Immanuel Kant: o inimigo intelectual de Ayn Rand

Ayn Rand considera Immanuel Kant (1724-1804) e sua filosofia como malignos, e condena o que ela entende serem as intenções, os objetivos, os métodos e as conclusões de seus argumentos filosóficos. Ela acusa Kant de odiar a vida, o homem e a razão. Rand observou que, desde Kant, a tendência dominante na filosofia tem sido destruir a mente humana – e uma filosofia assim prega o ódio pelo homem, sua vida e todos os valores humanos.

Nos ensinamentos de Kant, Rand viu desprezo e repulsa pelo forte, pelo hábil, pelo bem-sucedido, pelo virtuoso, pelo confiante e pelo feliz. É natural, então, que o sistema filosófico da própria Rand tenha buscado exaltar a felicidade, respondendo e se opondo às teorias epistemológica e ética de Kant. Não surpreende, então, que Tibor Machan tenha intitulado o capítulo sobre Kant em seu livro Ayn Rand de “O Moriarty de Rand”. O propósito desse ensaio é explicar as razões por trás do ódio de Rand por Kant. Para fazê-lo, as ideias de Kant serão expostas segundo a interpretação de Rand.

Kant responde a Hume

Para Kant, o principal problema filosófico era salvar a ciência do cético David Hume (1711-1776), quem tinha declarado que a mente humana era apenas um conjunto de percepções, dentre as quais não havia qualquer relação causal. Hume argumentava que qualquer conhecimento advém da experiência, e que nós somos incapazes de ter a “experiência” da causalidade. Ele explicou que a causalidade, assim como as entidades, são “verdadeiras” apenas por associação e pela crença tradicional. A causalidade seria apenas o hábito humano de associar coisas por tê-las percebido juntas no passado. Segundo Hume, não se pode inferir conexões entre objetos e eventos por conta da percepção constante de prioridade, continuidade e coexistência.

Hume argumentava que a experiência não nos dá a ideia de necessidade. Ele dizia que as coisas são contingentemente verdadeiras[1], mas que poderiam ser de outra forma, isto é, podemos imaginá-las sendo diferentes do que foram no passado. Só porque algo aconteceu de uma certa forma no passado não significa que deve ocorrer do mesmo jeito no futuro. Não podemos afirmar com certeza que existem objetos, identidade, causalidade, ordem e outras leis da natureza. A conclusão de Hume é que somos forçados a ser céticos. Assim, a ciência é destruída em sua base, pois ela lida com relações causais.

David Hume sustentou que o raciocínio, seja indutivo ou dedutivo, não pode prover aos homens com conhecimento real, correto ou necessário. Ele afirma jamais ter visto “causalidade” ou percebido diretamente o “eu” ou a “consciência”. De acordo com ele, os homens percebem apenas um fluxo efêmero de sensações e sentimentos. Ele também observou que a existência aparente de algo não garante que este algo lá estará no instante seguinte. Hume concluiu, dessa forma, que a consciência era limitada ao nível perceptual.

Movido pelo desejo de refutar as conclusões de Hume, Kant buscou a manifestação perceptual da necessidade. Para invalidar as conclusões de Hume, era essencial que Kant construísse uma estrutura filosófica formidável.

A dicotomia analítico-sintética

Kant dividiu as proposições em dois tipos: analíticas, que são verdadeiras por definição, e sintéticas, que explicitam fatos empíricos. Ele sustentou que proposições analíticas são logicamente verdadeiras, mas não apresentam nenhuma informação sobre a realidade; enquanto que proposições sintéticas expõem informação sobre a realidade, mas não podem ser provadas logicamente. Segundo ele, verdades analíticas podem ser validadas através da análise dos significados de seus componentes, enquanto proposições sintéticas não podem ser validadas dessa forma. Verdades analíticas são necessárias, lógicas e tautológicas, enquanto verdades sintéticas são contingentes, factuais e não estão sujeitas à prova. Segundo Kant, uma proposição sintética não se pode provar irrefutável.

