É um pecado perguntar isso. É um pecado pedir a um texto que seja mais do que elemesmo. É um pecado pensar num herói e tentar imaginá-lo em seu pior momento, no seumomento mais vulnerável, mais doloroso, mais privado. É um pecado perguntar se ohomem ideal chora.Como o homem que um dia se tornaria Prometeu, estou aqui diante de um papel embranco, em um escuro tão somente meu. E, diferente deste, não preciso descobrir a palavra“eu”. A verdade é que eu choro. É por isso que o ato de chorar importa tanto.A discussão das lágrimas masculinas já foi decidida há tempos. O que um dia foi um ato devergonha, hoje é um ato de libertação. A sentença já foi rogada, e os homens já podemchorar.E os melhores homens, choram mais ou menos? Quando pode chorar o homem? Quandobem entender? O público responde:‘Quando as lágrimas aparecerem, solte-as com força, sem arrependimentos ‘Mesmo se escavássemos todas as tumbas de nossos ancestrais, enquanto estesestivessem lá se revirando, seríamos incapazes de resolver o mistério das lágrimas.Faço-lhes outra pergunta, dizer que o homem pode chorar, significa dizer que ele devechorar ?A ideia de engolir o choro, de impedir a descarga dos canais lacrimais, sempre meincomodou. Hoje, todavia, não se pede para engolir o choro, mas engolir o riso. Não riadisso, não brinque com aquilo, não faça essa piada; enquanto o sofrimento em público épermitido, a diversão em público é sumariamente censurada.Parece existir emoção correta. Jeito certo de rir e chorar. Mas não só isso: parece que todosnós já sabemos qual delas é correta. A forma de rir e chorar, eidos, o momento oportuno derir e chorar, kairós, a substância do rir e chorar, ousia, todas as categorias aristotélicas,descobertas e aplicadas. O ‘logos’ final, a palavra final já foi dada. A razão já foi construída,o juízo proferido, e agora cabe a nós carregar a sentença e esperar pela auto execução.Para entender a situação, precisamos entrar na velha sentença de Hume, de ser a razãomera escrava das emoções. Ou devemos inverter o processo, entrar na dialética daliberdade de Hegel, e mostrar que, na verdade, o sonho do oprimido é se tornar opressor, efazer das emoções escravas da razão.Sejamos Racionais, e não emocionais. Iluministas e antirromânticos, expulsemoscoletivamente as emoções de tudo aquilo que é público. As decisões têm de ser tomadasde maneira puramente racional, sacralizemos um Kant pré-crítico, ou pior, sacralizemosKant.No entanto, Rand, sua inimiga, também apela à racionalidade. O tempo todo, o racional évirtude e o irracional, o pior dos vícios. É o uso da mente para lidar com os problemas, é avida refletida, pensada, lançada ao futuro que é nosso alvo. E os condenados pela visãodela são justamente os incapazes de questionar e, é claro, de responder. ‘Por que sim" é aresposta padrão, do vilão padrão, dos livros não tão padrão desta autora nada comum.A racionalidade de Ayn Rand, porém, não é tão seca e tosca. Existe uma diferença graveentre o Herói Objetivista e o Herói Estoico. O objetivista não seria um Jedi, um Spock, muitomenos um Sith ou um Klingon. Com certeza, o objetivista seria muito mais uma Ashoka eum Kirk. O caminho parece o do meio, mas, no final, é apenas a justa medida. Umanegação positiva dos dois opostos, que, no final, são apenas a mesma coisa. Pura esimples arbitrariedade.Não precisamos optar por um ou pelo outro. Os Revolucionários de 76 eram grandesleitores da poesia Britânica. Não haveria Jefferson sem Tennyson. Os inventores dafilosofia, os gregos, eram amantes de todo tipo de arte. Não haveria Platão sem Homero.Até os maiores negadores do mundo emocional fazem isso como grandes apreciadores dopoder deste mundo, e apenas aqueles que não se propõem a viver no nosso são capazesde fazê-lo completamente. Mais ainda, aqueles que o fazem são incapazes decompreender o que estão fazendo.Não me