Ética – para quem e por quê?

A Ética é um ramo da filosofia que opera como uma bússola, guiando o indivíduo em seu oceano de escolhas e ações. E por que todo indivíduo precisa de um guia? Pois esse guia determina seu sucesso na conquista dos valores que são relevantes para ele. Assim como Rand afirmou em sua palestra Philosophy: Who Needs It? transcrita para o livro homônimo de 1982, o pensamento ético fica sempre implícito em muitas de nossas atitudes. Portanto, não basta termos um código de ética, também é preciso entender seus fundamentos e validá-los.

Um código é um sistema organizado de princípios morais, pautado na resposta a três questões fundamentais:

  • O que são valores?
  • Por que a busca por valores é necessária?
  • Por que é indispensável ter um código moral?

Segundo o Objetivismo, as perguntas relevantes deste código se traduzem em:

  • Qual é a finalidade da vida do homem? (O quê?)
  • Com base em que princípio fundamental deve agir para atingir esse fim? (Como?)
  • Quem deveria ser o beneficiário dessas ações? (Por quê?)

Mesmo que muitas pessoas acreditem ser necessário pensar sobre ética, muitas delas creem não ser necessário identificar o objetivo da ética, nem o motivo por que usá-la. É crença comum que os objetivos das pessoas são variados (o que é verdade) e que podem ser atingidos de várias formas, por vários motivos, isto é, elas são “ecléticas” quando se trata de códigos morais. Muitas dispensam o uso de princípios e, quando têm algum, não o utilizam de forma consistente.  Já o Objetivismo defende que um código moral é necessário devido à interconexão entre os eventos da vida das pessoas. E a observação desse fato é fundamental para entendermos como agir para obter um determinado resultado. Essa é uma perspectiva bastante sofisticada, e foram necessários muitos anos de reflexão filosófica profunda para que Rand a formulasse e demonstrasse na prática.

Por exemplo, o código ético cristão afirma tacitamente que seu objetivo principal é a união do homem com Deus numa outra dimensão. E que isso se dará através da fé, da esperança e da caridade. Contudo, ao questionar a razão dessas ideias, geralmente a resposta é “para seguir os desígnios de Deus.” O que leva a pergunta: por que Deus precisa que um terceiro execute seus planos, se ele, como um ser onipotente, onisciente e onipresente, pode qualquer coisa? As respostas variam, mas todas são inconsistentes. E todas elas se baseiam fundamentalmente no pensamento de Platão, que dizia que o objetivo do ser humano era a reunião com uma outra dimensão, ideal. A explicação da razão cristã também gera um certa simpatia das pessoas por defender o autointeresse do indivíduo, ao afirmar que tudo isso é para o seu bem, para que ele não queime no inferno. Como esse argumento tem alguma conexão com a realidade (é fato que as pessoas têm a tendência de buscar o prazer e evitar a dor), parece uma interpretação válida da moralidade. Assim, é necessário ressaltar que Ayn Rand considerava a questão do prazer versus dor como algo importante para a vida. Porém, argumentava que essa conexão – bem como a essência da ética – tinham sido conceitualizadas erroneamente ao longo da história.

Para pensar em ética é preciso pensar em como é possível justificar um valor final ou último em si mesmo. É comum pensar na ética de forma normativa, ou seja, como uma regra (“essa é a coisa certa – ou errada – a fazer”). Contudo, essa abordagem tende a estancar o raciocínio do indivíduo, fazendo-o negligenciar o que lhe é dito ou a não entender qual o valor final que será atingido em seu caso particular. Por exemplo, um livro de culinária é um documento normativo, já que explica os passos específicos para preparar uma receita. E mesmo que seja possível questioná-los, exista uma razão porque aplicá-los, a saber, saborear uma deliciosa refeição. Porém, se alguém perguntar por que você deseja comer esse determinado prato, a justificativa pode ser que você está buscando um determinado objetivo ao fazê-lo, o que, por sua vez é um passo para outro objetivo, ad infinitum. E a questão então é como justificar um objetivo que não seja um meio para outros fins.

A questão de como definir e justificar um fim em si mesmo é crucial para toda a ética. Porém, essa justificativa não deve ser arbitrária ou subjetiva, como Rand explica no artigo A ética objetivista (A virtude do egoísmo, 1964). Rand baseou essa afirmação em generalizações que só foram possíveis devido a dois acontecimentos históricos cruciais: a Revolução Industrial e a Teoria da Evolução de Darwin. Sem eles, nem mesmo Aristóteles foi capaz de evoluir em suas teorias de pensamento, pois não possuía o contexto necessário para fazer tal análise.

