Filósofos de verdade não refletem o consenso da moda

Skye Cleary é uma professora de filosofia que recentemente escreveu um artigo para a revista digital Aeon com esta observação: “Os filósofos adoram odiar Ayn Rand. Está na moda zombar de qualquer menção a ela. Eu sei o que ela quer dizer. Como ex-professor de Filosofia que respeita e concorda com o Objetivismo, tive a chance de testemunhar tal comportamento em mais de uma ocasião.

Parece, a princípio, que Cleary está adotando um posicionamento diferente. Ela diz que difamar Rand sem ler seus trabalhos é a “abordagem errada”, que o fenômeno das pessoas que admiram Rand precisa ser levado a sério, e que não há razão para esperar que ele “simplesmente desapareça”: ” talvez seja hora de admitir que Rand é uma filósofa – embora não muito boa.”

Sinceramente, eu gostaria de poder declarar vitória dizendo que essa mea culpa representa algum tipo de progresso. Mas admitir que Ayn Rand é uma filósofa em 2018 é semelhante a admitir que Darwin era um biólogo apenas em 1918. É possível discordar honestamente da filosofia de Rand, mas é um escândalo para a profissão que professores de filosofia não a considerem uma filósofa. Rand escreveu sistematicamente em todos os principais ramos da filosofia e isso está documentado à exaustão. É um escândalo, em especial, para uma profissão que não consegue nem mesmo decidir como definir seu próprio assunto.

Tenho certeza de que Cleary admitiria que parte do que significa ser filósofo é ocupar-se da teoria de outros filósofos, examinando suas ideias reais – e não caricaturas delas. Infelizmente, como meu amigo Greg Salmieri mostrou em um post no blog da Ayn Rand Society (uma afiliada da American Philosophical Association), a obra de Cleary não está à altura desse padrão. Mesmo quando Cleary levanta algumas questões importantes sobre as ideias de Rand, ela as deturpa muito mais do que seria esperado de alguém que tenha lido todos, se é que algum, dos trabalhos de Rand com o mínimo grau de seriedade.

Como Salmieri fez o trabalho de resumir e refutar diversas deturpações no artigo de Cleary, quero focar apenas num problema que aparece quase no fim do texto, o qual ela usa para explicar a popularidade crescente de Rand:

“Rand é perigosa precisamente porque apela aos inocentes e aos ignorantes, utilizando-se das armadilhas da argumentação filosófica como manto retórico sob o qual passam despercebidos seus preconceitos mais cruéis. Sua escrita é persuasiva para os vulneráveis e os não críticos, e, além dos longos monólogos, ela sabe contar boa história. Lembre-se de que são os seus romances os best-sellers. Quase 2/3 dos milhares de avaliadores da Amazon dão à Revolta de Atlas uma classificação de cinco estrelas. As pessoas parecem comprar a história e, sem esperar, encontrando uma filosofia convincente perfeitamente embalada, que é absorvida sem reflexão. Não é difícil imaginar o que as pessoas acham admirável em seus personagens: os heróis de Rand não são apenas autointeressados e indiferentes, mas também são ótimos naquilo que fazem e seguem princípios claros. É um excelente exemplo – e alerta – do poder influente da ficção.”

A primeira coisa a observar nessa explicação é que ela pressupõe uma desconexão entre o autointeresse e a adesão a princípios. Entendo que o ponto de Cleary é que é a integridade dos personagens de Rand, e não o seu egoísmo, que atrai os leitores. Esse ponto está alinhado com o pensamento convencional de que esses dois fatores estão em conflito. Mas um verdadeiro filósofo não pressupõe a sacralidade dos conceitos convencionais. A própria Rand vê os dois fatores como interligados, e creio que o mesmo se aplica à maioria dos leitores que se inspiram em seus escritos. Nenhuma tentativa de entender ou interagir com as ideias de Rand é possível sem a compreensão desses conceitos de uma forma menos convencional e mais filosófica.

Quando li A nascente pela primeira vez, fui conquistado pela integridade do herói, o arquiteto Howard Roark. Em uma cena emocionante, Roark se reúne com o conselho executivo de um banco para o qual foi contratado para projetar um edifício. Mesmo Roark estando à beira da pobreza, dependendo disso para pagar as contas, recusa-se a aceitara comissão quando descobre que desejam alterar o seu projeto. Um dos membros do conselho diz: “Queremos o seu prédio. Você precisa da comissão. Você tem que ser tão fanático e altruísta sobre isso? “Roark responde: essa foi a coisa mais egoísta que você já viu um homem fazer.”

