Valores, moralidade, razão e egoísmo em Ayn Rand

Ontem transcrevi aqui um texto que escrevi, originalmente, em Agosto de 1997, sobre os “fundamentos da ética egoísta-racional de Ayn Rand”, com esse título.

Neste texto, retomarei as ideias de Ayn Rand em minhas palavras – embora, em alguns casos, seja difícil abandonar as dela. Seguirei a sugestão de meu amigo Rubem Alves que, uma vez, no prefácio a um livro de minha autoria, afirmou que não iria resumir as minhas ideias, mas sim apresentar o que, depois de ingerir, mastigar e digerir o que eu havia dito, foi aproveitado por seus sistemas, passando a fazer parte deles.

Aqui vai.

Um valor é algo que alguém está disposto a agir ou mesmo lutar para (inicialmente) ganhar e (depois) manter.

Valores são relativos a uma pessoa (podendo variar de uma para outra, o que é valor para mim podendo não ser para você, e vice-versa) ou são absolutos (sendo valores em qualquer situação, temporal ou geográfica, independentemente de quem o aceite).

A maioria absoluta de nossos valores é meio para alguma outra coisa. Esses valores, mesmo para nós que os aceitamos, são valores instrumentais, intermediários, subsidiários e derivados. Dinheiro, para mim, que nisso segue Aristóteles, não tem valor intrínseco, em si mesmo, mas por aquilo que me permite fazer, adquirir ou preservar. Dinheiro é um meio para alguma outra coisa que eu valorizo — e, por isso, instrumental, intermediária, subsidiária e derivativamente adquire valor. Um montão de notas de cem dólares nas mãos de um índio que não saiba o que pode fazer com elas não tem valor nenhum (como dinheiro) — podendo servir apenas para acender uma fogueira… (Por que mantemos uma fogueira acesa com os jornais que compramos na última semana, mas não com os livros de Ayn Rand que recebemos da Amazon nessa última semana?)

E aqui vem a questão que, para mim, é central: se não houver um valor supremo, último, final, intrínseco e objetivo, é possível haver valores instrumentais, intermediários, subsidiários e derivados? Estou certo de que “não”. Eu valorizo a porque a é meio para b; eu valorizo b porque b é meio para c; eu valorizo c porque c é meio para d; e assim vai. Se não houver um valor supremo, final, objetivo, z, que justifica (porque “ancora na realidade”) os meus valores instrumentais, etc. minha cadeia de valores fica “pendurada no ar” – algo que, como possibilidade, eu admito, mas como possibilidade.

Um valor supremo, último, final, intrínseco, objetivo é, sob minha forma de entender as coisas, aquele valor para o qual os demais valores são meios. Eu estou certo de que, sem um valor supremo, último, etc., os demais valores da cadeia deixariam de ter valor real.

É a existência de um valor último, supremo, etc., um fim em si mesmo e não um meio para alguma outra coisa, que permite que os meios de alcançá-lo se tornem valores (instrumentais, intermediários, etc.). É apenas um valor supremo, último, etc., um fim em si mesmo, que torna a existência de outros valores possível (como meios e instrumentos).

Pode haver mais de um valor último, supremo, etc., ou, em última instância, apenas um, os demais se ordenando abaixo dele como instrumentais e intermediários para ele? Essa questão é complicada. A resposta a ela determina se somos monistas ou pluralistas no reino dos valores. Vou deixá-la em aberto, porque ela não afeta o que segue, mas vou revelar minha preferência: ela é monista – e por uma razão simples: se tivermos vários valores últimos, supremos, etc., há, potencialmente, a possibilidade de que eles entrem em conflito entre si. E daí, ou teríamos de viver com uma contradição interna em nosso conjunto de valores, ou teríamos de tentar compatibilizá-los, em termos de um valor maior, mais último, mais supremo. Por isso, tendo para o monismo no reino dos valores. Deixo a questão aqui. Ayn Rand também é monista.

Para Rand, o valor supremo, último final, intrínseco, objetivo, esse fim em si mesmo que é a condição de possibilidade de considerarmos outras coisas como valores (intermediários, subsidiários, instrumentais e derivados), é a nossa vida.

