A rejeição comum a princípios resulta de interpretações equivocadas do “caos” como um princípio metafísico primário

Atualmente, é popular dizer: “quando eu era jovem, acreditava que tinha o mundo em minhas mãos; que havia princípios em que poderia confiar. Porém, percebi que todas as regras tinham exceções. Portanto, não existem absolutos. Tudo é caótico e, no momento de tomar uma decisão, temos que optar por caminho desagradável e quase arbitrário de coisas, mas que pareça mais vantajoso.”

Mas, se muitas – talvez milhares – de regras que alguém julgava ser aplicáveis de forma consistente forem muito menos aplicáveis e consistentes do que ele pensava, mesmo assim não faz sentido dizer que tudo é caos, e que não existem princípios coerentes. Então, por que tal conclusão é tão comum? Uma das razões é que a maioria das pessoas Ocidente não compreende os conceitos de “ordem” e “caos”.

Ordem e caos são relativos (contextuais)

Podemos pensar na linha de montagem de uma fábrica como sendo “ordenada”, mas essa “ordem” é relativa a um contexto específico. No mais das vezes, o que ocorre numa linha de montagem bem-controlada é previsível – e ela ser previsível é essencial para o seu propósito. Mas o que acontece na linha de montagem é previsível e padronizado em todos os contextos. A esteira que move objetos ao longo dessa linha está sujeita a desgaste e pode quebrar.

Uma funcionário da linha pode deixar passar um item – parte de uma unidade no processo produtivo – que ele deveria alterar junto com outros itens que são de sua responsabilidade. É por isso que, de vez em quando, algo inesperado acontece numa linha de montagem, e não é totalmente ordenado.

Por outro lado, considere uma máquina caça-níqueis. Por haver um forte elemento de aleatoriedade no alinhamento de três símbolos após a alavanca ser puxada, é comum pensar em uma máquina caça-níqueis como sendo um objeto de caos, e não de ordem. No entanto, existe um número específico de símbolos em cada fileira e, nesse sentido, há alguma previsibilidade quanto ao resultado no alinhamento dos três símbolos.

A máquina caça-níqueis é programada por matemáticos e estatísticos de modo que, após um determinado número de horas, pague uma soma predeterminada de dinheiro – apenas o suficiente para levar os frequentadores de cassinos a dar uma chance para a máquina, mas não o bastante para diminuir a margem de lucro do dono do cassino. Engenheiros a programam para que, depois de todos os giros em cada fileira, algumas configurações ainda sejam mais fáceis de surgir do que outras. A longo prazo, a máquina caça-níqueis precisa mostrar um pouco de previsibilidade e ordem: caso contrário, o dono do cassino não investirá nela A casa sempre vence porque o investimento do dono do cassino é bem- calculado, longe de ser um jogo; um proprietário bem-sucedido não deve ser confundido com seus clientes.

À primeira vista, é comum avaliar todo fenômeno como caótico e, à medida que o compreendemos melhor, perceber alguma ordem, consistência e princípios presentes nele. Quando eu era bebê e olhava para o jornal, não sabia o que estava vendo na página: tudo que estava impresso para mim era bobagem. Pelo que sabia, as marcas pretas no papel branco representavam nada além de caos. Ao aprender inglês, aprendi que havia padronização em tais marcas – que toda marca de uma forma específica representava a letra A, e que essa letra tinha um som característico. Essas regras e princípios da linguagem escrita eu não tinha capacidade de discernir quando bebê.

A lição aqui é que, só porque um fenômeno particular parece aleatório, caótico e incompreensível hoje, não significa que o será no futuro, à medida que adquirimos mais dados sobre ele.

No entanto, mesmo aprendendo os princípios por trás de um fenômeno, ainda pode haver caos e imprevisibilidade envolvidos. Como as normas da linguagem não são legisladas por uma autoridade, mas desenvolvidas de baixo para cima via interações repetidas de indivíduos que se comunicam entre si, existe alguma flexibilidade nas regras e princípios da gramática; elas podem, às vezes, mudar. Enquanto os ingleses do século XIX consideravam um terrível erro separar o infinitivo, isso é prática comum no século XX, inclusive, em documentos formais. Algumas palavras que começam como gírias – por exemplo, “limpar” (no sentido de roubar) – podem chegar a publicações formais. Na medida em que ocorrem mudanças nas regras da linguagem, pode-se encontrar alguma aleatoriedade e caos em meio à ordem.