A Revolução Industrial foi uma consequência do Iluminismo, que, por sua vez, foi uma consequência do Renascimento. O resultado desses eventos históricos foi o de demonstrar as causas envolvidas na integração de pensamentos abstratos e suas aplicações práticas. Para Rand, a ideia de que a razão é o meio básico de sobrevivência do homem, responsável pela formulação de todos os outros princípios, só foi possível através de uma análise da Revolução Industrial. Isso porque esse acontecimento demonstrou como o uso consistente do conhecimento científico e da razão humana melhorou drasticamente a vida do homem. Para se ter uma ideia do uso único da razão nesse contexto, basta entender que os primeiros filósofos gregos, por exemplo, acreditavam que o desenvolvimento de ideias servia apenas para contemplação, e não aplicação prática.

Outro acontecimento crucial para a formulação da ética objetivista é a descoberta da Teoria da Evolução de Darwin no século XIX. Isso porque a perspectiva de que a vida é uma luta constante pela existência também não era algo comum. Nesse contexto, Rand verifica que existem pessoas que buscam realmente viver, enquanto outras apenas existem; que existem pessoas buscando lidar com problemas e adaptar-se a situações, enquanto outras apenas se deixam levar pelos eventos ao seu redor. Essa é uma descoberta revolucionária, já que, antes de Darwin publicar sua tese, as pessoas acreditavam que Deus tinha criado o mundo e todas as criaturas. A ética objetivista se torna, então, uma integração de princípios modernos. Ou seja, a conexão de fatos pertinentes à história humana desde suas causas até seus efeitos recentes.

Contudo, a ética objetivista também se diferencia quanto à busca por objetivos, pois o entendimento popular é que essa busca seja algo linear. Ou seja, o indivíduo faz A para ter B, faz B para ter C e C para ter D. Mas por que ele deve agir só até D, de forma arbitrária? Seguindo essa lógica, a conexão entre meios e fins poderia ser infinita.

Para o Objetivismo, a busca por fins é circular. Ou seja, a vida é a busca por valores que a tornam possível, o que torna possível a busca por valores, etc.  Por exemplo, você come para viver e vive também para obter seu alimento; bem alimentado, você continua vivendo para buscar outros valores. Isso significa que a vida é uma ação constante para manter essa mesma vida. No entanto, o que torna essa ação circular distinta entre os seres humanos e os animais, é que ela não é apenas uma repetição através do tempo, mas uma repetição crescente ao longo do tempo. Ou seja, uma pessoa pratica certas ações, que fazem com que ela atinja certos objetivos, que fazem com que ela pratique ações além daquelas já feitas, preservando ainda mais a sua vida e potencializando a prática de novas ações, etc. Dessa maneira, ao entender o conceito circular dos propósitos humanos, também é possível entender porque a vida do homem não necessita de justificativas ou objetivos externos.

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No que tange à segunda pergunta fundamental da ética – por que a busca por valores é necessária? – Rand argumenta que ela pode ser observada em todos os organismos vivos. Em particular, a observação de que organismos vivos são autogerados e direcionados a um objetivo. A autogeração vai no sentido oposto a de organismos inanimados, que não se modificam por si mesmos e tampouco possuem um propósito. Rand é resoluta sobre o fato de que organismos vivos têm suas ações direcionadas a um objetivo, e isso é observável em todos, sem exceção. Por exemplo, temos a planta vira suas folhas em direção ao sol, o cão que brinca de perseguir seu dono ou o animal que migra para diferentes locais dependendo da época do ano. Por que eles precisam se engajar em ações com propósitos? Pois, segundo Rand, a vida é condicionada a conquista de objetivos específicos para distintos organismos vivos.

Assim, a moralidade envolve o raciocínio profundo sobre as condições necessárias para que organismos animados possam se manter vivos. E, no caso do ser humano, este é um manual de instruções complexo que não lhe é dado no nascimento. O indivíduo que se utiliza do código moral descoberto por Rand busca entender quais valores são necessários para sua própria vida, assim como quais valores são universais para qualquer pessoa. Além disso, ele tenta entender a conexão desses valores (positiva ou negativa) em relação a vários aspectos de sua vida.