Para Kant, verdades analíticas são lógicas e podem ser validadas de forma independente da experiência. Essas proposições são a priori, e não empíricas. Por outro lado, ele diz que proposições, ou verdades, sintéticas são empíricas, a posteriori, e dependem da experiência para serem validadas. Ele argumenta que as proposições analíticas não fornecem informação sobre a realidade, e que as sintéticas são factuais, porém incertas, improváveis e contingentes.

Segundo Rand, não há base para a diferenciação entre proposições analíticas e sintéticas. Sua teoria dos conceitos acaba com a ideia kantiana de dicotomia analítico-sintética. Para ela, conceitos expressam classificações de existentes observados de acordo com as suas relações com outros existentes observados. Rand explica que um conceito se refere aos existentes reais que ele integra, incluindo todas as suas características conhecidas em um determinado momento, e aquelas ainda não conhecidas. Ela argumenta que conceitos subsumam todos os atributos dos existentes aos quais eles se referem, e não apenas aos incluídos em sua definição. Sua teoria objetiva dos conceitos é a sua resposta à dicotomia analítico-sintética.

As verdades analíticas de Kant são, na verdade, contingentes àquilo que está incluído no significado do contexto. A forma como Kant formula sua teoria permite que alguém valide um conceito simplesmente incluindo um atributo ao seu significado. Escolhas são feitas a respeito de quais características são incluídas em uma definição, e quais não o são. O fato de incluir ou não uma característica específica fica por conta de quem define, e ele, portanto, determina se essa característica é necessária ou contingente!

A natureza do conhecimento a priori

Em sua tentativa de refutar Hume, Kant declarou que existem categorias sintéticas a priori, ou conceitos inatos à mente humana. Kant argumentou que esses conceitos são características inerentes à mente humana. Os conceitos básicos do homem (e.g. tempo, espaço, entidade, causalidade, etc.) não seriam derivados da realidade ou da experiência, mas teriam sua raiz em um sistema automático de filtros em sua consciência[2]. Estes filtros, que ele chama de categorias ou formas da sensibilidade, ditam sua própria estrutura na percepção e concepção do mundo externo, impossibilitando assim que o indivíduo perceba e conceba o mundo de qualquer outra forma que não aquela que ele, de fato, percebe e concebe.

A realidade empírica, de acordo com Kant, se conforma à mente humana, que estabelece uma “grade”, consistindo nas categorias e intuições de tempo e espaço, sobre as “coisas-tal-como-são”. Como ninguém tem escolha sobre aplicar ou não essa grade à experiência, as pessoas não podem conhecer o mundo real, e podem apenas ter imagens tal como criadas pelas suas próprias mentes.

De acordo com Kant, o a priori inclui aquilo que está na mente da pessoa antes de ela ter qualquer experiência sensorial, além de qualquer julgamento que a mente possa fazer que não se baseie na experiência sensorial. As formas do espaço e tempo, bem como as categorias transcendentais são inatas à mente, e constituem suas estruturas anteriores à experiência. Kant diz que a experiência comum compartilhada por todos tem a aparência e as características que tem porque foi estruturada de uma certa forma pela mente humana.

Realidade fenomenal e numenal

Kant tentou demonstrar que o mundo que percebemos não é o mundo real[3]. O mundo real não inclui os conceitos de espaço, tempo, entidade, causalidade etc. da nossa espécie. Ele argumentou que o mundo fenomenal das aparências que percebemos é metafisicamente inferior ao mundo numenal da realidade verdadeira. O mundo numenal é o mundo das coisas-em-si-mesmas, da “verdade” e da realidade real.

Kant explica que o mundo fenomenal é o mundo da realidade física terrena, incluindo os sentidos e as percepções humanas, a razão e a ciência. Esse mundo fenomenal, tal como percebido pela mente humana, é uma distorção e uma representação enganosa do mundo real. Kant sustenta que o mecanismo que causa essa distorção é exatamente a faculdade conceitual do homem. Ele argumenta que aquilo que a mente humana percebe e concebe como o mundo não é o mundo tal como ele é, mas tal como ele aparenta para uma faculdade racional humana estruturada de uma forma específica.