Logo, em quase todos os fenômenos que consideramos ordenados, previsíveis e confiáveis, existe ainda algum grau de desordem, imprevisibilidade e caos. Da mesma forma, em quase todos os fenômenos que consideramos aleatórios e caóticos, existe um mínimo de previsibilidade e ordem, se formos capazes de discernir os princípios por trás deles.

Os perigos de superestimar a ordem de forma racionalista

Não obstante, existe o perigo de as pessoas se equivocarem da forma contrária. Ansiosas por se pronunciarem como especialistas em algum fenômeno, elas superestimam a extensão por que alguma regra é consistente e aplicável ou, pior ainda, são muito rápidas em declarar a coerência de determinado princípio quando não há coerência alguma nele. Preconceito e fanatismo podem surgir quando alguém detecta um padrão comum em pessoas que compartem determinado atributo, A, aparentemente se comportam de maneira particular, B, e concluem de forma precipitada que o comportamento B é inerente e necessariamente associado aos portadores do atributo A.

Na década de 1860, quando os chineses chegaram à Califórnia para trabalhar na construção da Central Pacific Railroad, muitos californianos notaram alguns padrões entre esses homens. Muitos deles, quando em bares, envolviam-se em brigas. Por causa da pobreza, alguns deles recorriam a pequenos furtos para suplementar sua renda. Como se tratava de um padrão, tornou-se comum entre os californianos concluir que os homens chineses eram inerentemente violentos.

Intelectuais não querem sentir vergonha ao pregar princípios “consistentes” que se revelem falsos, e muito menos serem chamados de racistas. Assim, decidem equivocar-se na forma contrária, e decretam que absolutos e princípios consistentes não existem. É por isso que é comum ouvir “quando eu era jovem, acreditava que tinha o mundo em minhas mãos; que havia princípios em que poderia confiar. Porém, percebi que todas as regras tinham exceções. Portanto, não existem absolutos. Tudo é caótico e, no momento de tomar uma decisão, temos que optar por caminho desagradável e quase arbitrário de coisas, mas que pareça mais vantajoso.”

Mas isso também é uma falácia. E acredito que ela tem muito a ver com pessoas que supõem que, se, de fato, existe alguma ordem ou caos em qualquer fenômeno, essa ordem ou caos deve existir, em algum nível noumenal, como atributo inerente e metafísico desse fenômeno.

Hipótese do caos como um princípio metafísico

É isso que quero dizer. Novamente, quando testemunhamos um fenômeno pela primeira vez, ele parece caótico. Se, por algum motivo, você levasse um bebê a uma fábrica e lhe mostrasse uma linha de montagem, o bebê não notaria qualquer ordem na linha. Mas à medida que a criança cresce e obtém mais compreensão, ela passa a perceber que fenômenos são compreensíveis, ordenados e previsíveis. Quando aquele bebê que viu a linha de montagem chegar aos dez anos, você pode levá-lo ao mesmo lugar e ele considerará aquela linha de montagem como uma operação ordenada. Mas, para muitas pessoas, é aqui que se instala a falácia, não sendo corrigida pelo resto de suas vidas: elas supõem que se “ordem” ou “desordem” têm qualquer significado, então essa “ordem” e “desordem” de um fenômeno devem ser, em algum nível noumenal, um atributo metafísico inerente desse fenômeno.

Na realidade, isso significa que, para muitos, “ordem”, “princípios” e “regularidade” só seriam ideias válidas caso aquilo que consideram “ordenado” e “regular” sempre fosse previsível, e nunca os surpreendesse. Elas observam que uma linha de montagem é ordenada e possui regularidade, mas concluem que, para continuar considerando-a ordenada e regular no geral, nada nela poderá surpreendê-los. E muitas vezes a linha de montagem as surpreende: por exemplo, unidades defeituosas de um produto passam por toda a linha sem serem detectadas chegando até às prateleiras das lojas.

