Por que o cinema americano abandonou a razão e a objetividade, em prol da “pós-verdade”, “da cura emocional” e do politicamente correto?

Uma das coisas mais assustadoras da cultura atual é o desprezo pela razão e pela objetividade que vemos não só no entretenimento, mas também na política, no jornalismo, nas discussões corriqueiras etc. É difícil dizer o que exatamente deu início a essa era “anti-razão”, “pós-verdade” em que vivemos — se foi a educação, a mídia, as crises globais, etc. No entanto, o entretenimento sempre teve uma relação muito íntima com mudanças na cultura, e mesmo que ele não tenha sido a causa inicial dessas mudanças, certamente respondeu a ela imediatamente, e acho interessante rastrear esse processo através dos filmes.

Creio que o ponto de inversão que nos trouxe à situação atual (em termos epistemológicos) ocorreu no final da década de 1990. Antes de Matrix, por exemplo, não era normal o espectador (e o cidadão comum) ficar questionando a natureza da realidade, a validade da razão e das estruturas sociais no seu dia a dia. Filmes eram sobre acontecimentos concretos, passando-se em uma realidade objetiva, mesmo quando retratavam coisas sobrenaturais. Se alienígenas invadissem a Terra, eram criaturas sólidas, com características específicas, e o herói tinha que usar a razão para solucionar esse problema, da mesma forma que a usaria para resolver qualquer outro.

É interessante lembrar que, ao longo das décadas de 1980 e 1990, eram comuns filmes de grande orçamento em que os cientistas eram os personagens principais. E eles não eram apenas técnicos, nerds, mas figuras heroicas, admiráveis, como Jodie Foster em Contato, Sam Neill em Jurassic Park, Pierce Brosnan em O Inferno de Dante, Helen Hunt e Bill Paxton em Twister (sem falar que vários desses filmes eram baseados em livros escritos por cientistas reais). Quando criança, eu sonhava em ser inventor por causa de filmes como De volta para o futuro ou Querida, encolhi as crianças, ou arqueólogo, por causa de Indiana Jones. A impressão que os filmes davam é que tudo de fantástico que pudesse acontecer no mundo aconteceria por causa de cientistas ou pessoas criativas inventando algo novo. Empregar a razão para lidar com a natureza e resolver problemas era uma virtude celebrada nos filmes. Questões emocionais subjetivas podiam fazer parte das histórias, mas não eram o foco principal: existiam para dar certa profundidade à história, gerando mais conexão e envolvimento.

Mas no fim da década de 1990, as coisas começaram a mudar. Lembro-me de sair da sessão de Matrix com alguns familiares, e as pessoas estavam realmente confusas, perplexas. Havia algo de novo naquele filme, que fazia a gente pensar de uma maneira nada familiar. Matrix não foi o primeiro sucesso desse período a questionar nossa percepção da realidade, porém se destacou por abordar isso de forma explícita e inovadora. No ano anterior, em 1998, O Show de Truman já estimulara na plateia alguns questionamentos existenciais que não eram comuns na cultura tradicional. E se nossa vida não passasse de um reality show? Um grande palco para vender produtos? Mas 1999 foi o ano que marcou essa transição. Depois de O sexto sentido, ninguém mais confiava 100% na realidade da trama de um filme de terror (o que foi reforçado em 2001 com Os outros). Depois de Matrix, nenhuma cena de ação precisava mais fingir qualquer respeito pelas leis da física. A bruxa de Blair nos fez questionar se o próprio filme em questão era cinema ou um pedaço de evidência. Um filme realista podia subitamente ter uma chuva de sapos sem maiores explicações (Magnólia). Clube da luta, assim como O sexto sentido, mostraram que não só não podíamos mais confiar nas nossas percepções, como aproximou isso de nossa realidade: agora não era mais necessária a existência do sobrenatural ou do fantástico para colocar a realidade objetiva em xeque: nossos problema psicológicos já faziam isso o tempo todo. Até mesmo a noção de família foi desafiada e exposta como uma farsa, quando Beleza americana levou o Oscar de Melhor Filme.