O ataque de Kant à consciência

Kant lamenta o fato de que um indivíduo só pode perceber e compreender coisas através de sua própria consciência. Ele também explica que homens são limitados a uma consciência de natureza particular, que percebe e concebe por meios particulares. Para Kant, o conhecimento humano não é válido por ter uma identidade. Segundo ele, o conhecimento, para ser válido, não deve ser processado de forma alguma pela consciência. O critério de Kant para a verdade é perceber as “coisas em si mesmas”, de forma não processada pela consciência. Para Kant, apenas o conhecimento independente da percepção é válido. Infelizmente, esse conhecimento é impossível!

Ele argumenta que o conhecimento humano é subjetivo porque não é relativo às coisas “tais como são”. A verdade real não é acessível porque para conhecê-la, a pessoa teria que se relacionar com a realidade diretamente, sem depender de seu mecanismo conceitual. Para Kant, o real é o objeto “em si mesmo”, sem qualquer relação com um sujeito. Isso significa que a consciência ou a percepção das coisas não deve ser mediada por qualquer processo ou faculdade cuja natureza afete a aparência do objeto porque qualquer processo ou faculdade distorceria a percepção do indivíduo. De acordo com Kant, tudo que é relativo é meramente fenomenal, e tudo que é um objeto em relação a um sujeito é relativo. Kant busca um conhecimento que possa chamar de absoluto, puro, não qualificado ou diáfano.

Kant argumenta que a identidade – que é, por sua vez, a essência da existência – invalida a consciência. Qualquer conhecimento obtido por meio de um processo da consciência é inescapavelmente subjetivo e, portanto, não pode representar os fatos da realidade, justamente por ser processado ou alterado. Como toda consciência é uma relação entre um sujeito e um objeto, uma pessoa teria que se colocar fora de sua consciência para adquirir conhecimento real. Para saber o que é verdade, um homem deveria abandonar a sua própria natureza, o que é uma impossibilidade absurda. Conhecer a verdadeira realidade requer uma consciência não limitada por meios específicos de cognição. Esse é o critério ou objetivo do argumento de Kant.

Ayn Rand considera o argumento kantiano como um ataque a todas as formas de consciência. A consciência existe e, por existir, possui formas e meios particulares de cognição e é, portanto, invalidada por Kant como uma faculdade de cognição. A consequência inevitável disso é que, como o homem depende da forma como sua mente é constituída, sua mente é impotente, a realidade não é cognoscível, e o conhecimento é apenas uma ilusão. De acordo com Kant, se a consciência possui identidade própria, ela não pode perceber a identidade de nada externa a ela mesma. O argumento kantiano separa a razão da realidade. A razão, de acordo com Kant, é limitada, lida apenas com aparências e é incapaz de perceber a realidade, ou as “coisas tal como são em si mesmas”. A razão é impotente para lidar com as questões metafísicas essenciais da existência, que residem no mundo numenal não conhecível.

O truque de Kant

Para Kant, a estrutura cognitiva comum a todos os homens é o que cria o mundo fenomenal. A estrutura mental do homem é o que dá origem ao mundo empírico. Kant explica que as categorias ou conceitos formam um delírio coletivo do qual nenhum ser humano pode escapar. Essencialmente, o artifício de Kant envolve trocar o objetivo pelo coletivo ao propor a ideia de categorias mentais comuns, criando, assim, um mundo fenomenal coletivo. Ele também altera fundamentalmente a ideia da validade da razão, trocando a sua relação com o mundo objetivo por uma relação com o mundo ilusório coletivo. A realidade, tal como percebida pela mente humana, é uma distorção, e a mente humana é uma faculdade que distorce.

A preocupação de Kant é com julgamentos que possam ser conhecidos com certeza. Ele desqualifica a razão por conta de limitações a priori sobre o que é possível perceber pelo seu uso. Como as categorias da mente se limitam às aparências, o conhecimento sobre o mundo real é impossível. A inabilidade de conhecer a realidade leva ao relativismo e ao ceticismo.