Se a ordem, a regularidade e a previsibilidade associadas à linha de montagem fossem atributos inerentes e metafísicos da linha, então, essas surpresas não deveriam ter ocorrido. E mesmo assim ocorreram. Como muitas pessoas defendem a hipótese velada de que as ideias de “ordem”, “princípios” e “regularidade” só podem valer se forem atributos físicos inerentes a um fenômeno, a descoberta que não são características metafísicas inerentes as leva a concluir que as ideias de “ordem” “princípios” e “regularidade” são, na melhor das hipóteses, uma mentira conveniente.

Isso acontece também com as teorias do comportamento humano. Quando diversos intelectuais percebem que o que antes era considerado uma regra inextricável do comportamento humano – que os chineses, em geral, são violentos e, de forma inata, condenados a permanecer na pobreza – acaba por não ser tão aplicável como se supunha, esses mesmos intelectuais concluem que isso desacredita a própria ideia de que existem quaisquer princípios consistentes no comportamento e nas interações humanas.

O que acontece é que, ao aprender que ordem, confiabilidade e regularidade não são traços metafísicos inerentes a qualquer fenômeno, a maioria dos intelectuais ainda considera que, para haver qualquer validade nas ideias de “ordem” e “desordem”, esses atributos devem ser metafísicos e inerentes aos fenômenos. Assim, eles descartam a ideia de “ordem”. E eles sabem que a ideia que contrapõe “ordem” é “desordem”. Logo, eles presumem que se não há “ordem” como um atributo metafísico inerente em lugar algum, então, o atributo metafísico que caracteriza todos os fenômenos deve ser a desordem. E é por isso que eles se precipitam para outra alternativa falsa que diz que todo o fenômeno é, em última instância, inconsistente em sua existência. De maneira paradoxal, eles ainda acreditam em um absoluto: a incontroversa e consistente regra de que princípios são, em última instância, não confiáveis, e que a única constante na existência é a inconstância… ou o caos.

E essa é uma interpretação equivocada as ideias de “ordem” e “caos”; elas não precisam ser atributos metafísicos inerentes de fenômeno algum para possuir validade ou praticidade, assim como não é necessário que o universo tenha um lugar onde exista “um nada absoluto” para que “nada” e “zero” sejam ideias válidas. Tal como acontece com o “nada”, as ideias de “ordem” e “caos” não são reais como um atributo metafísico, mas possuem validade epistemológica, como os meios psicológicos utilizamos por alguém para compreender e raciocinar sobre o conhecimento que adquiriu.

Ordem e caos/desordem como epistemológicas, e não metafísicas

De fato, “ordem” e “caos”, são medidas relativas/relacionais de fenômenos, e “ordem” versus “caos” são antônimos, assim como “quente” e “frio”, “luz” e “escuridão”. Não existe “calor metafísico absoluto” em algum lugar do universo, e o mesmo se aplica a “caos metafísico absoluto”. Essas ideias se referem a medições válidas que fazemos, com mais frequência de maneira qualitativa que quantitativa, para explorar o que podemos extrapolar a partir de fenômenos observados.

Nenhum fenômeno ou evento é, de forma intrínseca, ordenado, caótico ou aleatório. Em vez disso, fenômenos e eventos podem ser classificados por um longo espectro, com “ordem” num extremo, e “caos”, no outro. Alguns fenômenos são mais simples, ordenados e previsíveis que outros. E expressando esse mesmo princípio de maneira inversa: alguns fenômenos são mais complexos, caóticos, variáveis e sujeitos à mudança que outros.

