Ayn Rand é a cura para a crise ética das empresas?

O Vale do Silício sofre uma crise ética. Nos últimos anos, empresas como Theranos, Zenefits, Uber e Google [para citar algumas], envolveram-se em uma série de escândalos relacionados aos problemas sistêmicos do viés de gênero e do assédio sexual. Tal fato erodiu lentamente a imagem da indústria de tecnologia frente à opinião pública. Antes envolto em mistério, o ecossistema do capital de risco é exposto pelo que realmente é: um coterie de maioria branca que exerce poder indiscriminado sobre quem teria a chance de perseguir o sonho americano.

À medida que se arrancam as raízes do idealismo cego dessa indústria, críticos apontam o Objetivismo de Ayn Rand como uma ideologia perigosa que dá respaldo para os piores aspectos da cultura do Vale do Silício. Essa filosofia, incorporada nos romances A Revolta de Atlas e A Nascente, impactou tantos líderes – de Peter Thiel a Evan Spiegel, passando por Travis Kalanick – que Rand tem sido descrita como, talvez, “a figura mais influente dessa indústria”. O Objetivismo é provavelmente mais conhecido por caracterizar o egoísmo como virtude.

O diretor-executivo do Ayn Rand Institute, Yaron Brook, viaja ao redor do mundo promovendo essa filosofia e desfazendo os mitos que a rodeiam. Na semana passada, a Quartz conversou com ele sobre Objetivismo e a crise ética no Vale do Silício.

QZ: uma das caras da crise ética no Vale do Silício, Travis Kalanick, ex-CEO da Uber, afirma ter sido inspirado por Ayn Rand, cujo nome é associado com culturas corporativas liberais e, às vezes, destrutivas como a da Uber, em nome da disrupção. Qual é a sua opinião?

YB: a maioria das pessoas no Vale do Silício não entende a filosofia de Ayn Rand. Sim, alguns empreendedores são inspirados por Ayn Rand, retirando de suas obras valores como coragem, audácia, autoestima, etc. Creio que Travis Kalanick nunca afirmou ser objetivista. A única coisa que ele disse – corrija-me se eu estiver errado – é que A Nascente era o seu livro favorito. Poucos desses líderes pararam algumas vez e afirmaram: “essa é uma filosofia que transforma vidas.” De certo modo, entendo a situação: eles estão muito ocupados vivendo a vida, mudando o mundo e tirando proveito das oportunidades. Da obra de Ayn Rand, eles retiram só uma lição superficial: aja, seja empreendedor e comece um negócio.

QZ: qual o princípio equívoco de interpretação do Objetivismo no Vale do Silício?

YB: o principal equívoco se dá no entendimento do significado de egoísmo para Rand, pois acreditam piamente que Ayn Rand disse “faça o que quiser e não se importe com ninguém: faça o que for bom para você”. O problema é não refletir sobre o que significa fazer o que for bom para você. É difícil ser egoísta no sentido randiano do termo, pois, para tal, é necessária uma reflexão sincera sobre “quais são meus valores, que coisas importam para mim, e como busco realizá-las de forma racional e produtiva”. A filosofia de Ayn Rand é muito desafiadora.

Bernie Madoff é um grande exemplo [de má interpretação de egoísmo]. Alguém acredita que Bernie Madoff parou algum dia e pensou “eu quero viver a melhor vida que puder?” Definitivamente, ele não fez isso. O ponto central do Objetivismo é viver pelo que Rand chama de princípio do comerciante: criar o máximo possível de relações ganha-ganha.

Tradicionalmente, os Estados Unidos, em geral, e o Vale do Silício, em particular, têm tido uma cultura anti-intelectual. Veja, por exemplo, o caso de Peter Thiel: ele diz “não vá para a faculdade”, “crie um negócio”. Ótimo! Desde que você tenha uma boa fundação intelectual para fazê-lo.

QZ: o termo “capitalismo consciente” ganhou força nos últimos anos, popularizado por John Mackey, CEO do Whole Foods (parte do grupo Amazon), e hoje já é jargão no Vale do Silício. Por que esses empreendedores – que refletem o capitalismo de livre mercado, bem como o sonho americano – sentem a necessidade de adjetivar a busca do lucro como ‘consciente”?

“Capitalismo consciente” é um termo sem sentido. O que John Mackey quer dizer é “criamos relações ganha-ganha e nos preocupamos com funcionários, clientes, fornecedores e comunidade em geral.” Isso é óbvio. O capitalismo exige o melhor do ser humano – ele é intrinsecamente bom. Não é necessário um termo externo. A Whole Foods é só mais uma empresa com uma boa campanha de marketing. Duvido que Jeff Bezos adotaria tal termo.

QZ: o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, é um dos líderes do Vale do Silício a abraçar o conceito de “capitalismo consciente” – ele está trabalhando para transmitir uma imagem politicamente correta em torno de uma companhia que almeja o lucro. Você acha que esse tipo de branding pessoal está funcionando?

Mark Zuckerberg é um cara paradoxal, basta ler uma carta aberta que escreveu para a sua filha. Ele se divide entre seus valores – amor à vida e ao seu negócio – e ser Madre Tereza. Ele ainda é vítima da moralidade do autossacrifício [viver para os outros]. Ele ainda não substituiu sua filosofia.

Enquanto seus ideais morais fundamentais estiverem focados no outro, o seu padrão de moralidade só pode ser o quanto você se sacrifica pelo outro. Veja Bill Gates. Ele é um gigante em termos de melhora na condição humana. Ainda assim, ele recebe zero crédito moral, pois ganhou muito dinheiro ao fazê-lo. Ele sente que, para receber tal crédito moral, para ser visto como uma pessoa boa, ele tem de doar o seu dinheiro para a caridade. Mas ele doa porque crê que deveria sentir-se culpado por sua riqueza.

QZ: o grande frenesi em torno da renda básica universal é um subproduto desse tipo de culpa – os líderes do Vale do Silício estão buscando justificar a eliminação de milhões de empregos [substituição de pessoas por robôs]?

YB: Os empreendedores do Vale do Silício tendem a pensar que são superiores, e que o resto da humanidade não é capaz de se virar sozinha. Eu acredito que, se as pessoas forem deixadas em paz, dadas as ferramentas adequadas, poderão se virar muito bem – mesmo em um mundo de robôs.

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Tradução de Matheus Pacini

Publicado originalmente por Quartz Magazine

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