Razão pura, dever e boa vontade

De acordo com Kant, o nível mais profundo da realidade é inacessível à racionalidade humana. Para ele, a certeza racional é impossível. Ele fala que, para “conhecer” a outra realidade, mais elevada, que é teleologicamente ordenada e isenta de tempo, espaço, causalidade, etc., o homem deve usar o seu sentimento, intuição, ou fé, que existem na forma de julgamentos ou intuições puras a priori. A solução de Kant foi tentar demonstrar que o “real” e o “dever” repousam em algo que chama de razão pura, que é metafisicamente intrínseca a todas as pessoas. Ele disse que o “real” e o “dever” são diferentes daquilo que nós conhecemos através da experiência. Kant argumenta que a intuição intelectual (i.e. razão pura) tem a função de acessar essas ideias a priori.        

Kant atribui às emoções do indivíduo o poder de conhecer o mundo numenal “não conhecível”, metafisicamente superior, através do meio indefinível que chama de “razão pura”. A razão pura reside em um inexplicável ou incompreensível instinto especial para o dever. O dever é o impulso categórico que o indivíduo “apenas conhece”. Kant considerava uma ação moral apenas se a pessoa que age o faz por causa de um sentimento especial de dever. A moralidade é, portanto, derivada de sentimentos advindos da dimensão numenal da realidade. O dever envolve inspiração suprida pela – ou que emana da – própria realidade numenal. Por conta de sua dependência do mundo numenal, Kant faz a moralidade parecer algo místico.        

De acordo com Kant, uma pessoa deve agir a partir do dever, o que, para ele, é um ato de puro altruísmo. O dever do indivíduo é se sacrificar para o dever, o que é, por sua vez, ditado pela razão pura. Deveres morais seriam imperativos categóricos que se mantêm para todos os seres racionais com certeza absoluta apesar dos seus desejos, características individuais e outros fatores vistos como contingentes. O princípio fundamental da moralidade de Kant, dessa forma, prende uma pessoa independentemente de qualquer preferência ou fim particular que ela possa ter. A moralidade kantiana diz respeito a ações que são apropriadas categoricamente, percebidas como boas em si mesmas. O dever é o impulso de agir por respeito à lei moral, e não pelos desejos ou inclinações do indivíduo.        

Kant declarou que a sua moralidade altruísta derivava da razão pura. Ele sustentou que apenas o “conhecimento” do conceito de dever a partir da razão pura pode dar origem à lei moral. Kant enxerga a moralidade como um conjunto de regras com origem na razão pura. Razão pura ou intuição intelectual são os meios usados para se adquirir conhecimento moral.

Kant sustenta que o ser humano deve fazer o que está de acordo com a boa vontade, e que o dever é inerente à razão pura. Para Kant, a boa vontade, que é a vontade de agir de acordo com o dever é, incondicionalmente, boa. Ele argumenta que a boa vontade, independente de quaisquer consequências, é um fim em si mesma.

De acordo com Kant, a moralidade tem a sua base na lei da vontade. Ele diz que uma ação é moralmente boa se ela advém da boa vontade. Uma vontade é incondicionalmente boa se ela advém puramente de uma sensação de dever e para o dever em si. Uma vontade, portanto, é algo que visa o dever apenas quando visa o respeito puro pela lei moral. A boa vontade do ser humano é primária, e agir por dever é o bem último.

Moralidade como a priori

O dever procede do a priori, e é intrínseco às estruturas da mente. Kant explica que a função da vontade do indivíduo é forçar obediência ao a priori. De fato, a dependência de Kant do a priori é um esforço para contornar a formulação de conceitos com base na observação, considerando certos conceitos (e.g. dever) como autoevidentes e independentes do contexto causal que existe na natureza. A declaração de Kant sobre a moral a priori necessita de uma perversão das funções humanas de cognição e avaliação.        

Kant separa a moralidade de qualquer preocupação ligada à existência do homem. Para Kant, a moralidade não tem qualquer associação com o mundo material, razão ou ciência. Ele afirma que a ação é moral apenas se a pessoa não tem qualquer desejo de tomá-la, agindo apenas a partir de um senso de dever, sem derivar nenhum tipo de benefício dessa ação. Kant transforma o dever moral em uma obrigação completamente independente dos desejos da pessoa, e desconectada de qualquer consideração factual, incluindo os fatos da natureza humana.