Daí em diante, foi um caminho sem volta. No começo dos anos 2000, vimos Donnie Darko Cidade dos sonhos se tornarem cults instantâneos, Charlie Kaufman se tornar o roteirista mais cobiçado do mundo com Quero ser John MalkovichAdaptação, Brilho eterno de uma mente sem lembranças, uma avalanche de filmes sobre pessoas com distúrbios psicológicos (Uma mente brilhanteA identidade BourneEfeito borboleta) e, é claro, o surgimento daquele que encabeçaria essa nova onda e levá-la para as décadas seguintes: Christopher Nolan, com Amnésia. O subjetivismo se tornou o “padrão-ouro” do cinema. Filmes que focavam em ações concretas e não traziam uma mensagem subjetivista, algum tipo de questionamento existencial, já pareciam datados, pouco sofisticados, menos “sexy”.

É importante dizer que muitos filmes desse período ainda eram excelentes. Questionavam a realidade, nossos sentidos, mas faziam isso através de tramas inteligentes, compreensíveis, se comunicavam de maneira racional com o espectador — eram “objetivos ao questionarem a objetividade”, pois traziam uma herança das décadas anteriores, dominadas por uma epistemologia mais racional (e, principalmente, o respeito pelo talento). Mas, obviamente, isso apresenta uma contradição, e contradições tendem a buscar uma resolução ao longo do tempo.

Conforme avançamos nos anos 2000 e 2010, esse elemento racional foi sendo abandonado pouco a pouco, e o subjetivismo deixou de ser apenas um tema discutido dentro de filmes racionais, mas foi sendo incorporado na própria forma em que os filmes eram feitos, e as histórias, contadas. Enquanto Matrix (1999) tinha um roteiro bem estruturado, contava com a racionalidade e o foco do espectador para transmitir a ideia de que a realidade é uma ilusão, A origem (2010) já apresenta uma narrativa caótica, e conta com a irracionalidade e a confusão mental do espectador para sugerir a mesma ideia. A origem destrói a capacidade cognitiva do espectador como tática para promover a mensagem anti-razão, o que é muito mais eficiente (da mesma forma que livros de certos filósofos subjetivistas são frequentemente impossíveis de entender e serem lidos em foco, e o estado de confusão mental provocado pelo estilo da escrita trabalha para validar a mensagem de que a razão é inválida).

Esses temas foram se tornando cada vez mais comuns nos filmes, a ponto que hoje, se eu fosse com amigos ver um filme como Matrix ou Clube da Luta no cinema, ninguém ficaria minimamente surpreso. Questionar a realidade objetiva já faz parte dos hábitos mentais do espectador comum. Por exemplo: outro dia na rua, um amigo caminhando ao meu lado deixou cair algo no chão e parou para pegar. Eu não percebi e continuei andando, até que alguns segundos depois me surpreendi com sua ausência e olhei para trás intrigado. Ele riu e brincou: “Imagina se você olhasse pra trás e eu não estivesse lá? E você descobrisse que eu fui uma projeção da sua mente todos esses anos?”. Uma brincadeira casual, mas que provavelmente apenas um roteirista criativo teria feito 30 anos atrás. Hoje, são coisas que a gente pensa a todo momento, pois fomos treinados por centenas de filmes ao longo de duas décadas a questionar a realidade do mundo ao nosso redor — da mesma forma que, quando eu era pequeno, imaginava constantemente a possibilidade de uma invasão extraterrestre, ou de um meteoro entrar em rota de colisão com a Terra, ou de dinossauros voltarem à vida etc.

Pensar em desastres pode soar algo negativo, mas enquanto os filmes afirmavam que podíamos lidar com esses problemas racionalmente, eles promoviam um senso de otimismo. Agora, quando a razão e a realidade objetiva começam a ser questionadas, a primeira coisa que vai embora é o otimismo. Dificilmente um personagem descobre que sua realidade é falsa, que tudo é relativo, que sua mente não está em contato com a realidade, e isso resulta em autoconfiança, em uma história alegre e inspiradora. Subjetivismo vem sempre acompanhado de pessimismo, melancolia e cinismo. Portanto, não é acidente que, no final dos anos 90, junto com o subjetivismo, os filmes começaram também a ficar mais sombrios (e com o 11 de Setembro, que tornou o pessimismo a nova realidade da cultura americana, essa tendência parece ter se tornado irreversível).