faltaram exemplos na minha vida de pessoas com ótimas capacidades erepertórios teóricos que se viam completamente inoperantes quando se depararam comproblemas da própria vida. Este tipo de conselho, quando pedido por uma pura e simplesignorância sobre as próprias motivações, ignorância sobre a própria vida interna, é o tipo doconselho que Roark fala que nunca deveria ser pedido.E essa honestidade, essa transparência do mundo interno ao mundo consciente e,portanto, coerência de ação com o mundo externo, esta é a meta. Não um conflito, umaharmonia, não uma cisão, uma tenra complementaridade.Quando o mundo consciente falhar, apele para seus valores, quando seus valoresestiverem obscuros, busque-os com a luz da sua mente, mas, principalmente, tenteencontrar ambos, nos mesmos objetos, nos mesmos objetivos da própria ação.Não sei se Rand perguntou coisas mais complexas sobre este tema. Se ela se deparoucom os diversos autores que acreditam numa educação emocional, em um entendimentode que, ao longo da vida, somos capazes de adequar, redimensionar, retrabalharprofundamente nossos valores e, por conseguinte, posicionar deliberadamente nossasemoções. Uma vez que é quase que uma constante existir nos personagens que sofremprofundas mudanças emocionais, como os produtores que se tornam grevistas em A revoltade Atlas, um incômodo emocional, uma noção grave da própria incompreensão ouincongruência. Mas em A nascente isto me parece um pouco mais inconclusivo.A tese mais corrente, mais presente e aceita sobre o próprio personagem principal, HowardRoark, é de que nele não há mudança profunda, entre a primeira página, com seu riso, e apágina final, com sua presença na construção do maior dos prédios. Eu discordo.Existe diferença, muita diferença entre os dois Howards. Ele não muda de ‘tipo’ de pessoa,não é um costume na literatura da Rand, pegarmos um vilão e torná-lo herói por meio doenredo. Apesar disso ser um pouco questionável quando nós tratamos de sua literaturainicial.Porém há uma diferença entre esses dois momentos na vida do grande arquiteto, e diriaque poderia ser marcada pela capacidade de chorar.A principal transformação que ocorre entre os dois Howards, é uma e simples. O primeiroHoward amava apenas a arquitetura. O segundo também ama Dominique.E porque ama Dominique, Howard ama Mike, ama Mallory e ama profundamente Wynand.E se eu fosse chutar, a única forma de vermos Roark chorar seria da mesma maneira quevimos Rand chorar, quando da perda de um valor insubstituível, alguém que ela amava.Claro que Roark perde alguém nesse livro. Ele perde talvez aquele que é seu primeiroamigo, e mais importante professor, Henry Cameron. E não, ele não chora; talvez tenha ummotivo profundo para isso: as últimas e poderosas palavras de Cameron para Howardforam de certeza.‘Tudo Valeu a pena’, disse Cameron. Chorar ao ouvir isso não seria digno de um herói.Howard, todavia, no final do livro, quase perde o amor de sua vida. Apesar dele sofrermuito, como é descrito claramente, ele também não chorou. Não porque a perspectiva deperdê-la fosse suportável, mas porque justamente o ato de arriscar a própria vida era o atode se entregar completamente à ele. Chorar ao ver isso não seria digno de um herói.A vida, no entanto, é limitada. É este limite que confere a ela significado irredutível e, se porum motivo de azar, no futuro, Dominique fosse primeiro que Howard, ou até Mallory, Hellere Mike. Ficar impassível ao perder algo profundamente valoroso, em qualquer idade, porqualquer motivo, não seria digno de um herói.Se a Alissa, mais conhecida por Ayn Rand, chorou ao perder Frank. Roark seria capaz dechorar.Se veríamos essas lágrimas, se elas seriam despejadas em público ou num momento desolidão, como aquele primeiro riso,caros amigos, não sei. Mas, escorreriam lágrimas, emesmo diante da maior das tristezas, seria lindo.