O totalitarismo em Orwell, Huxley e Rand e suas lições para os dias atuais

As maiores ameaças às nossas liberdades não vêm apenas da força bruta de tanques e armas, mas de instituições que fomentam uma cultura de intolerância

Maurício F. Bento é graduado e mestre em economia. Tem passagens pelo Cato Institute e pelo Charles Koch Institute em Washington, DC. Atua no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e na Property Rights Alliance.

O totalitarismo é um conceito bastante explorado na literatura, em especial em ficções distópicas como as célebres 1984, de George Orwell, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, bem como em Cântico, de Ayn Rand. Aqui, exploraremos os principais pontos de convergência e divergência entre as três, tendo como base a forma como os autores exploram o totalitarismo em suas obras.

Em 1984, Orwell retrata um sistema totalitário baseado no controle direto pelo Estado – representado pelo Grande Irmão (Big Brother) – de todos os aspectos da vida, incluindo a história e o pensamento. Ele retrata a sociedade soviética, que buscava controlar, simultaneamente, passado, presente e futuro por meio da falsificação ou manipulação da história. No entanto, a conformidade com as mentiras do regime é garantida pelo uso primordial da força bruta. Para Orwell, o regime totalitário é algo invasivo, incômodo, sujo e violento.

Já em Admirável Mundo Novo, Huxley retrata uma sociedade em que as instituições e os costumes foram tão profundamente alterados que as pessoas não conseguem mais conceber estruturas como a família ou o casamento, ficando mais vulneráveis ao controle do Estado totalitário. Para ele, a forma mais eficiente para garantir a fidelidade total do cidadão é minando as outras possíveis fontes de lealdade que esse possa ter: Deus, família, pai e mãe, filhos. O Estado totalitário perverteu a cultura, assumindo a concepção e desenvolvimento das crianças, que crescem sem pai ou mãe. Aliás, as palavras “pai” e “mãe” são vistas como obscenas. Além disso, não existe Deus, pois ele seria “incompatível com as máquinas, a medicina e a felicidade universal.”

O mundo novo de Huxley pode ser resumido pela música “Imagine” de John Lennon:

Imagine there’s no countries

It isn’t hard to do

Nothing to kill or die for

And no religion, too

Imagine all the people

Livin’ life in peace

Admirável Mundo Novo, publicado em 1932, quase quatro décadas antes de Imagine, de 1971, retrata uma sociedade parecida. No entanto, enquanto John Lennon considera a ideia de que um governo global num mundo sem religiões seria, de fato, uma utopia, Huxley retrata um mundo distópico em que os seres humanos perderam a capacidade de tomar decisões autônomas.

No lançamento de 1984, em 1949, Orwell enviou uma cópia dele para Huxley que, em uma carta-resposta, elogiou a obra e comentou que um totalitarismo mais “sutil”, que manipula desde à infância, seria mais eficiente no longo prazo que o totalitarismo da força bruta do Grande Irmão:

“Na próxima geração, acredito que os governantes do mundo descobrirão que o condicionamento infantil e a narco-hipnose são instrumentos de governo mais eficientes que bastões e prisões, e que a ânsia de poder pode ser satisfeita fazendo com que as pessoas amem sua servidão, muito mais que açoitando-as até obedecerem.”

Em Cântico, Ayn Rand adota uma perspectiva mais próxima à de Huxley, em que o Estado controla a todos desde a infância. Na obra, o controle totalitário é exercido por meio do solapamento do indivíduo.

Os personagens não têm nomes. São identificados apenas com números, como se fossem produtos de uma linha de produção. A palavra “eu” não existe, tendo sido substituída por “nós”. O Estado define todas as profissões com base nas supostas necessidades coletivas. Não existe escolha individual: todos são doutrinados a aceitar as escolhas do Estado como sendo as melhores, não apenas por serem mais socialmente eficientes, mas também por serem moralmente superiores a qualquer vontade ou desejo individual. O Estado é onipotente, onipresente e onisciente.

Ameaças totalitárias contemporâneas

Se, por um lado, deparamos, atualmente, com regimes em que a liberdade de pensamento, expressão, associação e oposição são suprimidas pela violência do Estado, por outro, convivemos com o crescimento de ameaças mais sutis, pautadas pela manipulação social e cultural.

