O capitalismo precisa de um argumento moral: carta de Ayn Rand a Leonard Read sobre a fundação da FEE (1946)

Você entende que a causa dos problemas do mundo reside apenas na ignorância das pessoas sobre economia: e que, portanto, a forma para curar o mundo é ensiná-las o conhecimento econômico adequado. Isso não é verdade – portanto, seu programa não funcionará. Você não pode prover a cura com o diagnóstico errado.

A raiz de todo o desastre moderno é filosófica e moral. As pessoas não estão abraçando o coletivismo porque aceitaram má teoria econômica. Elas estão aceitando má teoria econômica porque abraçaram o coletivismo. Você não pode reverter causa e efeito, tampouco pode destruir a causa ao combater o efeito. Isso é tão fútil quanto tentar eliminar os sintomas de uma doença sem atacar os seus germes.

A economia marxista (coletivista) já foi atacada, refutada e desacreditada por completo. A economia capitalista (individualista) nunca o foi. Mesmo assim, as pessoas aceitam o marxismo. Se analisarmos a questão mais de perto, veremos que a maioria das pessoas sabe, embora vaga e confusamente, que a economia marxista não faz sentido. Ainda assim, isso não as impede de defendê-la. Por quê?

A razão é que a economia tem o mesmo lugar em relação ao conjunto da vida da sociedade que os problemas econômicos têm na vida de um indivíduo. Um homem não existe apenas para receber um salário; ele recebe um salário para existir. Suas atividades econômicas são um meio para um fim; o tipo de vida que ele deseja levar, o tipo de propósito que deseja realizar com o dinheiro que recebe determina qual trabalho ele escolherá fazer ou mesmo se ele escolherá trabalhar ou não. Um homem totalmente desprovido de propósito (seja ambição, carreira, família ou etc) pára de funcionar no sentido econômico. É aí que ele se torna um vagabundo na sarjeta. A atividade econômica por si só nunca foi o fim ou a força motriz de ninguém. E não creio que nenhum tipo de lei de autopreservação funcionaria aqui, isto é, que um homem produziria apenas para comer. Ele não o fará. Para a autopreservação se afirmar, deve haver alguma razão para o “eu” desejar ser preservado. Qualquer coisa que ele aceitou, consciente ou inconscientemente, por meio da rotina ou escolha como seu propósito de vida, determinará sua atividade econômica.

E o mesmo se aplica à sociedade e às convicções dos homens sobre o tipo de economia adequada com vistas à prosperidade dessa sociedade. O que a sociedade aceita como seu propósito e ideal (ou, para ser exato, aquilo que os homens creem que a sociedade deveria aceitar como seu propósito e ideal) determina o tipo de teoria/sistema econômico defendida e praticada pelos homens, afinal, a economia é só um meio para um fim.

Quando o objetivo social escolhido é, por sua própria natureza, impossível e impraticável (como o coletivismo), é inútil informar às pessoas que os meios que escolheram para alcançá-lo são inexequíveis. Tais meios acompanham tal objetivo; não existem outros. Você não pode fazer os homens abandonarem os meios até tê-los persuadido a abandonar o fim/objetivo.

Agora, a escolha de um propósito pessoal ou de um ideal social é uma questão de filosofia e teoria moral. É por isso que, se alguém deseja curar um mundo decadente, deve começar com princípios morais e filosóficos. Nada menos que isso funcionará.

O ideal moral e social pregado por todos hoje (e, não menos, pelos conservadores) é o ideal do coletivismo. Diz-se aos homens que devem existir para servir aos outros; que o “bem comum” é o único objetivo de sua vida, e a única justificativa para sua existência; que ele é responsável por seu irmão; que todo mundo é responsável pelo bem-estar de todo mundo; e que os pobres devem ser a preocupação principal da sociedade, o bezerro de ouro, o “deus” a ser servido por todos.

Essa é a premissa moral aceita pela maioria das pessoas, de todas as classes, de todos os níveis educacionais ou filiadas a quaisquer partidos políticos.

Como você os convencerá a aceitar a economia capitalista? Como você os fará aceitar como morais, adequadas e desejáveis concepções como ambição pessoal, concorrência econômica, busca do lucro e propriedade privada?

Não funcionará! O ideal moral deles definiu essas concepções como malignas e imorais.

Aqui está um dilema em que o público se encontra ao ouvir nossos conservadores: diz-se ao público que, no final das contas, o coletivismo é um ideal nobre e desejável, porém a economia coletivista é impraticável. Para termos uma economia funcional – que é o capitalismo – devemos nos resignar com uma sociedade imoral, “individualista”. Parece só haver uma escolha: você pode ser moral ou prático, mas não ambos. Dada tal escolha, os homens sempre escolherão ser morais, porque é absurdo esperar que eles escolham aquilo que, pela própria asserção do orador, é maligno. Os homens podem estar errados sobre o que pensam ser bom (e quão errado têm estado, e as mentiras que abraçam em seu autoengano!), mas não aceitarão o mal conscientemente e por definição.

