Não se resigne ao sofrimento, lute contra ele

Não se resigne ao sofrimento, lute contra ele

Quando esse artigo for publicado, algo entre 250 e 500 mil pessoas terão morrido na pandemia do coronavírus em todo o mundo. As imagens de caminhões frigoríficos recolhendo cadáveres nos hospitais de Nova York chocaram até os mais otimistas. Adicione crise econômica e convulsão social à pandemia, e é compreensível que muitas pessoas, sejam otimistas ou pessimistas, parem para refletir sobre sua visão do que é importante na vida.

Esse fato não escapou aos olhos de filósofos e pensadores religiosos. Eles entraram no debate público sobre como devemos processar o sofrimento e a morte generalizados. Vale destacar uma resposta que surgiu, mesmo que seja só porque deve ser questionada por quem busca sentido em meio à névoa de pessimismo.

Curvando-se diante do sofrimento

Considere, primeiro, os pensadores religiosos. No jornal The New York Times, o colunista Ross Douthat nos insta a analisar o ponto de vista cristão sobre o significado do sofrimento – como a ideia de que é um presente, pois suportá-lo nos permite demonstrar nossa bondade.[1] Mesmo assim, ele leva a sério quem diz que não existe um propósito positivo óbvio alcançado através do sofrimento. Num sermão recente, o papa Francisco não invocou nenhum positivo: enfatizou, apenas, como o sofrimento destrói o que ele considera ser negativo. A pandemia “expõe nossa vulnerabilidade e revela certezas falsas e supérfluas em torno das quais construímos nossas rotinas diárias”[2].  Na opinião dele, não podemos nos salvar; logo, devemos ter fé de que o Senhor nos salvará.

Curiosamente, pensadores seculares promovem uma linha semelhante. Em uma matéria do New York Times, o popular filósofo Simon Critchley insiste que não devemos nos rebelar contra nossa mortalidade; contudo, a partir desse ponto, deduz que há liberdade em acolher a aproximação da morte, em aceitar uma ansiedade penetrante acerca de nossa mortalidade. “Os seres humanos são deploráveis”, lembra Pascal. “Somos criaturas impotentes, frágeis, vulneráveis e dependentes”.[3] Critchley diz que há uma força tipicamente humana em ter conhecimento de nossa mortalidade, mas não explica a natureza dessa força. Roy Meredith, na Quillette, invoca a antiga visão estoica sobre o que pode ser essa força: não devemos tentar nos rebelar contra a mortalidade; em vez disso, devemos parar de querer a alegria que não podemos obter. Quando fizermos isso, poderemos praticar um certo heroísmo ao ficar em casa sentados no sofá sob quarentena.[4]

Todas essas visões enfatizam a virtude de aceitar as causas do sofrimento. Nenhum deles se incomoda em exaltar as virtudes da luta para eliminar essas causas.

Muitas vezes, pensadores que aconselham as virtudes da aceitação invocam a “oração da serenidade”: “Deus me conceda a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem para mudar as coisas que posso e sabedoria para saber a diferença”. Há muita sabedoria neste ditado, mesmo para quem não acredita em um Deus. Mas a atitude que pensadores – tanto religiosos como seculares – compartilham aceita apenas a primeira parte desse ditado, ignorando o resto; o resultado é uma fetichização do sofrimento.

A mente eficaz contra o sofrimento

É óbvio que ninguém pode mudar o fato de sua própria mortalidade. Mas isso não significa que o medo da morte por uma causa específica seja irracional, menos ainda que devemos “acolher a aproximação da morte”. Se quisermos aproveitar ao máximo nossa chance de viver uma vida longa e produtiva, devemos tomar medidas para evitar ameaças contra ela.

Podemos ficar tentados a absolver as religiões e filosofias antigas por pensar que não fazia sentido exercer a coragem de mudar o mundo a nosso favor. Seus criadores viviam em um mundo cheio de superstição, em que o conhecimento científico trabalhava sobretudo com curiosidades intelectuais de pouca utilidade à vida prática. Orar e aceitar pareciam as únicas alternativas. Mas os pensadores de hoje não têm desculpa para pensar que os seres humanos não têm controle sobre o quão frágil e vulneráveis continuamos sendo.

Considere um símbolo eloquente do poder humano sobre a natureza, mesmo diante de uma pandemia. Durante a praga de Londres em 1665, Isaac Newton – embora estivesse em quarentena em casa – inventou o cálculo, descobriu princípios básicos da óptica e estabeleceu as bases de sua Lei da gravitação universal. Para esta última, foi preciso ver como os movimentos dos planetas, que já eram observados pelos astrônomos há milênios, forneciam dados para leis de movimento que também regem o movimento dos objetos na Terra. Suas descobertas revolucionaram a ciência, abrindo caminho para a Revolução Industrial que, de tantas formas, melhorou o padrão de vida, incluindo a erradicação de doenças.[5]

A medicina moderna, com a criação de vacinas, antitoxinas ou inúmeras outras inovações, salvou a vida de bilhões de pessoas que poderiam ter sido vítimas de uma praga ou de outra. Um grupo de pesquisadores estima que menos de cem cientistas contribuíram com inovações médicas que salvaram mais de cinco bilhões de vidas[6]. Estima-se que, sozinho, o cientista Karl Landsteiner salvou um bilhão de vidas com a descoberta dos grupos sanguíneos, que permite a transfusão de sangue segura.[7] A partir dessas e outras inovações, a expectativa de vida no Ocidente moderno aumentou de cerca de 35 anos, em 1760, para 75 ou 80 anos hoje.[8]

Quem vive em um mundo com tamanhas realizações científicas e admitem que a única distinção do ser humano é conhecermos nossa vulnerabilidade é propositalmente cego. O sofrimento não precisa ser aceito como parte inevitável da vida. A mente humana eficaz tem o poder de diminuir seu papel.

