Reflexão rápida sobre Platão: a fusão entre supernaturalismo e racionalismo

“Supernaturalismo” é a crença de que a realidade é composta de uma dimensão não natural que transcende o mundo material que percebemos [religiões, por exemplo]. Os filósofos ocidentais, todavia, redefiniram a super-Natureza na filosofia em termos especificamente platônicos – de modo a significar uma realidade formada por abstrações ou conceitos. Essa versão de supernaturalismo leva o nome de Idealismo (não num sentido ético aqui, mas que denota a visão da primazia das ideias sobre a matéria – isto é, que todos os elementos materiais são formados por elementos abstratos que o conferem uma essência e determinam as normas pelas quais a matéria deve operar). Todo supernaturalismo-ideal é supernaturalismo, mas o oposto não é verdade: haja vista que a rejeição de um não implica necessariamente que o outro seja uma metafísica natural da cristandade. Além disso, o termo também pode ser aplicado a pensadores que, por sua vez, rejeitam o cristianismo e até mesmo a religião – por exemplo, os antigos Pitagóricos, que dispensavam a existência de deuses, defendendo, em seu lugar, a existência de um mundo de números transcendentais. No significado real do termo, esses homens eram ateístas e, outrossim, idealistas à sua própria forma.

“Racionalismo” – outro princípio cardinal de Platão – é a teoria que preconiza que a conceptualização é a essência da cognição humana, embora os conceitos (pelo menos, os fundamentais) sejam impossíveis de derivação direta pelos sentidos humanos. A verdadeira base do conhecimento, segundo essa visão, é o apriorismo – isto é, os conceitos independentes dos perceptos. Assim como o idealismo, o racionalismo é uma grande teoria, que incorpora inúmeras variantes. O racionalista poderá (i) preconizar que os sentidos possuem alguma participação, mesmo que auxiliar, no conhecimento conceitual; (ii) rejeitar a teoria de Platão, do mundo das Ideias, em favor de uma forma distinta de apriorismo ou, até mesmo, (iii) dizer que a fonte do apriorismo enquanto interna ou externa, psicológica ou religiosa, é produto da faculdade conceitual comum ou de alguma versão superior dela. Sejam quais forem as diferenças, todos os racionalistas subjugam a indução.

O método próprio ao conhecimento, afirmam os supernaturalistas, não é a inferência através da observação, mas sim a lógica dedutiva: o modelo cognitivo para todas as questões cognitivas é um sistema geométrico. Alguns racionalistas, e muitos escolásticos – com destaque para Spinoza -, tentaram criar filosofias com todos os rigores da matemática: a maioria deles, infelizmente, seguindo a perspectiva platônica.

Julgando por seus diálogos, Platão sanciona a frequente emergência de novos insights aparentemente independentes no processo de pensamento – insights esses que amplificam ou melhoram a progressão do processo dedutivo, embora não sendo eles próprios oriundos dos axiomas previamente definidos[1]. Como racionalista, Platão não considera esses axiomas “relâmpagos cognitivos” – uma visão que viria a subverter todo o seu sistema lógico. Ao invés disso, ele preconiza que esses insights encontram-se conectados ao resto e seguirão, eventualmente, de outras premissas verdadeiras – ou apenas, ao final, da compreensão de Deus.[2] E essa asserção não é muito diferente do filósofo Immanuel Kant, que em sua obra Crítica à razão pura, alegou “achar necessário negar o conhecimento de modo a abrir espaço à razão”, em vista da necessidade emergente de reformular o corpo filosófico tal como atualmente o era, partindo da premissa de que suas alegações se confirmariam em seu post mortem. Sobretudo, esta é a consequência última do racionalismo, posto que parte de causação lógica sem qualquer[3] base factível; de princípios aprioristas (conforme será tratado mais abaixo).

Os racionalistas preconizam que o homem adquire o conhecimento da realidade através do conhecimento de conceitos a priori. Uma vez que estes existem independentes da Natureza[4], eles podem ser encontrados em um plano além dela. A realidade é, portanto, regida por uma espécie de plano dos conceitos – que é o ponto de vista dos idealistas. O oposto também é verdade: um mundo de conceitos, se existir e for racionalmente cognoscível, poderá ser descoberto por meio da observação, mas apenas através de um método racionalista. Resumindo, Platão não é meramente um proponente da justaposição[5], mas de um verdadeiro sistema: idealismo e racionalismo implicam um no outro.