A rejeição kantiana do autointeresse

A filosofia moral de Kant priva o autointeresse de toda e qualquer honra. A rejeição do autointeresse é também uma rejeição de todos os objetivos e valores humanos, pois persegui-lo significa perseguir objetivos e valores. Para Kant, a moralidade deve se impor a uma pessoa independentemente de quaisquer desejos, fins ou inclinações específicas que ela possa ter. A ideia de moralidade de Kant separa a moralidade tanto da razão quando de noção de valores.

Kant diz que um ato é moral apenas se nenhum benefício, de qualquer tipo, derivar dele. Ele exclui todo desejo e benefício do âmbito da moralidade. Para ser moral, uma pessoa deve cumprir o seu dever sem qualquer consideração a objetivos e valores pessoais, à sua felicidade ou aos resultados das suas ações em sua própria vida. O benefício destrói o valor moral da ação. A teoria moral kantiana pode, assim, ser considerada como centrada na ação, e não no agente.

O que Kant fez foi permitir que a razão humana conquiste o mundo material (i.e. fenomenal), eliminando-a, todavia, do âmbito da escolha de objetivos e fins para os quais as conquistas materiais do homem devem ser utilizados. Kant atribuiu o mundo material irreal à ciência e à razão, mas deixou a moralidade para a fé. A ciência e a razão são limitadas e válidas apenas enquanto concebidas dentro de uma ilusão coletiva fixa e específica. A realidade mais elevada, o mundo numenal, dita as regras da moralidade para o homem através de uma manifestação especial, o imperativo categórico, que envolve um senso de dever especial conhecido através da intuição ou dos sentimentos.

O dever é o requerimento moral de realizar certas ações sem nenhuma consideração por valores, objetivos, motivos, intenções ou desejos pessoais. O sacrifício do homem em nome do dever é um bem em si mesmo. Uma ação é moral apenas se a pessoa não tiver nenhum desejo de agir dessa forma, mas age a partir de um senso de dever, e não recebe qualquer benefício da sua ação. Dessa forma, Kant nega que qualquer coisa feita para assegurar o bem-estar e o florescimento de quem age não pode ter qualquer significância moral. Para Kant, a moralidade não envolve – e não pode envolver – a virtude da prudência (i.e. a sabedoria prática). Ele enxerga uma divisão clara entre prudência e moralidade. Kant sustenta que o ato de perseguir os seus próprios interesses ou a sua própria felicidade não tem qualquer valor moral. Ele insiste que nós jamais podemos determinar se uma ação é boa ou correta a partir dos efeitos dessa ação sobre a nossa felicidade. Kant explica que a felicidade depende de condições e fatores externos ao controle do indivíduo, e externos à vontade humana. Ele argumenta que o propósito último do esforço humano deve residir em algo que dependa apenas da pessoa, e que seja incondicionalmente bom. Disso, ele conclui que o único bem incondicional e derradeiro é a boa vontade.

De acordo com Kant, uma pessoa é amoral quando age para atingir seus valores. Para ele, todos os fins (exceto pelos especificamente morais) são redutíveis à felicidade da pessoa, são não-morais, e incapazes de produzir quaisquer imperativos categóricos. Para Kant, o que é necessário para uma filosofia moral legítima são obrigações categóricas (i.e. deveres morais). O ético é, dessa forma, o que todos devem fazer.

Kant argumenta que o valor moral é intrínseco à ação e, assim, tem valor em si mesmo, independentemente de qualquer sujeito particular que valore. Para Kant, o objetivo humano natural de alcançar a felicidade não pode ser a fundação para a motivação moral. Diferentemente de Aristóteles, Kant traça uma distinção severa entre a moral e a razão não-moral. Kant rejeita qualquer filosofia moral que adote a felicidade pessoal como seu valor final e sustenta que a determinação do que é moral deve ser feita sem referência aos desejos do homem, ou aos fatos da sua natureza. Para Kant, a moralidade eleva o homem acima do mundo dos sentidos. Ele vê a prudência como não-moral, e o autointeresse como algo diferente de fazer o que é certo.

Kant provê um teste para determinar o status moral das diversas ações. Ele diz que a pessoa que range os dentes para realizar o seu dever moral, de forma contrária às suas inclinações, exibe valor moral. Por outro lado, alguém que ajuda outras pessoas, mas deriva prazer de suas ações não demonstra qualquer valor moral. De forma similar, se uma pessoa quer ser honesta, ela não merece nenhum crédito por sua moralidade. Um indivíduo que não possui qualquer desejo natural de ajudar o próximo ou de ser honesto, mas ainda assim o faz é quem realmente demonstra valor moral.

