Ayn Rand e altruísmo (parte 5)

Smith discute por que Ayn Rand acreditava que altruísmo é incompatível com benevolência e ações de caridade.

Em Benevolência versus altruísmo (The Objectivist Newsletter, julho de 1962), Nathaniel Branden condenou o “pacote” que liga altruísmo ao “princípio da benevolência, da boa vontade, e da bondade para com os outros”. Essa afirmação é “pior que um engano”; de fato, “altruísmo e benevolência não são apenas diferentes, mas sim mutuamente contrários e contraditórios”. Branden concluiu seu artigo da seguinte forma:

“A escolha não é entre egoísmo ou boa vontade entre os homens. A escolha é entre altruísmo ou boa vontade, benevolência, amor e irmandade humana.”

Encontrar, na publicação oficial objetivista daquela época, referências positivas à bondade, à irmandade humana e a noções similares pode ser chocante para muitos detratores de Ayn Rand que insistem em retratá-la como um Ebenezer Scrooge. Mas essa e outras deturpações notórias das visões de Rand se tornaram a regra, em vez da exceção, então não deveria surpreender aqueles que realmente tomaram o tempo para ler o que Rand (e Branden) escreveram sobre o tópico da benevolência.

Segundo Rand, “nenhum homem tem o direito de impor uma obrigação não escolhida, um dever não recompensado ou uma servidão involuntária a outro homem. Não pode haver tal coisa como o “direito de escravizar””. Esse “direito de escravizar” é como Rand via o altruísmo, que prega o autossacrifício e serviço aos outros como um dever moral e, em última análise, como um dever político que deveria ser imposto através do poder do governo.

Embora Rand entendesse que havia “variantes da doutrina altruísta-coletivista que subordinava o indivíduo a uma autoridade maior”, ela insistiu, repetidas vezes, que o suposto dever do autossacrifício, sob qualquer manifestação, mina invariavelmente a noção de direitos individuais e, portanto, destrói as fundações morais de uma sociedade livre.

Um defensor consistente de direitos deve apoiar o direito de os indivíduos buscarem seus próprios valores segundo seus próprios julgamentos, contanto que respeitem os mesmos direitos dos outros. Direitos são uma concepção moral que “preserva e protege a moralidade individual em um contexto social”, isto é, são os “meios de subordinar a sociedade à lei moral”.

Em contraste, o altruísmo é um tipo de “canibalismo moral” em que algumas pessoas são sacrificadas às outras em nome do “dever”. E como o altruísmo não pode ser praticado consistentemente (é impossível sacrificar todos para todos), na prática, o altruísmo equivale ao “direito” de o governo falar em nome da “sociedade” (ou alguma outra abstração coletiva), decidir quem deveria ser sacrificado a quem, e forçar suas decisões por meios coercivos. O altruísmo, portanto, resulta em uma sociedade profundamente amoral — uma sociedade em que os governantes são “isentos da lei moral” e alegam o direito de dispor das pessoas e de suas propriedades como bem entender.

É essencial na análise de Rand sobre o altruísmo a brilhante linha moral que ela traça entre persuasão e coerção. Em O que é Capitalismo? — um de seus melhores ensaios, em minha opinião — Rand argumenta que “uma tentativa de alcançar o bem pela força física é uma contradição monstruosa que nega a moralidade em sua raiz, ao destruir a capacidade do homem de reconhecer o bem, ou seja, a sua capacidade de valorizar”.

“A força invalida e paralisa o julgamento do homem, exigindo que ele aja contra o seu julgamento, tornando-o moralmente impotente. Um valor que alguém é forçado a aceitar, à custa de renunciar a sua mente, não é um valor para ninguém; os irracionais “forçados” não podem julgar, nem escolher, nem valorizar. Uma tentativa de alcançar o bem pela força é como uma tentativa de fornecer a um homem uma galeria de fotos, à custa de arrancar seus olhos.”

A conclusão desse argumento é que o altruísmo é totalmente desprovido de valor moral, mesmo se aceitarmos a premissa (que Rand não aceitou) de que a disposição em ajudar os outros é uma grande virtude. Caridade voluntária é uma coisa; caridade coerciva é outra coisa, uma contradição em termos. A coerção só é necessária quando alguém não consegue persuadir os outros a agir como você crê que deveriam. E forçar alguém a tomar uma ação é despir essa ação de qualquer valor moral que ela, doutra forma, teria.

Considere dois cenários. No primeiro, eu acredito (por qualquer razão) que você deveria contribuir com mil dólares para a Cruz Vermelha, e eu consigo convencê-lo a fazê-lo. No segundo, eu falho em minha tentativa de lhe persuadir a doar mil dólares, e lhe ameaço via força física a me obedecer, enquanto explico que estou apenas impondo seu dever moral de ajudar os outros. Você então obedece minha exigência, preferindo entregar seu dinheiro ao invés de arriscar sofrer o dano que ameacei lhe infligir.

