O desastre químico em Bhopal – quem é o culpado?

O número estimado de mortos em consequência do desastre químico em Bhopal, Índia, no ano de 1984, é de 15 mil pessoas.

Contextualizando o caso, considere que o número estimado de mortos no desastre nuclear de Chernobyl, na União Soviética, foi de 4 mil; no vazamento radioativo em Fukushima, no Japão, em 2011, zero; e no acidente nuclear de Three Mile Island, nos Estados Unidos, também zero.

Numa sociedade altamente tecnológica, é essencial que aprendamos as causas dos desastres de maneira a corrigirmos nossos erros. A tecnologia reduz muitos dos riscos da vida cotidiana; porém, se não for bem-gerida, pode gerar outros riscos adicionais.

Considero o desastre de Bhopal como um caso essencial para análise e aprendizado. Um produto químico perigoso, o isocianato de metila (gasoso), utilizado na fabricação de pesticidas agrícolas, vazou e muitas pessoas morreram ou sofreram terríveis sequelas.

Infelizmente, a maioria das reflexões sobre o desastre de Bhopal demonstra um entendimento parcial ou — pior — uma cegueira ideologicamente motivada com respeito às partes-chave da história causal. Muitas reportagens tendenciosas dizem o seguinte: em nome do lucro, uma grande corporação norte-americana negligenciou a segurança; como resultado, muitas pessoas, em especial, pessoas pobres, foram mortas ou prejudicadas, e os executivos envolvidos nunca foram indiciados criminalmente. Tais relatos normalmente terminam com um clamor por mais reparações e ações judiciais em nome da justiça.

Justiça é algo totalmente necessário no caso de Bhopal — mas o que é mais necessário é jornalismo investigativo profissional. Então, consideremos oito fatores relevantes para a determinação da causa e o julgamento de responsabilidades.

1. A presença da Union Carbide Corporation (UCC) era regulada fortemente pelo governo indiano, e sua política industrial, agressiva e burocrática. A primeira-ministra Indira Gandhi e seu partido Congresso Nacional Indiano (CNI) tinham há muito dominado a política indiana e estavam perseguindo uma filosofia econômica explicitamente socialista.

Em 1969, por exemplo, a maioria dos bancos foi nacionalizada. O desempenho econômico geral da Índia era consistentemente ruim, e isso contribuiu para diversas crises políticas. A Srta. Gandhi e os membros de seu partido alegavam que uma conspiração estrangeira — liderada pela CIA — trabalhava para minar o seu governo. Seu regime lutou vigorosamente contra a revolta da população.

Na década do desastre em Bhopal, às vezes chamada de Capítulo Negro da Índia, a nação sofreu com fraude nas eleições, censura nos jornais, prisões e mortes de oponentes políticos, capitalismo de compadrio, e mais concentração de poder nas mãos do partido político da situação.

De 1975 a 1977, enquanto o projeto da planta em Bhopal estava sendo finalizado, a lei marcial foi imposta na Índia — uma suspensão da democracia por 21 meses.

2. A UCC operava na Índia desde 1934 por meio de uma subsidiária, a Union Carbide India Limited (UCIL). Frente ao ambiente político na Índia, a nova planta em Bhopal deveria ser um novo tipo de parceria público-privada.

3. Quando, em 1969, a UCIL propôs construir uma nova planta para a produção de pesticidas agrícolas, seu plano inicial era importar produtos químicos perigosos já sob a forma de compostos, processando na Índia apenas pesticidas mais seguros e diluídos. Dado o nível geral de competência técnica na Índia da época, o julgamento da UCC foi que importar os produtos químicos seria mais seguro e mais barato.

No entanto, o governo indiano ignorou tal decisão e obrigou a UCIL a produzir os pesticidas do zero. O governo estava perseguindo uma política de autossuficiência e queria um produto “100% nacional”, ancorado na importação de tecnologia estrangeira para a Índia e treinamento de indianos para utilizá-la. No caso dos pesticidas que a UCIL pretendia produzir, isso exigia o armazenamento e manuseio de grandes quantidades do perigoso o isocianato de metila em Bhopal.

4. Outro fator complicador foi que, em 1974, o governo indiano tinha lançado seu Foreign Equity Regulation Act (Lei de Regulação sobre o Patrimônio Estrangeiro, tradução livre). Esse estatuto regulamentava que nenhuma companhia estrangeira poderia deter mais de 40% de uma companhia indiana. A UCC não queria reduzir sua participação para tal porcentagem.