A denúncia de Rand a Kant

De acordo com Ayn Rand, o objetivo de Kant era salvar a moralidade baseada no altruísmo, no autossacrifício e na negação da individualidade. A ideia de moralidade de Kant consiste de uma total e abjeta abnegação. O kantianismo se opõe rispidamente à busca pela felicidade, em prol da prática do dever. A moralidade kantiana do dever restringe a importância das experiências e pensamentos do indivíduo, e ensina que a moralidade depende da aderência a verdades a priori, e de ignorar o mundo real. Por isso, Rand enxergava o kantianismo como uma grande racionalização do ódio de Kant pela razão e pela realidade, e da sua visão da supremacia das emoções. Ela interpreta Kant como alguém que atribui à razão a supremacia sobre o mundo material, dando à fé, a intuição e os sentimentos o domínio do mundo espiritual.

Rand vê Kant e Hume como os dois arqui-inimigos da razão na história moderna. Na visão de Rand, a síntese de Kant foi responsável pela defesa da ideia de que a consciência é ontologicamente anterior à existência. Rand enxerga Kant como alguém que ataca, em um nível metafísico, tanto a eficácia da mente humana, quanto a realidade objetiva. A perspectiva de Rand era de que Kant havia declarado guerra à habilidade da mente de compreender a natureza da realidade. Rand discorda veementemente da defesa da fé, da intuição e dos sentimentos como formas válidas de lidar como o mundo numenal. Em seus escritos, Rand desafia Kant em sua própria raiz e base filosófica, rejeitando a crença kantiana de que a mente impõe estruturas à realidade. Ela também condena Kant como moralmente mal e desonesto (não apenas alguém que errou filosoficamente) por conta de seu sistema filosófico místico, e da erosão cultural gradual que resultou da sua aplicação.

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Publicado originalmente em Rebirth of Reason.

Traduzido por Bill Pedroso

Revisado por Matheus Pacini.

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[1] A ideia de contingência e necessidade é vem sendo analisada por diversos filósofos ao longo dos anos. Uma verdade contingente, nesse contexto, seria algo como uma crença útil, ao passo que uma verdade necessária é algo que não pode ser de outro jeito, por causa das leis da realidade. Para Hume, é pode ser útil assumir que a Terra continuará girando, mas não há razão para acreditar que ela não pode se transformar em um jarro gigante de suco de laranja a qualquer momento. Rand trata da dicotomia contingente-necessário de uma forma racional. Para ela, existem fatos humanos e fatos metafísicos. Fatos humanos são aqueles que existem por causa da escolha e ação humanas, como a prosperidade econômica, ao passo que fatos metafísicos são aqueles que dependem apenas das leis que regem a realidade, como a lei da gravidade, ou o ponto de ebulição da água.

[2] Rand, por outro lado, trata estes conceitos fundamentais como existentes tão onipresentes que são percebidos antes de o indivíduo ser capaz de conceptualizar. O mundo é formado por entidades que agem (causalidade) e se relacionam tanto em sua localização (espaço) quanto na cronologia dos eventos que causam (tempo). Por conta disso, todos esses existentes são percebidos ainda na infância, quando a consciência humana está em seu estágio perceptual. Em outras palavras, perceber uma cadeira à sua direita, e um aquário à sua esquerda implica em perceber entidades distintas, em diferentes lugares, em diferentes momentos. Com o amadurecimento da consciência e da capacidade de abstração do indivíduo, ele se torna capaz de colocar racionalmente em palavras aquilo que antes conseguia apenas perceber de forma implícita.

[3] De fato, os sentidos são mecanismos automáticos e não nos dão uma representação exata e infalível da realidade. Kant usa isso como argumento para negar qualquer ideia de conhecimento conceitual. Ayn Rand, por outro lado, demonstra que é justamente por conta dessa imperfeição que o homem precisa de conceitos para entender a realidade – e é justamente por conta de sua natureza automática que os sentidos são válidos.

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