O egoísmo pode ser um ideal moral?

Ayn Rand é um fenômento cultural, e uma das vozes mais polêmicas da filosofia moderna. Seus romances A nascente e A revolta de Atlas despertam admiração profunda ou críticas contundentes – e há uma razão para tal. Ela declarou que o objetivo de sua literatura era “projetar o homem ideal” – projetar um ideal moral[1]. Essa preocupação com o ideal dá um caráter distintamente filosófico aos seus romances, e a sua visão sobre o que é ideal é que os tornam tão controversos.

Nas décadas seguintes à publicação de A revolta de Atlas, Rand desenvolveu sua filosofia em diversos ensaios, entrevistas de rádio e TV e palestras universitárias — aplicando a sua perspectiva única aos mais diversos problemas filosóficos e fenômenos culturais[2], com um impacto considerável. Apesar da forte oposição às suas ideias, suas obras venderam milhões de cópias, e já foram traduzidas para mais de vinte idiomas diferentes.

Muitos leitores se surpreendem ao perceber que Rand defende uma moralidade do egoísmo, apresentando heróis e heroínas que não se encaixam na definição convencional desse termo. Ao invés da amoralidade de parasitas econômicos e alpinistas sociais, deparamos com indivíduos dotados de integridade, propósito e inteligência — artistas, filósofos, inventores e empresários — homens e mulheres guiados pela razão, que perseguem carreiras produtivas e se orgulham de si próprios, de seu trabalho, e de sua capacidade de viver. O propósito central de seus personagens é atingir sua própria felicidade, mas nem por isso são associais ou antissociais. Pelo contrário, têm um respeito profundo pelos direitos dos outros, interagindo com eles por meio da razão e da troca, e não através de fraude ou violência. Eles têm uma visão elevada do potencial humano, admirando e se inspirando no sucesso e nas virtudes alheias. Formam laços profundos de amor e amizade, e sua atitude geral é de benevolência e boa vontade. Rand surpreende nas virtudes que considera essenciais para uma vida egoísta — racionalidade, honestidade, integridade, independência, justiça, produtividade e orgulho.

Fica claro que Rand propõe uma nova concepção de egoísmo — que nos desafia a rever definições convencionais de interesse próprio/autointeresse, sua relação com a moralidade, e sua importância nas relações interpessoais. Em particular, Rand argumenta que associar o autointeresse à exploração amoral ou indiferença com o outro não é apenas errado, como também distorce a forma como definimos nossas alternativas morais, avaliamos a nós mesmos e os outros, e estabelecemos nossas instituições sociais. Em última instância, transmite a ideia de que a nossa vida é uma escolha entre: i) sacrificar os outros para o nosso próprio bem (o que chamam de “egoísmo”) ou ii) nos sacrificar pelo bem dos outros (o que chamam de “moralidade”).

O que Rand retrata em seus romances é uma terceira alternativa: uma perspectiva não-sacrificial da vida. O que a moralidade requer não é abandonar nosso autointeresse, ou temperar nossa vida com atos esporádicos de altruísmo para mostrar para os outros; é preciso descobrir racionalmente o que está em nosso interesse genuíno. Segundo Rand, precisamos de uma moralidade do “egoísmo racional”.

Por “egoísmo racional”, Rand se refere à busca de valores, bem como à prática de virtudes que objetivamente sustentam e enriquecem a vida do indivíduo, não apenas no momento imediato (no curto prazo), mas durante todo o curso de sua vida. Significa viver por sua própria mente, por seus próprios julgamentos, e por sua própria produção — colhendo os frutos materiais e espirituais do seu esforço.

Para Rand, a busca do autointeresse é uma tarefa exaustiva. Não é fácil identificar que valores devemos perseguir, nem que virtudes devemos praticar para florescer. Dedicar sua vida ao autointeresse requer reflexão séria e dedicação a princípios morais, mesmo frente à pressão para fazer concessões. Quando Rand diz que sejamos egoístas, não implica que devamos agir como nos der na telha, à revelia de qualquer capricho momentâneo, ou motivado por desejos irracionais. Definir os valores e os interesses apropriados para o homem é uma tarefa filosófica-intelectual, e para ela, a meta central da filosofia moral[3].

A moral objetivista difere fundamentalmente da moralidade convencional, cujo foco primário está nas relações com os outros, além de considerar o autointeresse imoral ou amoral. Rand rejeita essa visão. Sem dúvida, um código moral deve definir os parâmetros da relação entre os homens, porém a essência da moralidade não é a relação de um indivíduo com outro. A sua essência é a relação do indivíduo com a realidade — uma questão de conformidade das suas ações com os requerimentos da sua própria vida e bem-estar — e é isso que define e dita os termos de uma relação apropriada com o outro.