Outra coisa que começa a ir embora com a objetividade é o talento e os padrões de qualidade. Pois, enquanto um filme respeita a objetividade da plateia, tudo nele precisa significar algo, tudo tem que ser comunicado claramente, fazer algum sentido, ser feito com competência, portanto, as exigências sobre os criadores são muito maiores — da mesma forma que um modelo precisa ser realmente atraente pra ser fotografado em plena luz do dia, com uma lente cristalina, em foco total — mas as exigências diminuem bastante no escuro, numa atmosfera nebulosa, com uma lente turva (o que indica por que muitas pessoas se sentem atraídas pela “névoa” do subjetivismo). Se um filme é livre para ter finais abertos, contradições internas, buracos na trama, coisas aleatórias, não precisa ter um impacto específico na plateia, afinal, tudo é uma experiência subjetiva, emocional, tanto para os personagens da história, quanto para o artista criando o filme, quanto para o espectador na poltrona, muito menos habilidade é exigida dos realizadores.

É difícil dizer o que veio primeiro, se foi o declínio do talento, da objetividade ou do otimismo — mas uma virtude essencial, quando rejeitada, vai sempre arrastando as outras para o lixo com ela. Portanto, se os filmes já foram talentosos, objetivos e otimistas, passaram para talentosos, semi-objetivos e mais sombrios, e terminaram amadores, irracionais e deprimentes.

Durante as décadas de 1970 a 1990, filmes de terror costumavam ser sobre vilões e monstros reais, com identidades bem estabelecidas. E mesmo quando apareciam só nos sonhos dos personagens (como em A hora do pesadelo) havia um senso de que era uma criatura real no universo do filme, que outros personagens podiam vê-lo também, e que ele podia ser derrotado através de alguma ação inteligente. Agora, observe a quantidade de filmes de terror hoje em dia em que o monstro no fundo não existe concretamente, nem mesmo no universo do filme — é apenas uma metáfora, uma maneira simbólica do filme retratar algum problema emocional do protagonista. Tudo no cinema se tornou sobre emoções, sobre a experiência subjetiva do personagem. Pense nos inúmeros filmes de ficção-científica recentes que, em vez de lidarem com a natureza, com o mundo externo, solucionarem problemas científicos, os cientistas terminam lidando com traumas pessoais, relações familiares, sentimentos de perda — como O Céu da Meia-Noite ou Interestelar, por exemplo, nos quais ciência e emoções se tornam indistinguíveis.

Nos filmes atuais, a solução para os problemas não está na racionalidade, na competência, na criatividade, em saber lidar com a natureza — e sim em algum tipo de “cura emocional”. Até filmes mais mainstream, que não trazem discussões filosóficas pretensiosas, promovem essa ideia ao colocarem todo o foco das histórias nas emoções dos personagens. Por exemplo: personagens de animações infantis não buscam mais o amor verdadeiro, não precisam derrotar um monstro de fato, não têm que desenvolver habilidades interessantes. Tudo é sobre a “cura emocional”. Os problemas de Elsa em Frozen se derretem quando ela aprende a lidar com suas emoções. Raios mágicos trazem paz e abundância ao mundo de Raya e o Último Dragão, a vilã deixa de ser fria e aprende o valor da confiança. Em Festa no céu, em vez de matar o touro no duelo final, o herói pega um violão e canta uma canção de paz, pois entende que seu maior problema no fundo é o medo de ser autêntico, e quando ele supera isso, o monstro demoníaco a sua frente se desintegra.