A noção de valor pressupõe que exista alguém que possa agir para ganhar e manter alguma coisa, ou seja, que existam seres que possam se comportar de forma a buscar e atingir um alvo, uma meta. A noção de valor também pressupõe que esse ser confronte alternativas, que existem várias e diferentes coisas que esse ser pode desejar ganhar e manter. Valores têm que ver somente com a esfera da liberdade humana, somente com aquelas ações que estão abertas à nossa escolha. Isso significa que apenas o ser humano pode ter valores.

Dado que a natureza não provê o ser humano com uma forma automática de sobrevivência, ele tem de sustentar sua vida através do seu próprio esforço, de suas próprias escolhas, de suas próprias decisões, de suas próprias ações. O ser humano precisa agir para manter a sua vida. Se não o fizer, morre, deixa de existir. A vida só é mantida através de um processo de ação que a gera e sustenta.

O ser humano é, portanto, diariamente confrontado com a mais genuína de todas as decisões: a de continuar vivendo ou perecer, a da existência ou da não-existência, a da vida ou da morte. É por isso que precisa de valores para orientar suas escolhas, decisões e ações. E é por isso que a vida é o valor supremo: porque ela pode terminar a cada instante e, sem ela, ou na ausência dela, não faz nenhum sentido falar de valores.

O valor supremo do ser humano é, portanto, a sua própria vida. Sem ela, ele não tem nenhum outro valor — na verdade, nem faz sentido falar em valores. Tudo o mais que tem valor para o ser humano tem valor intermediário, subsidiário e derivado. O valor supremo, último, final, intrínseco e objetivo, o fim em si mesmo, é a manutenção da sua vida, porque, sem ela, nada mais existe para ele, nada mais pode ter valor. A vida é, portanto, não só o valor maior, supremo, último, final, etc., mas também o padrão de valor: aquilo que contribui (como meio) para sua manutenção tem valor (intermediário, subsidiário, instrumental e derivado).

A vida do ser humano (como a de qualquer outro organismo) depende, do ponto de vista material, de haver suficientes meios (alimentação, etc.) para que ele sobreviva, mas depende, também, do ponto de vista do organismo, de ele tomar as ações necessárias para se apropriar desses meios e fazer uso apropriado deles.

Em relação a muitos organismos, esse processo é mais ou menos automático: as ações necessárias para se apropriarem dos meios necessários à manutenção de sua vida são tomadas de maneira instintiva, mais ou menos, automatizada. No caso de seres humanos, porém, esse automatismo não existe. O ser humano não possui um instinto de autopreservação. Além disso, ele nasce relativamente mal equipado para buscar esses meios: nu e desarmado, sem presas, garras ou chifres, por exemplo. Nasce incompetente, no sentido de que nasce sem saber, e sem saber fazer, nada. Porém, ele nasce com uma mente que lhe dá o potencial de aprender. O ser humano não toma, automática ou instintivamente, as ações necessárias para sobreviver: ele tem de aprender a escolher, a decidir, a agir. Para isso, tem de aprender a conhecer o mundo em que vive. E a conhecer os seus potenciais, os seus poderes. Se não fizer isso, morre. Para sobreviver, o ser humano tem de conscientemente analisar as alternativas, decidir quais ações deve tomar para sobreviver, e, em seguida, tomá-las.

É por isso que Ayn Rand diz que nossa capacidade de aprender, vale dizer, nossa razão, é nosso único instrumento de sobrevivência.

Por causa disso, porque o ser humano precisa conscientemente escolher entre alternativas e decidir como agir para poder sobreviver, ele precisa de valores para orientá-lo em suas decisões. E para atribuir valores às coisas, o ser humano tem de escolher um padrão de valor. A escolha racional aponta na direção de um padrão e um código de valores que sustentam a sua vida. Uma escolha irracional o leva a um código de valores que impede ou mesmo destrói a sua vida. Tudo o que é próprio à vida de um ser racional é o bem; tudo aquilo que a destrói é o mal.

Note-se que falo de “um ser racional”. Isso quer dizer que a vida dele não consiste de mera sobrevivência: consiste, isto sim, de vida conscientemente escolhida por nós mesmos, que nos realiza, que nos torna, em última instância, felizes. É aqui que entra o conceito aristotélico de eudaimonia.

