisticado e provava isso usando todos os palavrões que não se pode publicar, a cada dez páginas de seu manuscrito…[4]
Noutra parte, Dominique Francon comenta sarcasticamente o design ostentoso de uma residência privada:
“Você entra em um saguão magnífico de mármore dourado e pensa que é a Prefeitura, ou o Correio Central, mas não é. No entanto, tem tudo: o mezanino com a série de colunas e a escadaria com as protuberâncias e as cártulas na forma de cintos de couro enrolados. Só que não é couro, é mármore. A sala de jantar tem um portão de bronze esplêndido, colocado por engano no teto, na forma de uma treliça entrelaçada de uvas frescas de bronze. Há patos e coelhos mortos pendurados nas paredes, dentro de buquês de cenouras, petúnias e vagens. Não acho que teriam sido muito atraentes se fossem reais, mas, uma vez que são imitações malfeitas de gesso, tudo bem […] As janelas da frente são grandes o suficiente para deixar entrar bastante luz, bem como os pés dos cupidos de mármore que estão empoleirados do lado de fora.[5]
De acordo com Mayhew, Rand foi provavelmente influenciada durante esse período por Sinclair Lewis, cujos comentários ríspidos em romances como Elmer Gantry mostraram o poder da sátira social.[6]
Malícia
Mayhew contrasta tal sátira (que é dirigida ao desprezível) com o humor malicioso de Ellsworth Toohey, o arquivilão do romance (que é dirigida ao mal) a través de uma passagem de outro romance de Rand, A Revolta de Atlas:
Francisco riu, um sorriso de deboche radiante. Ao vê-los, Dagny pensou de repente na diferença entre Francisco e seu irmão Jim. Ambos sorriam debochados. Mas Francisco parecia rir das coisas por ver algo muito maior. Jim ria como se não quisesse que nada fosse grande.[7]
Enquanto Rand e sua personagem Dominique riem das coisas porque veem algo muito maior, Toohey usa seu humor “para minar o senso de identidade de toda pessoa”, escreve Mayhew. Aqui citamos como Toohey goza de um jovem que confessa seu amor pela sobrinha de Toohey:
O amor jovem. Primavera, amanhecer, paraíso e chocolates de banca de jornal por 1,25 dólar a caixa. A prerrogativa dos deuses e dos filmes […] E aprovo. Eu sou realista. O homem sempre insistiu em se fazer de idiota. Ah, vamos, nunca devemos perder nosso senso de humor.[8]
Como um personagem que incorpora “o ódio por todos os valores”, escreve Mayhew, Toohey usa conscientemente o humor para destruir. Aqui segue parte do monólogo de Toohey descrevendo seus métodos de alcançar poder sobre os outros:
Mate através do riso. Ele é um instrumento de alegria humana. Aprenda a usá-lo como uma arma destruidora. Transforme-o em um riso de menosprezo. É simples. Diga-lhes para rirem de tudo. Diga-lhes que o senso de humor é uma virtude ilimitada. Não deixe que nada permaneça sagrado na alma de um homem, e a sua própria alma não será sagrada para ele. Mate a veneração e você terá matado o herói no homem. Não se venera com risadinhas. Ele obedecerá e não imporá nenhum limite à sua obediência: vale tudo, nada é sério demais.[9]
Riso
Mayhew também descreve o humor quieto e reflexivo experimentado pelo herói do romance, Howard Roark. Por exemplo, o romance começa com a linha: “Howard Roark riu” – mas ele não está rindo de ninguém. Como Mayhew explica, ele está rindo por ter sido expulso da escola de arquitetura e de todas as dificuldades que se seguiriam, rindo porque, para ele, esses obstáculos parecem pequenos e inconsequentes frente às perspectivas de realização e felicidade que ele sabe estarem abertas para ele.[10]
Então, embora o humor não tenha um papel essencial em A Nascente, ele tem um papel secundário importante, em grande parte na forma de sátira direcionada, nas palavras de Mayhew, “ao não original, ao feio, ao não heroico, ao maligno”.[11]
* * *
O primeiro best-seller de Ayn Rand, A Nascente, foi publicado em 7 de maio de 1943. Para comemorar o aniversário de 75 anos de sua publicação, estamos destacando temas do Essays on Ayn Rand’s “The Fountainhead,” uma coleção editada pelo filósofo Robert Mayhew da Seton Hall University. Existem muitos mal-entendidos e miscaracterizações na cultura com respeito ao romance A Nascente (e todo o resto que ela escreveu), e contínua perplexidade em alguns círculos com respeito à sua popularidade crescente, em especial, entre os jovens”, diz Mayhew. “Esses ensaios contêm respostas para muitas perguntas que as pessoas fazem – ou deveriam fazer – sobre esse grande romance.[12]
Além disso, em minha palestra na OCON 2018, trato de muitas das questões aqui descritas, mas em grande detalhe, e com um foco no significado contemporâneo da concepção de humor de Rand.
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Publicado originalmente em New Ideal.
Traduzido por Matheus Pacini.
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[1] MAYHEW, Robert. Humor in The Fountainhead, in Robert Mayhew (ed.), Essays on Ayn Rand’s “The Fountainhead” Lanham, MD: Lexington Books, 2007.
[2] MAYHEW, Robert. Humor in The Fountainhead, in Robert Mayhew (ed.), Essays on Ayn Rand’s “The Fountainhead” Lanham, MD: Lexington Books, 2007. p. 210
[3] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 22.
[4] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 336-337
[5] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 122
[6] MAYHEW, Robert. Humor in The Fountainhead, in Robert Mayhew (ed.), Essays on Ayn Rand’s “The Fountainhead” (Lanham, MD: Lexington Books, 2007). p. 219-222.
[7] RAND, Ayn. A Revolta de Atlas. Trad. de Paulo Henriques Britto. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. V I, p. 104-105.
[8] RAND, Ayn. A Nascente. São Paulo: Arqueiro, 2013. Vol I, p. 255.
[9] RAND, Ayn. “The Soul of a Collectivist,” For the New Intellectual. New York: Signet, 1964 Centennial edition.
[10] MAYHEW, Robert. Humor in The Fountainhead, in Robert Mayhew (ed.), Essays on Ayn Rand’s “The Fountainhead” Lanham, MD: Lexington Books, 2007. p. 211-212.
[11] MAYHEW, Robert. Humor in The Fountainhead, in Robert Mayhew (ed.), Essays on Ayn Rand’s “The Fountainhead” Lanham, MD: Lexington Books, 2007. p. 210.
[12] MAYHEW, Robert. Humor in The Fountainhead, in Robert Mayhew (ed.), Essays on Ayn Rand’s “The Fountainhead” Lanham, MD: Lexington Books, 2007.