Tampouco aceitarão a ideia de que um ideal moral é impossível, que não pode ser alcançado na prática. (E estão certos aqui – é uma proposição totalmente antinatural). Portanto, é totalmente inútil informá-los que a economia marxista é impraticável, enquanto você, concomitantemente, lhes diz que o marxismo é nobre. Eles responderão: “bem, se esse é o ideal, e não pode ser alcançado através da economia capitalista, que se rale o capitalismo!” Se a economia marxista não funcionar, buscaremos outra coisa que funcione. Precisamos encontrá-la. Então, continuaremos experimentando. Pelo menos, o marxismo tenta na direção correta, enquanto o capitalismo nem tenta alcançar o ideal coletivista. A economia capitalista nem tenta nos oferecer uma solução.” Quantas vezes você já ouviu isso?

Agora, a posição mais fútil e risível é tratar a questão como feito pelos conservadores. Podemos chamá-la de “filosofia mista”. É um paralelo da teoria da “economia mista”, igualmente inalcançável, boba e desastrosa. É a ideia de que o capitalismo pode ser moralmente justificado sob uma premissa coletivista, defendido com base do “bem-comum”. Prossegue assim: “Queridos vermelhos, nosso objetivo, como o seu, é o bem-estar dos pobres, a riqueza generalizada, e o padrão de vida mais elevado para todos – então, por favor, deixem os capitalistas trabalharem, pois o sistema capitalista alcançará esses objetivos para vocês. Ele é, na verdade, o único sistema que pode alcançá-los.”

Essa última afirmação é verdadeira e tem sido provada e demonstrada na história, e, mesmo assim, não conseguiu e nem conseguirá convertê-los ao sistema capitalista, afinal, o seu argumento é autocontraditório. Não é o propósito do sistema capitalista preocupar-se com o bem-estar dos pobres; não é o propósito de um empreendedor distribuir benefícios sociais; um industrialista não opera uma fábrica com o propósito de gerar empregos. Um sistema capitalista não poderia funcionar sob tais premissas.

Os benefícios econômicos que a sociedade como um todo, incluindo os pobres, recebem do capitalismo são consequências estritamente secundárias (que é a única forma pela qual resultados sociais podem se concretizar), e não como seus objetivos primários. O objetivo primário que faz o sistema funcionar é o motivo do lucro pessoal, privado e individual. Quando tal motivo é declarado imoral, todo o sistema se torna imoral, e o motor do sistema pára de funcionar.

É inútil mentir sobre a essência do capitalismo. O terrível odor da hipocrisia que acompanha tal “filosofia mista” é tão óbvio e tão forte que fez mais para destruir o capitalismo do que qualquer teoria marxista. Ela matou o respeito pelo capitalismo. À luz da realidade, sem necessidade de análise profunda, fez o capitalismo parecer totalmente falso.

O efeito é precisamente o mesmo que o produzido por pessoas como Willkie, Dewey e todo o resto de “republicanos do bem-estar”. Não subestime o bom senso do “homem comum”, e não o culpe por ignorância. Ele pode, talvez, não ser capaz de detectar as inconsistências de Willkie ou Dewey – mas ele sabia que não prestavam. Ele não consegue se desenredar da contradição filosófica da defesa do capitalismo através do “bem comum” – mas ele sabe que é falsa.

Se existe algo mais ofensivo e absurdo que dizer a um desempregado que o milionário que está promovendo uma festa regada a champanhe em seu iate está fazendo isso para ele, em benefício do trabalho e pelo bem comum da sociedade? Você pode realmente culpar o trabalhador se ele exigir que o iate seja confiscado? É a ignorância econômica que o impulsionar a fazê-lo?

Quanto mais propaganda os conservadores fizerem em prol da economia capitalista enquanto, ao mesmo tempo, pregarem coletivismo moral e filosoficamente, mais pregos colocarão no caixão do capitalismo.

É por isso que creio que apenas a educação econômica não seja suficiente. É por isso também que você verá difícil despertar o interesse das pessoas no tópico. Acredito que esteja consciente dessa dificuldade; seu prospecto mostra ansiedade no escopo de “criar um desejo maior pelo entendimento econômico”. Você não será capaz de criá-lo.

O grande erro aqui é supor que a economia é uma ciência que pode ser isolada de princípios morais, filosóficos e políticos, e considerada como um tópico em si, sem relação a eles. Ela não pode.

O melhor exemplo disso é o livro Governo Onipotente de Mises. Isso é precisamente o que ele tentou fazer, de forma muito objetiva, consciente e acadêmica. E ele fracassou, mesmo que os fatos e as conclusões econômicas sejam, praticamente, incontestáveis. Ele fracassou em apresentar um argumento convincente em pontos cruciais, onde sua economia tocou questões morais (todo tipo de análise econômica, cedo ou tarde, toca), ele caiu em contradições e outras coisas sem sentido. Ele provou, sim, que a economia coletivista não funciona. Porém, fracassou em converter um único coletivista.[1]

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Traduzido por Matheus Pacini.

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[1] RAND, Ayn. Letters of Ayn Rand. 1997.

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