É evidente que o ser humano pode decidir não escolher o padrão objetivo de valores: a vida. Nesse caso, suas ações levarão (eventualmente) à sua destruição. Vida ou morte é a única alternativa fundamental do ser humano. Viver é seu ato básico de escolha. Se ele escolhe viver, um código racional de valores (que se torne, depois de um processo cuidadoso de reflexão, uma ética racional) lhe dirá que princípios de ação são necessários para implementar sua escolha. Se ele não escolhe viver, a natureza se encarrega de trazer-lhe a morte. Se ele escolhe não viver, ele mesmo pode, num gesto coerente, pôr fim à sua vida, apressar o fim de seus dilemas, conflitos e sofrimentos. Em ambos os casos, morte natural ou suicídio, não faz mais nenhum sentido falar em valores: aquilo que torna possível os valores não mais existe.

Para que possa elaborar um código de valores e, eventualmente, uma ética racional, o ser humano precisa conhecer a natureza do mundo que o cerca, a sua própria natureza e a natureza de seus meios de cognição: isto é, ele precisa responder às questões colocadas pela metafísica, pela epistemologia, e pela própria ciência, pois doutra forma não poderá saber o que fazer.

O instrumento de cognição do ser humano é sua razão: é através dela que ele integra os elementos da percepção, elabora conceitos, com eles emite juízos, e assim vem a conhecer o mundo que o cerca. Isso significa que a ética não está fundamentada, como acreditam muitos filósofos, no sentimento, nas emoções, na intuição, na fé, nos costumes sociais, tampouco na noção de utilidade ou de dever. Ela está fundamentada na razão.

Isso significa, além do mais, que a ética não é algo imposto sobre o ser humano porque ele vive em sociedade. Contra aqueles que afirmam que um código de valores e uma ética são construções sociais (necessárias porque vivemos em sociedade), e que dizem que o ser humano não precisaria de um código de valores e de uma moralidade em uma ilha deserta, Ayn Rand afirma, com convicção e com razão, que é numa ilha deserta que ele mais precisa de um código de valores, de uma moralidade, de uma ética! Como diz Ayn Rand, “Deixem que alguém pretenda, em uma ilha deserta, quando não há nenhuma vítima que ele possa espoliar, que rocha é casa, que areia é vestimenta, que alimento vai cair em sua boca sem causa e esforço, que ele vai ter uma colheita amanhã devorando seu estoque de sementes hoje – e a realidade o varrerá da face da terra, como ele merece. A realidade lhe mostrará que a vida é um valor a ser comprado, e que o pensamento racional é a única moeda suficientemente nobre para adquiri-lo”.

Para terminar, cito mais uma passagem (meio longa) de Ayn Rand:

“Há, em essência, três escolas de pensamento sobre o natureza do bem, a saber, as que veem o bem como, respectivamente, intrínseco, subjetivo, e objetivo.

  1. A teoria do bem intrínseco mantém que o bem é inerente a certas coisas ou ações enquanto tais, irrespectivamente de seu contexto e de suas consequências, independentemente do benefício ou injúria que possam causar aos atores e sujeitos envolvidos.
  2. A teoria do bem subjetivo mantém que o bem não tem relação com os fatos da realidade, que ele é o produto da consciência do ser humano, criado por seus sentimentos, desejos, ‘intuições’ e ou caprichos

A primeira dessas duas teorias mantém que o bem reside em alguma forma da realidade, independente da consciência do ser humano; a segunda, que o bem reside na consciência do ser humano, independente da realidade.

A teoria do bem objetivo, por sua vez, mantém que o bem não é nem um atributo das “coisas em si mesmas”, nem dos estados emocionais do ser humano, mas sim uma avaliação dos fatos da realidade segundo um padrão racional de valor. (Racional, neste contexto, quer dizer: derivado dos fatos da realidade e validado por um processo de razão). A teoria objetiva mantém que o bem é um aspecto da realidade em relação ao ser humano – e o bem tem de ser descoberto, não inventado, pelo ser humano”.

É por isso que Ayn Rand chama sua ética de “egoísmo racional”. Eu prefiro chamá-la de “ética do valor supremo racionalmente baseado e moralmente justificado”. Prefiro assim, porque o conceito de egoísmo foi tão atacado pela interpretação altruísta da moralidade cristã – kantiana em sua versão moderna – que ficou temporariamente corrompido. É preciso reconstruí-lo para que ele possa reocupar o seu lugar como virtude dentro da visão de mundo que aqui se apresenta.

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Publicado originalmente em Ayn Rand Space.

Revisado por Matheus Pacini.

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