O pensamento de Roark nesse caso não é algo descartável. Embora seja necessário algum esforço e sensibilidade filosófica para compreendê-lo, ele é consistente com o tema desenvolvido com alguma profundidade ao longo da obra. A visão de Roark (e de Rand) é subordinada a ideia de que o “eu” é aquilo em nós que pensa, sente, julga e age. Um homem como Peter Keating, rival de Roark, que copia outros arquitetos e compromete seu próprio julgamento para satisfazer os outros, é alguém que sacrifica os seus próprios valores essenciais. Então, quando Roark diz que está sendo egoísta por desistir de uma comissão, ele realmente tem a intenção de dizer isso: ele define seus interesses tomando como referência seus próprios valores, e nenhuma quantia de dinheiro o compensará por sacrificá-los. (Incidentalmente, a ideia de que o interesse próprio ou o bem-estar é definido, em parte, por algo como os valores é uma ideia que está sendo levada mais a sério por, pelo menos, alguns filósofos contemporâneos, embora Rand tenha formulado tal visão muitas décadas antes de estar na moda.).

Em minha primeira leitura de A nascente, também fui tomado pelo fato de que, embora Roark tivesse uma integridade implacável, sua busca por seus próprios interesses não era “cruel” ou “indiferente”, como sugerido por Cleary. Roark se preocupa com seus amigos e faz grandes esforços para salvá-los do desespero, mesmo quando ele está passando por dificuldades. Como foi explicado noutras oportunidades, não vou me dedicar a provar porque Rand afirma que cuidar de amigos e parentes – sem mencionar a benevolência generalizada por simples estranhos – é, em si mesmo, um exemplo de autointeresse. Tal ponto também não é separado de sua visão de integridade. Se o autointeresse é definido pelos valores que servem a vida, e esses valores são a base do relacionamento mútuo, a lealdade aos valores é sinônimo de lealdade aos amigos. Naturalmente, isso também significa justiça implacável para os inimigos do bem, mas pergunte a si mesmo o que motiva aqueles que consideram insensível recusar-se a tolerar o mal.

A própria Rand pensava que o sucesso de A nascente se justificava pela obra retratar um homem íntegro que considera sua própria vida como sagrada. Na introdução da edição de 25 anos da obra, ela escreveu que os jovens começam a vida com a expectativa de que podem realizar grandes coisas, mas que muitas vezes desistem e perdem o entusiasmo quando lhes é dito que é impraticável viver de acordo com seus ideais. Através do poder da ficção, o exemplo de Roark dá nova vida a antigas abstrações anteriormente associadas à religião – por exemplo, os conceitos de exaltação e sagrado – mostrando na prática, ao invés de na teoria, como uma vida dedicada aos valores é essencial para a busca da felicidade.

Como eu um dia fui uma dessas pessoas jovens inspiradas por este livro, discordo particularmente da alegação de Cleary que Rand é “perigosa” porque pessoas ignorantes e inocentes são seduzidas por suas “armadilhas de argumento filosófico”, concordando sem refletir. De minha parte, li Rand no colégio depois de já ter lido vários outros filósofos (Descartes, Locke, Rousseau, Kant, Mill, etc.). Depois de ler uma teoria da justiça, eu me considerava um liberal de Rawls. Eu li A nascente pensando que odiaria o livro. Mas ele me desafiou apesar de minha desconfiança. Depois disso, li quase todas as análises críticas da filosofia de Rand que pude encontrar, concordando e discordando várias vezes. Eu finalmente decidi que sua visão fazia mais sentido do que minha visão anterior (e muito mais sentido do que a opinião de Rawls).

Eu não posso assegurar que todos que descobrem Rand passam pelo mesmo processo. Mas já ouvi histórias parecidas de amigos para saber que isso não é sem precedentes. É por esse motivo, entre outros, que concordo plenamente com Cleary que as opiniões de Rand não irão desaparecer. À medida que mais jovens inteligentes são apresentados a seus pontos de vista, e à medida que meus amigos e colegas continuem a produzir estudos de alta qualidade explicando essas opiniões e defendendo-as das distorções dos críticos, a influência de Rand sobre a cultura só aumentará. Os filósofos que ainda restam pelo mundo deveriam aceitar isso.

Como Salmieri observa em sua resposta, ao longo do seu artigo, Cleary dá como certo que as opiniões de Rand estão erradas e espera que esteja claro como refutá-las. Incrivelmente, ela nunca oferece qualquer tentativa de contrapor as posições reais de Rand. Talvez ela tivesse feito isso caso o artigo fosse mais longo. Mas, mesmo assim, o que significa presumir que o público não precisa nem mesmo receber uma indicação de quais podem ser as falhas em todo um sistema filosófico? Para mim, essa não é uma atitude de um bom filósofo. Ninguém tem a obrigação de considerar todas as perspectivas na exposição de um pensamento. Mas se alguém vai se engajar em uma perspectiva, e especialmente se alguém se compromete a publicá-la, esta pessoa deveria buscar a evidência do que motiva as pessoas a adotarem essa perspectiva. Seus motivos são simplesmente confusões sobre o assunto ou eles apresentam argumentos intelectuais? Eu fiz isso quando encontrei as opiniões de Rand pela primeira vez, embora fossem contra a minha própria perspectiva e a visão da moda entre meus amigos. Seria de esperar que os professores de filosofia fizessem o mesmo.

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Publicado originalmente em New Ideal.

Traduzido por Karen Kotz.

Revisado por Matheus Pacini,

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