Esse foco leva Rand à visão de que todo indivíduo tem o direito moral de viver para si mesmo — “de escolher o que compõe a sua felicidade privada, pessoal e individual, e trabalhar para alcança-las, desde que respeite esse mesmo direito dos outros.”[4] Um indivíduo não é um meio para o bem-estar dos outros; não é um recurso à disposição da sociedade. Um indivíduo moral respeita os direitos dos outros, e espera que os outros respeitem os seus. Não se sacrifica pelos outros, nem sacrifica os outros para si. Interage com os outros respeitando a sua autonomia, e respeitando o fato de que suas vidas e recursos são deles, e não seus ou da sociedade; não interage por força ou fraude, mas por persuasão e troca — trocando valor por valor, por consenso mútuo e para benefício mútuo. Essa é, para Rand, a forma apropriada de interação entre indivíduos civilizados, e é por isso que ela era uma defensora apaixonada do capitalismo laissez-faire — o sistema político que coloca os direitos individuais como seu princípio central e justificativa moral.

Retirando a ideia de sacrifício do escopo das relações humanas, o outro não é visto como algo a ser sacrificado, nem como algo pelo que se sacrificar, mas como um valor potencial. Outras pessoas podem ser uma grande fonte de valor — de valor pessoal e egoísta para a sua vida — não apenas como parceiros de negócio, mas também como amigos ou amantes, ou simplesmente como pessoas de caráter, que agradam e inspiram. Longe de haver um conflito entre o egoísmo racional e benevolência nas relações humanas, Rand defendia que o egoísmo racional é a base para a benevolência.

Infelizmente, não é assim que as ideias de Rand são tratadas na cultura popular. Muitos condenam Rand repetidamente por defender o “egoísmo” — sem explicar a sua perspectiva original quanto ao significado de ser “egoísta”, ou porque ela considera (contraintuitivamente) que o egoísmo é uma virtude moral. Da mesma forma, muitos a condenam por falar que o altruísmo é um mal — sem explicar o que queria dizer por “altruismo” ou porque ela considera (contraintuitivamente) o altruísmo incompatível com a bondade, a boa vontade e o respeito pelos direitos dos outros.

Comentaristas que apresentam Rand dessa forma mantêm as noções convencionais de seus leitores confortavelmente intactas, distantes do contato com a formulação radical de Rand a respeito do autointeresse e de seu caráter moral. No fim, falham em explicar porque as obras de Rand continuam a prover inspiração moral a milhões de leitores ao redor do mundo.

Meu ponto aqui é que, ao explorar que Rand de fato escreveu, encontramos uma pensadora original e desafiadora, com uma concepção nova e nobre de vida moral — uma que, no mínimo, oferece uma alternativa valiosa à moralidade convencional da nossa cultura[5].

Nota do autor: Esse artigo é uma versão atualizada e expandida de um ensaio que escrevi a convite dos editores da De Filosoof, revista trimestral do Departamento de Filosofia e Estudos Religiosos da Universidade de Utrecht, na Holanda. O ensaio “Ayn Rand: Um Novo Conceito de Egoísmo”, que começa na página 16 da edição de janeiro de 2016 da revista está disponível aqui.

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Publicado originalmente em New Ideal.

Traduzido por Bill Pedroso.

Revisado por Matheus Pacini.

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[1]The Goal of My Writing,” presente na obra The Romantic Manifesto.

[2] Em Objectivism: The Philosophy of Ayn Rand, (1991), Leonard Peikoff nos apresenta de forma magistral a filosofia de Ayn Rand enquanto sistema de ideias. Para encontrar as análises de Rand sobre questões culturais, um bom começo é Ayn Rand at the Ford Hall Forum, uma coleção de palestras gravadas no Ford Hall Forum, em Boston. Trabalhos acadêmicos recentes a respeito de Rand incluem: Foundations of a Free Society: Reflections on Ayn Rand’s Political Philosophy (2019), de Gregory Salmieri e Robert Mayhew; A Companion to Ayn Rand (2016), de Allan Gothelf e Gregory Salmieri; Concepts and Their Role in Knowledge: Reflections on Objectivist Epistemology (2013), de Allan Gothelf e James G. Lennox; Metaethics, Egoism, and Virtue: Studies in Ayn Rand’s Normative Theory (2011), de Allan Gothelf e James G. Lennox; Ayn Rand’s Normative Ethics: The Virtuous Egoist (2006) e Viable Values: A Study of Life as the Root and Reward of Ethics (2000), de Tara Smith; as coleções editadas por Robert Mayhew’s para a Lexington Press: Essays on Ayn Rand’s “We the Living, 2nd ed. (2012); Essays on Ayn Rand’s “Atlas Shrugged, (2009); Essays on Ayn Rand’s “The Fountainhead (2007); e Essays on Ayn Rand’s “Anthem (2005)

[3] Para mais a respeito da ética de Rand ver A virtude do egoísmo (1964), em especial, a “Introdução”, “A ética objetivista,” e “Os conflitos de interesse entre os homens.”

[4] Textbook of Americanism,” em The Ayn Rand Column (1990 e 1991). Para mais informação sobre o conceito de direitos de Rand ver o ensaio Man’s Rights” em Capitalism: The Unknown Ideal

[5] O ARI Campus do Ayn Rand Institute possui informação adicional sobre a vida, os romances e a filosofia de Rand, contando com video-aulas, palestras em áudio e ensaios escritos.

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