Quem é a autoridade máxima em Ética?

Há certas perguntas que devem ser questionadas – isto é, desafiadas em sua raiz – porque consistem na introdução de uma premissa falsa na mente de um ouvinte descuidado. “Quem criou o universo?”, é uma delas. “Você continua agredindo a sua esposa?”, é outra. Outra ainda é a que serve de título desse artigo.[1]

Ela surge de formas distintas, direta e indiretamente, mas sua formulação mais comum é: “quem decide o que é certo e o que é errado?”

Não é provável ouvir tal pergunta de estudantes do Objetivismo, mas é possível escutá-la de outros e não conseguir entender sua natureza. Surpreendeu-me, todavia, vê-la dirigida a esse departamento, da seguinte forma: “é plágio intelectual aceitar ou usar princípios e valores filosóficos descobertos por outra pessoa?”

Pode não parecer a mesma pergunta, mas assim o é, na medida em que se origina do mesmo erro fundamental.

A natureza do erro fica clara quando se faz essa pergunta às ciências físicas: “quem decide o que é certo ou errado na eletrônica? Ou: “é plágio científico aceitar ou usar princípios médicos e técnicas terapêuticas descobertas por outra pessoa?

Ausência do conceito de “objetividade”.

É obvio que a origem de tais perguntas é um tipo de vazio conceptual: a ausência do conceito de objetividade na mente de quem as formula.

A objetividade é um conceito tanto metafísico como epistemológico: refere-se à relação entre consciência e existência. Metafisicamente, é o reconhecimento do fato de que a realidade existe independentemente da consciência de quem a percebe. Epistemologicamente, é o reconhecimento do fato de que a consciência do preceptor (do homem) tem de adquirir conhecimento da realidade por certos meios (a razão) conforme certas regras (a lógica). Embora a realidade seja imutável e, sob qualquer contexto, apenas uma resposta seja verdadeira, a verdade não está automaticamente ao alcance da consciência humana, e só pode ser obtida mediante certo processo mental requerido de cada homem que busca o conhecimento – que não há substituto para esse processo – nem como se evadir da responsabilidade de empreendê-lo, nem atalhos, nem revelações especiais para observadores privilegiados – e que não pode haver tal coisa como uma autoridade “máxima” em questões relativas ao conhecimento humano. Metafisicamente, a única autoridade é a realidade; epistemologicamente, a mente de cada indivíduo. A primeira é árbitro final da segunda.

O conceito de objetividade contém a razão pela qual a pergunta “quem decide o que é bom ou mau, correto ou incorreto?” não é válida. Ninguém decide. A natureza não decide; ela, simplesmente, é; em questões de conhecimento, o homem não decide: ele, simplesmente, observa aquilo que é. Quando se trata de aplicar seu conhecimento, o homem decide o que quer fazer, de acordo com o que aprendeu, recordando que o princípio básico da ação racional em todos os aspectos da existência humana é: “a natureza, para ser comandada, deve ser obedecida”. Isso significa que o homem não cria a realidade, e pode alcançar seus valores apenas tomando decisões em consonância com os fatos da realidade.

“Quem decide a forma correta de fabricar um carro, de curar uma doença ou de viver a sua própria vida? Qualquer homem que se preocupar em adquirir o conhecimento necessário e julgar, por sua própria conta e risco. “Qual é o seu critério de julgamento? A razão. Qual o seu marco de referência? A realidade. Se o indivíduo erra ou evita os fatos, “quem o castiga?” A realidade.

Séculos de influência de Aristóteles foram necessários para que os homens adquirisse uma noção precária do conceito de objetividade com relação às ciências físicas. O quão precária é essa noção pode se observar no fato de que a maioria dos homens é incapaz de extrapolar esse conceito a todo conhecimento humano, incluindo as chamadas Humanidades, as ciências que tratam do homem. Quando se trata das Humanidades, a maioria das pessoas – consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente – retroceda à epistemologia de selvagens pré-históricos, ou seja, ao subjetivismo.