A cura emocional é o novo “príncipe encantado”, o novo “matar o monstro”, o novo “passar na audição”, o novo “sobreviver ao desastre”, o novo “criar DNA de dinossauro”. Todos os seus sonhos parecem se tornar realidade uma vez que você foque em suas emoções e elimine conflitos internos (como se nosso universo interno estivesse desconectado do externo, ou melhor, como se ele criasse o universo externo, e nós pudéssemos atingir a felicidade apenas manipulando nosso estado interior, sem depender de ações no mundo real: obter consequências sem causas, recompensas sem ações). O que obviamente é uma mensagem perigosa — e se você nasceu nos últimos 20/25 anos, essa é uma das principais ideias que você absorveu da cultura popular.

Não que as emoções não sejam importantes. Elas só não devem ser utilizadas como meios de cognição, colocadas acima da razão, especialmente quando surge algum conflito entre uma coisa e outra (e quanto menos racional você é, mais conflitos surgem). Filmes do passado não eram antiemoção, mas elas não eram tratadas como o principal referencial das pessoas. Como ilustrado no curta da Disney, Reason and emotion (1943), sanidade exige que a razão ocupe o “assento do motorista”, e que emoções permaneçam no banco do passageiro. Se há um conflito entre fatos e emoções, você aceita os fatos, mesmo que isso te cause desconforto emocional por um tempo. Esse era o senso comum no passado. Mas hoje, se surge um conflito entre fatos e emoções, é a razão que é jogada pro banco de trás.

Portanto, não surpreende que todos hoje desconfiem da ciência, das notícias — já que nos filmes, até as mentes mais racionais e brilhantes parecem cegas para a realidade e no fundo são motivadas por emoções subjetivas (e se os cientistas de hoje sofreram influência o bastante da cultura, eles podem de fato ter perdido a objetividade, e assim entramos no velho ciclo onde o subjetivismo se retroalimenta de suas próprias crias). Não é surpresa que a liberdade de expressão esteja em constante ataque: se as emoções são a base de toda sua existência, palavras e insultos se tornam tão destrutivos quanto violência física; ambos representam uma ameaça para a “cura emocional” que é a chave de tudo. Desinteressadas na realidade, as pessoas foram perdendo (ou nem chegaram a desenvolver) a sensibilidade para distinguir verdade de mentira, e não enxergam, por exemplo, que boa parte dos “reality” shows que assistem hoje são, na verdade, roteirizados, encenados, cheios de manipulações desonestas, misturadas com coisas verídicas para “efeito dramático”. E mesmo que enxergassem, talvez nem dessem importância.

Como cinéfilo, minha grande perda nisso tudo tem a ver com os filmes. Mas esse declínio da objetividade é uma questão que deveria preocupar a todos, pois atinge a sociedade em todos os aspectos e tem graves consequências a longo prazo. Afinal, não é possível colocar um satélite em órbita através da “cura emocional”, inventar o iPhone através da “paz interna”, assim como não é possível filmar Lawrence da Arábia focando na “sua verdade”. Quanto mais você duvida da sua mente, da sua percepção dos fatos, mais você tem medo de agir com base neles. E quanto mais as pessoas se provam irracionais, movidas por impulsos subjetivos, mais isso fortalece o argumento de que elas precisam de figuras autoritárias controlando suas vidas (dá pra ver onde isso irá terminar). 

Quanto tempo o equilíbrio emocional de uma pessoa poderá durar quando o mundo físico começar a desmoronar ao redor dela? E não precisamos nem esperar o mundo físico ruir pra sofrermos as consequências dessa mentalidade. Afinal, até pra solucionar problemas emocionais é preciso usar a razão: se você atinge sucesso no mundo material, ou sucesso na sua vida emocional, em ambos os casos, foi seu lado racional que tornou isso possível. Se você observar o estado emocional das pessoas hoje em dia, o tom de revolta, confusão e pessimismo que marcou a última década, talvez essa seja a maior prova de que o subjetivismo só leva à destruição, e que sua primeira vítima é o próprio equilíbrio emocional que as pessoas tanto buscam.

________________________________

Revisado por Matheus Pacini.

Curta a nossa página no Facebook.

Inscreva-se em nosso canal no YouTube.

__________________________________________

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Inscreva-se na nossa Newsletter