Quando um fenômeno não é compreendido pelos seres humanos, eles o interpretam como caos. Quando eles aprendem mais e identificam alguma consistência e coerência na ocorrência do fenômeno, eles passam a reconhecer ordem, previsibilidade e regularidade nele: veem os princípios que o governam. Entretanto, mesmo quando cientistas reconhecem ordem e princípios num fenômeno, isso não significa que conheçam tudo sobre todas as facetas do mesmo; enquanto houver aspectos desse fenômeno que permanecem desconhecidos, especialistas ainda podem se surpreender. Nesse aspecto, mesmo que a ordem e a regularidade sejam reconhecidas em um fenômeno, algum grau de incerteza e imprevisibilidade – e, com eles, “desordem” e “caos” – permanece. Essa medida de incerteza, no entanto, não invalida o conhecimento já existente sobre o fenômeno, nem invalida a prática de pensar em termos de princípios.

Como já explicado em outros ensaios, um princípio não precisa ser aplicável a todos os contextos – em especial, não precisa transcender esse contexto – a fim de que seja reconhecido como um princípio aplicável e absoluto dentro de seu próprio contexto. A “ordem” e o “caos” da vida não são metafisicamente intrínsecos; eles existem na mente de alguém como medidas de quão fácil é para esta pessoa prever a ocorrência de algum evento específico dentro de um fenômeno maior.

Quando as pessoas superestimam o grau de consistência de alguma regra, ou, de maneira mais severa, se utilizam da calúnia para afirmar princípios absolutos específicos quando estes não se aplicam, o erro que está ocorrendo é de desintegração. É intrinsicista e racionalista. Por outro lado, a falácia que leva à desordem e ao caos como uma primária metafísica é desintegrada; é subjetivismo e, na pior das hipóteses, niilismo.

A noção falaciosa de que as ideias de “caos” e “ordem” só podem ser válidas se forem atributos metafísicos inerentes à alguma coisa é vista com destaque em muitos discursos religiosos.

Defensores do cristianismo que divulgam a religião como bastião contra o caos

Jordan Peterson, por exemplo, supõe que o caos metafisicamente intrínseco seja a regra. Aceitando que todas as tentativas falaciosas de Kant e Hume de desacreditar o raciocínio observacional e indutivo estão corretas, Peterson, da mesma forma, acredita que o raciocínio indutivo-observacional é impotente para fornecer aos seres humanos quaisquer princípios coerentes de vida. E esse julgamento de que o raciocínio observacional não gera princípios coerentes está conectada ao sofisma de que um princípio induzido pela razão só pode ser considerado um princípio válido consistente se for aplicável a todo contexto possível e, portanto, transcender o contexto.

Tendo considerado de forma injusta o raciocínio indutivo-observacional como falho para prover coerência e ordem para a vida humana (como o raciocínio indutivo-observacional não pode, por mágica, tornar “ordem” e “regularidade” em atributos metafisicamente intrínsecos a qualquer fenômeno), Peterson declara que tudo o que resta capaz de fornecer aos seres humanos a mínima sensação de ordem, confiabilidade, princípios e controle na vida é a religião. Por considerar o caos uma primária metafísica, Peterson acredita que, quando se trata de trazer a mínima sensação de ordem e controle em suas vidas, os humanos têm de se contentar com aquilo que é inexplicável, enigmático, arbitrário e, por fim, inventado.

Conclusão

Ao contrário de todos esses homens, a solução real é obter melhor compreensão do que as ideias de “ordem” e “caos” realmente significam, e que propósito prático elas servem na vida. É supor que tanto “ordem” como “caos” podem e devem ser atributos metafisicamente intrínsecos que leva às pessoas ao erro. Quando as pessoas reconhecem que “ordem” e “caos” são apenas medidas, usados em contraste um com o outro, medindo quão bem elas compreendem determinado fenômeno e quão fácil é fazer previsões precisas sobre ocorrências menores dentro daquele fenômeno, o significado válido por trás de “ordem” e “caos” é melhor compreendido.

E então é possível compreender que é dentro de um contexto específico que qualquer fenômeno pode ser entendido como “ordenado”, “regular”, “previsível” e “controlado”, e reconhecendo quais princípios o governam e acontecem dentro dele, um fenômeno é valido na medida em que se aplicam princípios dentro do contexto que é pertinente a situação que se está tentando entender e agir.

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Publicado originalmente em Stu-topia.

Traduzido por Verônica Ferrari Cervi.

Revisado por Matheus Pacini.

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