Consideradas superficialmente, suas ações em ambos os cenários são idênticas. Isto é, em ambos os casos você acabou transferindo mil dólares para a Cruz Vermelha. Mas as duas ações diferem radicalmente sob um ponto de vista moral. No primeiro cenário, você é livre para concordar ou não; você é livre para avaliar o desejo de uma potencial ação benevolente em todo contexto de seus valores pessoais. No segundo, não existe tal opção; você concorda em entregar seu dinheiro, não porque você valoriza a caridade, mas porque você teme as consequências de não obedecer o comando coercivo.

Em A unidade de uma nação (The Ayn Rand Letter, 23 de outubro de 1972), Rand identifica o medo como uma diferença crucial entre benevolência e altruísmo:

“Benevolência é incompatível com medo. Apenas quando um homem sabe que seus vizinhos não têm poder de interferir forçosamente em sua vida é que ele pode se sentir benevolente em relação a eles, e eles em relação a ele—como a história do povo americano demonstrou. Já que a concordância com o princípio dos direitos individuais não impõe qualquer dogma oficial e não viola a convicção de ninguém, a maior variedade de visões e ideias pode coexistir pacificamente no mesmo país sem ameaçar ninguém. Se dois homens discordassem seriam livres para não lidar um com o outro, e nenhum podia forçar suas escolhas sobre o outro”.

Nathaniel Branden argumentou de forma similar em Benevolência versus altruísmo:

“Pela natureza da ética altruísta, ela só pode gerar medo e hostilidade entre os homens: ela força os homens a aceitar o papel de vítima ou de executor, como objetos de sacrifício ou como benfeitores de sacrifícios — e não deixa nenhum padrão de justiça aos homens, nenhuma maneira de saber o que eles podem exigir ou a que devem renunciar, o que é deles por direito e o que é deles por favor ou sacrifício de outra pessoa— jogando-os, assim, em uma selva amoral. Ao contrário das pretensões dos defensores do altruísmo, é a irmandade humana e a boa vontade entre os homens que o altruísmo torna impossível.

Benevolência, boa vontade e respeito pelos direitos dos outros procedem de um código de moralidade oposto: do princípio que o homem, o indivíduo, não é um objeto de sacrifício mas uma entidade de valor supremo; que cada homem existe para seu próprio bem, e que não é um meio para os fins dos outros; que ninguém tem o direito de sacrificar ninguém.”

Em uma carta a John Hospers (29 de Abril de 1961), Rand escreveu que “no que diz respeito à ética, a caridade é uma questão marginal”. A caridade pode ser “moralmente adequada”, mas não é moralmente necessária e não deveria ser tratada como uma “grande virtude”.

As condições nas quais Rand considerava a caridade moralmente adequada não são especificamente relevantes para essa discussão, já que ela via a caridade (a benevolência, em geral) e o altruísmo como polos opostos. Chamo atenção aqui para o aval de Rand à caridade voluntária para refutar a alegação absurda de alguns críticos de que Rand defendia o “egoísmo” no sentido vulgar, segundo o qual um egoísta não deveria mostrar preocupação com o bem-estar dos outros. Esse não era o argumento dela.

E não é necessário que seus críticos se aprofundem nos ensaios mais desconhecidos de Rand para entender seus argumentos com respeito ao altruísmo e à caridade. Rand claramente explicou a diferença essencial no Discurso de Galt.

“Um passo básico na aprendizagem do amor-próprio é encarar como sinal de canibalismo toda exigência de ajuda. O homem que exige ajuda de vocês está afirmando que a sua vida é propriedade dele – e, por mais repugnante que isso seja, há algo ainda mais repugnante: concordar e aceitar. Perguntam vocês: ‘É bom ajudar outro homem?’ Não, se ele afirma que se trata de um direito dele ou de um dever moral seu; sim, se isso é o que vocês desejam, com base no prazer egoísta que lhes proporciona o valor da pessoa e a luta do outro.”

Herbert Spencer, cujos pontos de vista sobre a caridade eram similares aos de Rand, uma vez estimou que “de três a cada quatro casos de supostas opiniões minhas condenadas por oponentes, não são minhas opiniões, mas opiniões erroneamente atribuídas a mim por eles.” Os críticos de Rand parecem determinados a passar a marca dos 3/4 e assim estabelecer um novo recorde de falta de integridade intelectual.

Tais deturpações é o destino provável de qualquer libertário que ouse argumentar pela supremacia moral da interação voluntária sobre a interação coerciva. Se você não acredita que um governo deveria coercivamente obrigar x, então você só pode ser contra x em si.

Bertrand Russell certa vez disse que a maioria das pessoas preferiria morrer a pensar; de fato, muitos preferem.

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Publicado originalmente em Cato Institute.

Traduzido por Felipe André.

Revisado por Matheus Pacini.

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