Subjetivismo contra os axiomas filosóficos

Subjetivismo é a crença de que a realidade não é um absoluto, mas sim um domínio fluído, plástico e indeterminado que pode ser alterado, no todo ou em parte, pela consciência de quem percebe, ou seja: por seus sentimentos, desejos ou caprichos. É a doutrina que sustenta que o homem – uma entidade de natureza específica, que lida com um universo de natureza específica – pode, de alguma maneira, viver, atuar e conquistar seus objetivos fora de e/ou em contradição com os fatos da realidade, ou seja, fora de e/ou em contradição com sua própria natureza e a natureza do universo. (Essa é a versão “mista” ou “moderada” de subjetivismo. O subjetivismo puro ou “extremo” não reconhece o conceito de identidade, ou seja, o fato de que o homem, o universo ou qualquer coisa tem uma natureza específica).

Durante séculos, a moralidade tem sido o monopólio dos místicos, ou seja, dos subjetivistas: um monopólio reforçado e reafirmado pelos neomísticos da filosofia moderna. O choque entre as duas escolas dominantes de ética, a mística e a social, é apenas o choque entre o subjetivismo pessoal e o subjetivismo social: um substitui o objetivo pelo sobrenatural; o outro, o objetivo pelo coletivo. Ambos estão radicalmente unidos contra a introdução da objetividade no domínio da ética.

Portanto, a maioria dos homens considera particularmente difícil ver a ética como ciência, entendendo, assim, o conceito de uma ética objetiva e racional que não dá lugar para a “decisão” arbitrária de ninguém.

O subjetivismo é a premissa contrabandeada que está na base de ambas as variantes da pergunta em discussão. Superficialmente, as duas variantes podem parecer proceder de motivos opostos. Na verdade, são dois lados da mesma moeda subjetivista.

O homem que pergunta: “quem decide o que é certo ou errado?” é obviamente um subjetivista que crê que a realidade se rege por caprichos humanos, e que busca evadir-se da responsabilidade de julgamento independente por uma de duas razões: cinismo ou fé cega; ou negação da validade de todos os padrões morais ou busca uma “autoridade” a quem obedecer.

Entretanto, o homem que pergunta: “é plágio intelectual aceitar ou usar princípios e valores filosóficos descobertos por outra pessoa?” não é dotado de uma consciência soberana que busca independência dos outros, como deseja aparentar. Ele não entende o que é objetividade melhor que o homem da pergunta anterior; ele é um subjetivista que vê a realidade como um conflito de caprichos e quer que seja governada por seus caprichos, o que ele se propõe a conseguir descartando como falso tudo que foi descoberto pelos outros. Sua preocupação principal em matéria de princípios filosóficos não é: “é verdadeiro ou falso?”, mas sim: “quem os descobriu?”

Sob tal premissa, ele teria que acender o fogo esfregando dois gravetos (se for capaz de descobrir isso), afinal, ele não é Edison e não pode aceitar a luz elétrica; teria que afirmar que a Terra é plana, posto que Colombo se adiantou a ele na hora de demonstrar sua forma; teria que defender o estatismo, posto que não é Adam Smith; e teria que descartar as leis da lógica, posto que, obviamente, não é Aristóteles.

A divisão do trabalho na busca do conhecimento – o fato de que os homens podem transmitir conhecimento e aprender através das descobertas dos outros – é uma das grandes vantagens do homem sobre todas as demais espécies do planeta Terra. Só um subjetivista, alguém que iguala fatos a afirmações arbitrárias poderia imaginar que aprender significa aceitar por fé, como quem formula a pergunta parece implicar.

Também é possível que o motivo de tal mentalidade seja o desejo não de descartar as ideias dos outros, mas de se apropriar delas. “Plágio” é um conceito que se refere não à aceitação, mas à autoria de uma ideia. É desnecessário dizer que aceitar a ideia de alguém e logo se fazer passar por seu criador é plágio do nível mais baixo possível. Mas isso nada tem a ver com um processo de aprendizado racional e legítimo. A verdade é que uma ideia e sua autoria são dois assuntos diferentes, que não são difíceis de separar.

Essa variante concreta da pergunta vale a pena ser mencionada apenas como um exemplo extremo de subjetivismo, de até que ponto as ideias não são reais nem têm conexão com a realidade na mente de um subjetivista. É uma ilustração de até que ponto o conceito de objetivismo segue sendo desconhecido para muitos homens, e até que ponto a humanidade necessita desse conceito.