Uma filósofa desafia o culto

Já analisamos o que alguns pensadores religiosos e seculares disseram. Agora, analisaremos alguém que nadou contra a corrente. Embora fosse ateia, Ayn Rand endossou a mensagem secular e filosófica contida na oração da serenidade – uma mensagem ignorada pelo culto ao sofrimento. Ela exaltou o poder da mente humana para mudar o mundo através da ciência, da tecnologia e da indústria, estimulando-nos a ter coragem suficiente para mudá-lo.

Mas o poder da mente humana não é mágico, como o de Deus em quem o Papa Francisco exige que tenhamos fé. Esse poder é mais bem descrito em um ditado de outro “Francisco”: Francis Bacon. “A natureza, para ser comandada, deve ser obedecida.”[9] As leis da natureza são o que são, independentes das esperanças ou desejos de qualquer pessoa. Mas se descobrirmos essas leis, se entendermos as causas da natureza, podemos reorganizar suas peças de forma a gerar os efeitos desejados.[10] Quando a natureza toma seu curso, as doenças se espalham e geram sofrimento maciço. Mas cientistas que identificam patógenos podem criar vacinas e outros tratamentos, fazendo com que esse sofrimento diminua.

Com isso em mente, Rand disse que quem lamenta a futilidade da ação humana e a ineficácia do conhecimento humano nos rouba a serenidade e coragem descritas pela oração. E em suas anotações para os rascunhos de A revolta de Atlas, ela disse o seguinte, que eu acredito falar diretamente ao culto do sofrimento:

O homem não existe para sofrer. O sofrimento é uma parte acidental e “marginal” de sua existência, que ele deve combater para ter a liberdade de ser feliz, que ele deve superar o mais rápido possível – e não passar a vida buscando, tornando-o o objetivo de sua vida. O sofrimento de natureza física que ameaça os homens é insignificante, comparado ao sofrimento que ele causa a si mesmo e aos outros. Se o homem funcionasse corretamente no campo aberto a ele e determinado por ele – o campo de sua escolha, seu livre-arbítrio, seu pensamento e suas ações –, eliminaria a maior parte, talvez até todo, o sofrimento “físico” causado pelos acidentes de sua natureza física.[11]

O sofrimento existe, e nem sempre é o produto de decisões erradas. Há desastres naturais, acidentes e vírus destrutivos. Quando encaramos dor e perda, resultante de desastres naturais ou causadas pelo homem, podemos ser arrebatados, e enquanto experimentamos isso, pode ser difícil não vê-las como a força que controla a vida. Mas se queremos viver uma vida realmente humana, sem nos escondermos da tempestade como animais, da forma que o culto ao sofrimento quer que façamos, devemos lembrar que é possível ir além. O que importa na vida é a felicidade para a qual o sofrimento é um obstáculo. Isso deve nos dar motivo para procurar formas de superá-lo.

A maioria de nós não é um gênio capaz de encontrar a cura ou uma vacina para o coronavírus, mas ainda podemos ser inspirados pelos heróis entre nós. Pense nos médicos que trabalham na linha de frente da pandemia, nos empreendedores mantendo a tecnologia e a infraestrutura que impedem que nossa economia afunde completamente, e nos cientistas trabalhando por uma cura. Sua eficácia nos beneficia diretamente, mas sua coragem diante de uma crise deve ser um farol psicológico. No mínimo, deve romper a ilusão de que há alguma virtude em desistir, em aceitar o sofrimento como nosso quinhão, em nos contentarmos em ficar em casa sentados no sofá.

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Publicado originalmente em The New Ideal.

Traduzido por Matheus Pacini.

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[1] Douthat, Ross. “The Pandemic and the Will of God,” New York Times, 11 de abril de 2020.

[2] Pope Francis, “Extraordinary Moment of Prayer,” Vatican.va. 27 de março de 2020.

[3] Critchley, Simon. “To Philosophize Is to Learn How to Die,” New York Times. 11 de abril de 2020.

[4] Roy Wayne Meredith III, “Sickness and Stoicism,” Quillette.com. 4 de abril de 2020.

[5] Para mais sobre a conexão entre a Revolução Científica e a Revolução Industrial, consulte Crawford, Jason Crawford. “What Was the Relationship of the Scientific Revolution to the Industrial?” RootsofProgress.org. 29 de outubro de 2017 e Razzell, P. E. “An Interpretation of the Modern Rise of Population in Europe’ —a Critique,” Population Studies 28 (1), Março de 1974, pp. 5–17 (esp. 15–16).

[6] Steven Pinker dá uma lista interessante dos heróis médicos e dos números de vidas que salvaram.

[7] Pinker, Enlightenment Now, 64, citing ScienceHeroes.com.

[8] Pinker, Enlightenment Now, 54, citing Our World In Data.

[9] Ver Bacon, Francis. Novum Organum, Book I, Aphorism 129.

[10] Ver Ayn Rand, “The Metaphysical Versus the Man-Made,” Philosophy: Who Needs It. New York: Signet, 1984), especialmente pp. 34–38.

[11] Rand, Ayn. Entrada em seu diário de 19 de maio de 1949. Ayn Rand Papers, 06A 158_06A_002_008 and Folder 06A 158_06A_002_009. Journals of Ayn Rand. New York: Dutton, 1997. p. 599.

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