As partes chegaram a um acordo: o governo concedeu uma exceção à UCC, permitindo-lhe manter 50,9% da UCIL, enquanto que a UCC concordou em produzir o isocianato de metila na Índia através da UCIL. Várias entidades controladas pelo governo indiano detinham os outros 49,1%.

A questão do terreno também fazia parte do negócio: o terreno sobre o qual a planta foi construída era de propriedade do estado indiano de Madhya Pradesh, e como parte do acordo geral, a UCIL arrendaria o terreno do governo.

5. Para o projeto da planta, permitiu-se à corporação-irmã UCC submeter diretrizes generalizadas com respeito aos sistemas de segurança. Novamente, todavia, em nome da autossuficiência nacional, o governo indiano deliberou que consultorias indianas fizessem o projeto destas instalações.

6. Sobre quem administraria e operaria a planta: os vários níveis de governo — nacional, estadual e local — também propunham programas de ação afirmativa. O efeito da ação afirmativa foi substituir os especialistas estrangeiros da UCC nas áreas de engenharia, química e administração por profissionais locais. Previsivelmente, muitos dos profissionais locais estavam despreparados, e muitos, por incrível que pareça, eram familiares ou amigos de oficiais do governo indiano encarregados da regulamentação da fábrica.

7. A decisão de instalar a planta petroquímica de Bhopal em meio a um bairro residencial, e perto de um grande centro de transporte, foi do governo indiano. O governo local também encorajou mais pessoas a se mudarem para lá por meio de políticas de zoneamento, inclusive fornecendo empréstimos para construção de casas perto da planta fabril.

8. Em contraste, a UCC operava outra planta, nos Estados Unidos, localizada em Institute, West Virginia, que também produzia o mesmo pesticida. Na planta norte-americana, todos os sistemas de segurança eram instalados, automatizados, e monitorados no nível máximo. Componentes defeituosos eram substituídos, auditorias reguladores de segurança eram feitas, e as recomendações dos auditores eram seguidas à risca. Mas não na Índia. Em ambos os casos, a mesma empresa-mãe era responsável e a mesma tecnologia geral era utilizada — mas uma planta funcionava de forma eficiente e segura, enquanto a outra era um desastre.

Em tempo: Bhopal é um exemplo clássico de economia mista ou parceria público-privada. Em um ambiente político-econômico corrupto, desastres são inevitáveis. E quando os desastres acontecem, é preciso encontrar bodes expiatórios. Quem é jogado aos leões ideológicos? Quem perde no imbróglio legal decorrente?

Precisamos fazer melhor que encontrar bodes expiatórios e encobrir os culpados. Bhopal é um caso importante do qual aprender, e é crucial levar em conta todos os fatores relevantes, muitos dos quais são omitidos pelo jornalismo tendencioso da atualidade.

Então, uma série de questões surgem:

  • Até que ponto isso foi um problema corporativo, e até que ponto foi um problema governamental?
  • O desastre de Bhopal condena executivos da empresa ou burocratas do governo?
  • Esse desastre foi resultado da busca imoral pelo lucro ou por cotas/políticas imorais étnico-raciais?
  • A política industrial socialista ou a política industrial capitalista é culpada?

Em meu julgamento, todas as partes envolvidas foram e são culpadas:

Culpamos os executivos da UCC nos Estados Unidos por estarem dispostos a negociar com um governo corrupto? Sim, sem dúvida.

Culpamos a administração local da UCIL, com sua mescla de gerentes e técnicos indianos e estrangeiros por incompetência e negligência? Sim, definitivamente.

Culpamos os governos local, estadual e nacional indianos por colocarem a política acima da segurança e da racionalidade econômica? Sim, absolutamente.

Podemos afirmar quem é o maior culpado? Sim, podemos: a parte com maior poder é sempre a mais responsável por como tal poder é utilizado.

O notável teorista político Francis Underwood certa vez disse a um amigo empresário bilionário:

Em qualquer interação governo-empresa, é o governo que tem o poder de polícia e do exército a seu dispor. Na Índia, a corporação é responsável por como utiliza seu poder — mas os vários níveis do governo indiano eram as partes mais poderosas na série de compromissos e evasões “negociados” que levaram ao desastre em Bhopal.

Além da lição política, existe uma lição jornalística do caso Bhopal para cidadãos e analistas políticas do mundo tecnológico. Existem exceções na cobertura do caso, mas precisamos nos tornar mais profissionais no que diz respeito à investigação e à análise dos fatos. Há muito em jogo.

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Publicado originalmente em EveryJoe.

Traduzido por Matheus Pacini.

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