Observe que a maioria dos coletivistas modernos – os supostos defensores da fraternidade, benevolência e cooperação humanas – está comprometido com o subjetivismo nas Humanidades. E, não obstante, a razão – e, portanto, a objetividade – é o único vínculo comum entre os homens, o único meio de comunicação, o único marco de referência universal e o único critério de justiça. Nenhum tipo de entendimento, comunicação ou cooperação é possível entre homens que se baseiam em sentimentos ininteligíveis ou “impulsos” subjetivos; nada é possível, exceto um conflito de caprichos que só pode ser resolvido através do uso da força bruta.

Razão e realidade como únicos critérios válidos

Em política, a pergunta subjetiva “quem decide?” surge de diversas formas. Ela leva muitos supostos defensores da liberdade à noção de que a “vontade do povo” ou da maioria é a sanção suprema de uma sociedade livre, o que é uma contradição em termos, posto que tal sanção representa a doutrina do governo ilimitado da maioria.

A resposta a esse, bem como a todos os outros problemas intelectuais e morais, é que ninguém decide. A razão e a realidade são os únicos critérios válidos de teorias políticas. “Quem determina qual teoria política é verdadeira? Qualquer homem que possa demonstrá-la.

As teorias, as ideias e as descobertas não são criadas coletivamente: são produtos de indivíduos particulares. Na política, como em qualquer outro campo do esforço humano, um grupo só pode aceitar ou recusar um produto (ou uma teoria); não pode, como grupo participar de sua criação. Os participantes individuais são aqueles que elegem esse campo concreto de atividade, cada qual de acordo com sua habilidade e ambição. E quando os homens são livres, as teorias irracionais podem triunfar temporariamente, e apenas se aproveitando de erros ou omissões dos pensadores, isto é, de quem buscam a verdade.

Na política, como em qualquer outro campo, os homens que não se preocupam de pensar são meros repetidores: eles aceitam, por preguiça, o que os líderes intelectuais do momento têm a oferecer. Quando os homens pensam, tendem a seguir o homem que oferecer a melhor ideia (ou seja, a mais racional). Isso não ocorre instantânea nem automaticamente, nem em cada caso ou detalhe especifico, mas é assim que o conhecimento se difunde entre os homens, e esse tem sido o padrão de progresso da humanidade. A maior prova do poder das ideias – do poder da razão para homens de qualquer nível de inteligência – é o fato de que nenhuma ditadura jamais foi capaz de se perpetuar sem recorrer à censura.

O número de seguidores de uma ideia é irrelevante para a veracidade ou falsidade dela. Uma maioria é tão falível como uma minoria ou como um indivíduo. O voto de uma maioria não é uma validação epistemológica de uma ideia. Votar é simplesmente um instrumento político adequado – dentro de uma esfera de ação estrita e constitucionalmente delimitada – para decidir os meios práticos para implementar os princípios básicos de uma sociedade. Mas esses princípios não se determinamos pelo voto. Por quem, então, são determinados? Pelos fatos da realidade, como identificados por aqueles pensadores que escolheram o campo da filosofia política. Esses foram os passos tomados na maior conquista política da história: a Revolução Americana.

Nesse sentido, é importante mencionar a importância epistemológica de uma sociedade livre. Em uma sociedade livre, a busca da verdade está protegida, pois qualquer indivíduo tem livre acesso a qualquer campo de conhecimento em que decida entrar. Livre acesso não significa garantia de êxito, nem de apoio financeiro, nem da aceitação e da conformidade de ninguém; significa, pura e simplesmente, a ausência de todas as restrições forçadas ou barreiras legais). Isso impede a formação de qualquer “elite” coerciva em qualquer profissão; impede a imposição legalizada de um “monopólio da verdade” por qualquer gangue de criminosos; protege o livre mercado das ideias; e mantém abertas todas as portas a uma mente inquisitiva.

“Quem decide?” Na política, na ética, na arte, na ciência, na filosofia – em todo o domínio do conhecimento humano – é a realidade que estabelece os termos, através do trabalho daqueles homens que são capazes de identificar seus termos e de traduzi-los em princípios objetivos.

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Traduzido por Matheus Pacini

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[1] Artigo escrito em resposta à pergunta de um leitor, publicado no Departamento de Munição Intelectual da The Objectivist Newsletter de fevereiro de 1965.

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