Em nome de causas nobres como o combate ao preconceito e à discriminação, percebemos um comportamento típico de seita em que se exige um grau de conformidade integral com as ideias hegemônicas consideradas “progressistas”. Quem menciona palavras ou ideias proibidas é considerado “herege” e é queimado na fogueira do cancelamento.

Alguns exemplos recentes que ilustram uma cultura de intolerância:

Em 2020, a atriz Gina Carano que atuava na série “O Mandaloriano” da Disney, foi confrontada nas redes sociais por ter dado a entender que o sistema eleitoral americano precisava ser aprimorado para evitar fraudes, o que foi visto como um eco às críticas do então presidente Donald Trump. Após ser criticada pela turba do Twitter, Gina respondeu:

“Como a história é editada, a maioria das pessoas não percebe que, para chegar ao ponto em que os nazistas conseguiam prender milhares de judeus, o governo fez com que seus próprios vizinhos os odiassem apenas por serem judeus. Como isso é diferente de odiar alguém apenas por suas visões políticas?”

A turba passou, então, a demandar sua demissão por “antissemitismo”. A Disney cedeu à pressão e Gina acabou cancelada e demitida.

Ainda em 2020, a editora-chefe do The New York Times (NYT), Bari Weiss, pediu demissão alegando que o NYT era pautado pela turba do Twitter, e que a arena de debates do jornal não se pautava mais pelo debate franco de ideias, mas pela demonstração de aderência aos valores pseudoprogressistas:

Em sua carta de demissão, ela disse:

“O Twitter não está no cabeçalho do The New York Times, mas se tornou seu editor. À medida que a ética e os costumes dessa plataforma se tornaram os do jornal, o próprio jornal tornou- se uma espécie de espaço de encenação. As histórias são escolhidas e contadas de forma a satisfazer um público restrito, em vez de permitir que um público curioso leia sobre o mundo e, em seguida, tire suas próprias conclusões. Sempre me ensinaram que os jornalistas eram encarregados de escrever o primeiro rascunho da história. Agora, a própria história é mais uma coisa efêmera, moldada para atender às necessidades de uma narrativa predeterminada.”

Bari Weiss prossegue:

“(…) lições sobre a importância de compreender os outros americanos, a necessidade de resistir ao tribalismo e a centralidade da livre troca de ideias para uma sociedade democrática – não foram aprendidas. Em vez disso, um novo consenso emergiu na imprensa, mas talvez especialmente neste jornal: que a verdade não é um processo de descoberta coletiva, mas uma ortodoxia já conhecida por uns poucos esclarecidos cujo trabalho é informar todos os outros.”

Um terceiro e último exemplo de cancelamento é o de Ayaan Hirsi Ali, imigrante somali que foi para a Holanda, depois para os Estados Unidos, que critica a leniência do Ocidente com o fanatismo religioso islâmico, em que qualquer crítica aos extremistas é considerada um ataque à prática religiosa e, portanto, islamofobia. Ironicamente, ela própria costuma ser atacada como islamofóbica.

Apesar de vivermos um momento em que “mulheres fortes e independentes” são exaltadas, Gina Carano, uma mulher com uma longa carreira numa área dominada por homens (MMA), Bari Weiss, uma judia lésbica que chegou ao posto de editora de um dos maiores jornais do mundo, e Ayaan Hirsi Ali, uma imigrante africana que fora mutilada na infância e fugiu de uma sociedade autoritária para um país livre, são canceladas por não aderirem à conformidade cultural que domina os espaços de que passaram a fazer parte, como o cinema, a mídia e a academia.

Hoje, as maiores ameaças às liberdades individuais não vêm apenas da força bruta de tanques e armas, mas de instituições que fomentam uma cultura de intolerância e destruição de reputação que solapam a autonomia individual e forçam as pessoas à conformidade. Apesar de a ameaça à integridade física ser baixa nas democracias liberais ocidentais, a cultura do cancelamento promove o linchamento virtual, a demissão e o ódio para causar um dano irreparável à vida e à saúde mental do cancelado da vez. Sociedades livres são sociedades abertas ao debate de ideias, em que se respeita a liberdade de expressão e pensamento, não só pelas instituições (leis e governo), como também pela cultura geral. A cultura liberal das democracias ocidentais está em franco declínio e o fato de a cultura pseudoliberal ter atingido esse grau de hegemonia leva a crer que as coisas ainda podem piorar/podem piorar muito, a não ser que mudemos de direção.

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Revisado por Matheus Pacini.

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