O sistema definido por esses dois princípios oferece sutis avisos a cada um de nós enquanto integradores. Integração, ele nos diz: pertence não a esse mundo, mas à fonte transcendental. Assim sendo, não participe da brincadeira fútil dos residentes da caverna (tais como cientistas empiristas), que procuram ordem no caos. Não olhe, mas pense em trazer a sua atenção às ideias apriorísticas que substanciam a realidade. Com essa orientação, então, você começará a integrar, o que significa que poderá gradualmente compreender as interconexões lógicas nas ideias. Se você se mantiver nesse processo, você saberá quando parar, porque você terá encontrado o cume.

Assim como muitos pensadores gregos, Platão tentou relacionar o Uno com a Díade. Suas soluções foram prescrever “Díade” enquanto irreal (no sentido de suprarreal), e construir um Uno autossuficiente, enquanto uma entidade autocontida. Objetivamente, Platão é então o preeminente protetor do Uno à revelia da Díade. Esta é a consequência inevitável de sua abordagem. Maiores abstrações incluem as de menor hierarquia, logo, se as abstrações são a realidade, ela deverá estar contida nas abstrações maiores.

Platão foi um dos mestres da filosofia e um maravilhoso integrador. Foi o primeiro ocidental a identificar esse processo, compreender sua importância e praticá-lo; foi o primeiro a seguir o caminho da integração – e que longo caminho. A julgar pela definição objetivista de “validação”, todavia, ele seguiu um caminho extremamente falho. O método platônico de integração é o arquétipo da misintegration. Ela rejeita um elemento próprio à validação (os sentidos), e os separa da Natureza – a supernatureza – dos outros dois: lógica e conceitos.

Sempre que abstrações flutuantes se tornam essenciais à integração das obras de uma cultura, as obras, então, se tornam supernaturalistas e racionalistas.”

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Publicado originalmente no blog do autor e em sua página no Facebook.

Revisão de Matheus Pacini.

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[1] [1] Se Existência > Identidade > Consciência, o método platônico interpreta “abstração” da seguinte forma: Existência (onde a abstração detém primazia sobre a matéria) > Identidade > Consciência (abstração enquanto produto da consciência, criada pelo homem). Isto é o platonismo moderno; ilógico, posto que considera abstrações como elementos metafísicos, e produto de uma consciência. A solução antiga era inverter: Consciência (Abstrações) > Identidade > Existência (Matéria); postura que se autorrefuta, uma vez que não se pode assumir a existência de uma consciência anterior à própria existência (perceba o absurdo).

[2] O Deus platônico é completamente diferente de sua contrapartida religiosa, muito embora esta utilize daquela para subsistir.

[3] Por vezes, ocorre de um intelectual desenvolver um corpo filosófico teórico tão denso que sua verificação através da ciência acontecer em algum momento de seu pós-vida. Por outro lado, não é isso o que está sendo tratado pelo texto, e sim o fato dos racionalistas, por meio da lógica pura, realizarem deduções lógicas compartimentalizadas, à revelia das observações, tentando reformular a realidade de acordo com suas próprias ideias; no caso, separando a lógica da realidade. Entende-se que essa é a consequência final do método racionalista.

[4] Natureza, com “n” maiúsculo, refere-se à concepção grega. Para eles, a realidade era composta do mundo físico e abstrações, determinantes de sua essência; sua parte física, da abstrata derivada, é conhecida como Natureza. Assim sendo, a realidade, segundo os aprioristas (os adeptos do método racionalista), pode sim ser compreendida por meio das observações, mas até o ponto em que as observações produzem conhecimento acerca das abstrações que conferem sentido ao material observado. Para eles, chega um momento inevitável em que as conclusões via análise das abstrações, prima facie, contradizem os fatos. Desse modo, ao invés de revisar as abstrações, os aprioristas encontrar-se-ão em necessidade de reinterpretar aquilo o que fora observado, por mais dramática que a conclusão possa ser, um vez que para eles são as abstrações que conferem significado à Natureza.

[5] A filosofia objetivista, conforme o próprio The DIM Hypothesis, preconiza que todos os conceitos são integrações do material perceptual ou de outros conceitos; segundo Peikoff, essas integrações são conhecidas como Conexões. Contudo, entende-se que a cognição do ser humano não é infalível, e que, por conseguinte, essas conexões podem partir de ideias tendenciosas – falhas, conforme sua própria natureza. Toda vez que um conceito for sustentado por conexões falhas, estas, segundo Leonard Peikoff, tornar-se-ão má integrações. Elas serão as chamadas de “justaposições” – diferentes conceitos assumidos num mesmo sistema, mas que não possuem uma conexão entre si, são conceitos justapostos, e não se pode alegar que houve integração entre eles.”

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