Por exemplo, no livro We The Living (1936) Rand apresenta o dilema de personagens essencialmente bons que tentam entender se seus objetivos estão realmente melhorando suas vidas. Em A Nascente (1943), o conflito central é entre Howard, Dominique e Gail e os objetivos que cada um está perseguindo, onde Gail acaba entendendo que agiu durante toda sua vida na busca de um valor que não era realmente do seu interesse. Em A revolta de Atlas (1957), o conflito central é entre aqueles que se negam a produzir e aqueles que continuam produzindo numa sociedade em que não são valorizados. Pensar em um objetivo como um valor é pensar que este objetivo está contribuindo para sua vida. E essa é a perspectiva que se deve ter quando se pensa em moralidade.

Quanto ao fato de que a vida é condicional, não quer dizer que a falta de determinadas condições significa a morte imediata de um organismo. Por exemplo, se uma planta não é regada, não significa que ela irá morrer no próximo minuto ou nas próximas horas. Mas essa é uma condição da sua existência e, sem a mesma, a planta tende a morrer. Com os seres humanos, a questão é essencialmente a mesma, com a diferença de que o homem enfrenta condições mais complexas do que uma planta. Ele pode atingir essas circunstâncias parcialmente ou simplesmente não atingi-las. E mesmo que as atinja parcialmente, isso ainda significa uma situação ruim, pois o leva em direção à morte, debilitando sua capacidade de viver – como uma planta que recebe menos água que o necessário para se manter viva e saudável. E por que distinção entre sobreviver e viver não é analisada separadamente? Porque são dois pontos que devem ser seguidos ao mesmo tempo. Viver significa atingir todas essas condições de acordo com o contexto de cada indivíduo, de maneira circular, conquistando cada vez mais valores e se desenvolvendo ao longo do tempo.

Por fim, a terceira pergunta fundamental sobre ética – por que um código moral é necessário? – se justifica pelo fato de o homem ser um organismo que possui consciência, e sua consciência é seu meio básico de sobrevivência, sendo essa uma característica específica do ser humano. Ou seja, mesmo animais com uma consciência mais complexa não são capazes de fazer abstrações e não necessitam fazê-las para que possam sobreviver e conquistar seus objetivos.  Além disso, a consciência do ser humano é volicional (que exige vontade) e relacionada às escolhas possíveis a ele. A moralidade então trata sobre a vida que o indivíduo deseja viver, englobando a reflexão sobre princípios e valores abstratos, que não são óbvios. De maneira sucinta, podemos dizer que a questão principal é entender quais são – e quais não são – as ações e objetivos pró-vida para o homem, de maneira universal e particular. Essa é uma questão de causa e efeito aplicada à vida (quais as ações que devem ser seguidas, porquê e quais as consequências disso?).

Nesse contexto, princípios são ferramentas importantes para se entender causa e efeito, pois são generalizações indutivas que identificam esses dois aspectos. Da mesma maneira que as ciências geram princípios a partir das observações de causa e efeito (seja nos campos da física, medicina, biologia, etc.) o Objetivismo entende que moralidade também é uma ciência que trata dos mesmos no campo relacionado à vida humana. Assim, a moralidade é um código de valores para guiar as ações do homem, a partir de um código de princípios. Porém, esses princípios não foram transmitidos através de um ser superior ou algo místico, ou seja, sem nenhuma causa. E as virtudes objetivistas também não são baseadas em tradição ou bem comum, mas em generalizações de como cada indivíduo alcança seu crescimento pessoal. Elas ajudam as pessoas a entender as relações de causa e efeito, sendo meios para um fim. Por exemplo, quando os personagens de Rand fazem escolhas morais, o que ela está querendo demonstrar é a aplicação de causa e efeito ao longo do tempo. Quando Roark rejeita uma proposta de comissão para realizar um determinado projeto arquitetônico, é porque ele entende qual a verdadeira consequência da sua escolha no longo prazo. (Ao aceitar a comissão, ele não irá construir os prédios que gostaria e nem atrair os seus tipos de clientes). Portanto, a dificuldade está em entender as consequências das suas escolhas.

Identificar a moralidade como o código que relaciona causas e efeitos é identificar o fato de que não é possível negociar princípios morais. Indivíduos que buscam viver e se desenvolver devem entender seus valores e seguir um código moral conectado à realidade, portanto, um código efetivo. Princípios devem ser seguidos porque têm utilidade e estão conectados à realidade, e não por imporem medo ou castigo.

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Revisado por Matheus Pacini.

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