O poder não corrompe – o caráter é o que realmente importa.

Falemos, hoje, de poder. Assim como o sexo e o dinheiro – e a maioria das coisas importantes da vida – muitas bobagens são ditas sobre o poder. Talvez a principal de todas elas seja a frase frequentemente citada “o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. 

Através de sua frase, Lord Acton tenta capturar uma verdade importante.  Contudo, se for tomada de forma literal, a frase se torna falsa e mal interpreta os abusos de poder. Então, a questão merece uma reflexão mais profunda.

Poder é a capacidade de se fazer algo. Ele assume muitas formas, tais como o poder cognitivo do pensamento, o poder moral da autorresponsabilidade, o poder físico do movimento, o poder social de influenciar outras pessoas, o poder político de controle das ações dos outros, e assim por diante.

Abusos de poder social e político são os mais preocupantes e, como a frase de Acton sugere, os maiores casos de corrupção ocorrem em nações que mais centralizam o poder político. Estatísticas das ciências sociais corroboram tal constatação, como o gráfico do Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional deixa claro: países com poder político mais concentrado e menos responsável tende a ser mais corrupto; países com governos limitados e mais responsáveis tendem a ser menos corruptos.

Então, um forte argumento pode ser apresentado em prol da limitação do poder governamental, e é tentador ver a posse do poder em si como um fator crítico e problemático.

Não obstante, considere esses contraexemplos:

* Mães têm poder sobre a vida e a morte de seus filhos. Elas controlam o que as crianças comem, decidem como protegê-las de predadores e do clima, e moldam seus pensamentos e sentimentos. As mães são corrompidas por esse grande poder?

* Professores têm muito poder sobre seus alunos. Com sua plataforma e sua audiência cativa, os professores podem instigar o medo de notas ruins e doutrinar seus alunos. Esse poder corrompe os professores?

Não, é claro que não. A maioria das mães e dos professores usa seu poder para o bem, para maximizar suas habilidades, enquanto uma minoria usa-o para o mal. Logo, não pode ser a posse do poder a causa do abuso. O que dizemos, corretamente, nos casos de maus tratos ou ensino de má qualidade é que o caráter dos envolvidos é corrupto.

Levado ao pé da letra, então, o aforismo de Acton é falso. O poder não corrompe as pessoas; em vez disso, corrompe as pessoas que abusam do seu poder. O poder não faz nada; pessoas com poder, sim. Quer o poder seja usado de forma produtiva ou corruptiva, ele está sob o controle das pessoas. Em outras palavras, o poder é uma ferramenta, e como é usada depende do caráter de seu possuidor. A mesma ferramenta pode ser usada para o bem ou mal, dependendo da escolha de que a empunha.

A questão é importante, pois não se trata de pura semântica. Se o poder corrompe as pessoas, então as pessoas praticam a corrupção têm uma desculpa – o poder me fez agir assim. O conceito de poder é aqui conceituado como o anel de Sauron, da obra de fantasia de J.R.R. Tolkien, O Senhor dos Anéis: Aquele que possui o anel pode, no início, ser uma pessoa decente, mas o poder do anel o degenera. O poder é uma força externa que entra na pessoa e a corrompe.

Considere outros contraexemplos:

* O dinheiro é poder econômico. Adquirir riqueza torna uma pessoa imoral?

* Músculos são poder físico. A musculação transforma alguém em um valentão?

* O conhecimento é poder intelectual. Um PhD o transforma em um gênio do mal?

* A fama traz poder social. O sucesso em Hollywood transforma atores em crianças mimadas?

Em cada caso, algumas pessoas usam seu poder – seja monetário, muscular, intelectual ou social – de forma corrupta.  Canalhas ricos, cientistas malignos, assassinos de plantão, e prima-donas arrogantes são matéria-prima da literatura e dos filmes.

Mas muitas outras pessoas que se tornam ricos, musculosos, inteligentes ou estrelas de cinema não se tornam pessoas piores. Em vez disso, tornam-se investidores de sucesso, pensadores criativos, trabalhadores eficientes, ou seres iluminados que nos encantam por seu estilo e glamour. O poder os exalta ao invés de corrompê-los.

A posse do poder, então, não é o fator principal: o caráter da pessoa é decisivo. O poder é a capacidade. Como tal capacidade é usada depende do usuário. Literalmente, o poder corrompe diz que o poder é o agente e a pessoa é o meio pela qual o poder é exercido. Mas isso reverte a ordem casual. A pessoa é o agente causal, a manifestação do poder é o efeito.

Lord Acton estava falando da política, então talvez devêssemos perguntar: o poder político é distinto dos outros? O poder político é uma força intimidadora que envolve o uso do poder policial e militar para que se façam cumprir as decisões dos políticos. E, fazendo justiça a Acton, o contexto original contém uma qualificação omitida da versão popular: “todo o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Grandes homens são quase sempre homens maus (…) Não há pior heresia que a crença de que o ofício santifica quem o exerce”.

Mas mesmo com o qualificador “tende a”, os políticos controlam o seu poder. Não existe tendência preexistente que faz com que os políticos o usem de uma forma ou outra. O poder concede opções aos políticos, e o político escolhe qual opção exercer. Os políticos não são como os indivíduos que estão em busca do anel de Sauron. Ninguém é.

A política contemporânea dos Estados Unidos, com todas as suas peculiaridades (veja A política esquizofrênica) é inconsistente no seu entendimento de poder – tanto do lado “conservador”, quanto do “progressista” da divisão.

Na minha experiência, os “conservadores” são os que mais gostam da frase de Acton, já que serve de argumento para limitações ao poder governamental. A posse do poder é uma coisa perigosa que deveria ser controlada. Por outro lado, também se orgulham em dizer que “armas não matam pessoas; pessoas matam pessoas”, como defesa do porte de armas. Não obstante, a arma é uma forma concentrada de poder, e se o poder corrompe, então, a posse do poder de uma arma deveria corromper cidadãos assim como o poder político corrompe os políticos. Ou a frase de Acton se aplica a ambos os casos ou não se aplica a nenhum.

Os “progressistas” normalmente têm uma visão mais benigna do poder governamental, e há gerações têm estado felizes em conceder aos governos maior controle regulatório sobre nossas vidas. Mas eles também têm medo de armas e não acreditam que se possa confiar cegamente nas pessoas quanto ao seu porte. As armas matam, portanto o porte de armas deveria ser severamente restringido ou eliminado. Contudo, um número extraordinário de armas está à disposição de nossos políticos. Logo, se queremos controle de armas, são as maiores e mais poderosas armas – que estão em posse do governo – que demandam maiores restrições.

A “corrupção pelo poder” talvez não seja uma verdade em termos literais, mas é retoricamente poderosa e nos aponta a razão pela qual o poder político deveria ser limitado.

O problema é que nós, cidadãos, sempre enfrentamos um problema de conhecimento sobre nossos políticos: nunca podemos estar certos do seu caráter. Os poderes militar e policial podem ser usados para o bem, mas nas mãos de maus caráteres, podem ser terrivelmente destrutivos. A política democrática é um mecanismo de seleção imperfeito, e alguns políticos que escolhemos sem dúvida corromperão o poder que lhes concedemos. Então, a prudência dita que não devemos concentrar o poder. Porém, devemos estabelecer diversas formas de verificação ao sistema.

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Tradução de Matheus Pacini

Revisão de Vinicius Cintra

Publicado originalmente em Every Joe

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