Quem é você para julgar? Uma crítica ao culto da tolerância

Não é todo dia que vemos a mídia mainstream celebrar uma figura religiosa como se fosse um popstar. De Jimmy Swaggart a Ted Haggard, jornalistas normalmente tratam líderes religiosos como hipócritas, palhaços ou ambos. Parece que eles abriram uma exceção para o papa Francisco (Jorge Maria Bergoglio).

Bergoglio se tornou o queridinho da mídia – chegando, pasmem, ao status de Personalidade do Ano da revista Time – por ter utilizado um tom mais “liberal” em questões sociais como aborto e homossexualidade. Bergoglio consumou seu caso de amor com a mídia em um voo de Roma para o Brasil. Perguntado sobre seu julgamento de padres homossexuais, o pontífice declarou, de forma comovente: “quem sou eu para julgar?”

E, ainda assim, muitos jornalistas e teólogos qualificam sua adulação pelo novo “tom” do papa, pois não propôs alterar nenhum aspecto substancial da doutrina da Igreja. Na verdade, Bergoglio tem reafirmado todos os dogmas controversos de Roma: ele se opôs ao casamento entre pessoas de mesmo sexo como uma “rejeição total da lei de Deus” e condenou o aborto como “ofensa terrível contra Deus”, para citar alguns exemplos.

Mesmo quando Bergoglio cede na doutrina social da Igreja, faz cara feia em questões econômicas. Em sua exortação apostólica Evangelli Gaudium, Bergoglio faz uma dura condenação ao capitalismo de livre mercado. No texto, ele direciona sua ira não só contra um sistema anônimo, mas contra os indivíduos cujas escolhas impulsionam a economia capitalista. O pontífice considera desumano e desprezível o fato de os capitalistas serem “escravizados por uma mentalidade individualista, indiferente e egoísta”[1]. Ele lamenta o “carreirismo” como a busca de almas “sedentas” que se encontram “sepultadas sob muitas desculpas”. Ele condena o individualismo como maligno.[2]

Alguém poderia acusar Bergoglio de hipocrisia: afinal, ele defende a tolerância não incriminatória de um lado, enquanto se apressa, por outro lado, em julgar veementemente as pessoas. Mas acusá-lo nesse sentido seria fútil. Ninguém que se diz “não incriminatório” pode ser totalmente consistente. Zombar do julgamento moral é – adivinhem – fazer um julgamento moral. A falha aqui não é hipocrisia, mas sim autorrefutação.

Membros do culto da tolerância moral não têm como evitar serem juízes de si próprios. Nenhum ser humano pode evitar a necessidade de fazer julgamentos. Isso se aplica, em particular, ao líder de uma ideologia religiosa. Como uma visão sistemática, o Catolicismo oferece diretrizes (orientação) aos seus seguidores, bem com listas de vícios e virtudes consoantes com sua visão de uma boa vida. Essa orientação só é possível através de um julgamento moral.

A necessidade de julgar o mundo (e, em última instância, as pessoas que dele fazem parte) é um fato enraizado em algo muito mais profundo que a simples adesão de um indivíduo a uma ideologia específica – tem a ver, sim, com a essência do que é ser humano. Seres humanos são seres conceptuais que inevitavelmente captam similaridades e diferenças no que observam: não há como evitar notar diferenças entre comida e veneno, entre amigos e inimigos. Não importa se vivemos numa caverna ou numa metrópole civilizada, precisamos fazer julgamentos de valor.

Por mais que tentemos, não há como abandonar a necessidade de julgamento: não podemos ver o mundo como um bebê, sem o benefício da experiência ou de um sistema de crenças que construímos ao longo dos anos. O máximo que podemos fazer é fingir que não precisamos julgar; podemos, sim, abdicar da responsabilidade de fazer julgamentos racionais, deixando-o ao acaso. Podemos pular para conclusões com base em nossas primeiras impressões, ou tentar acreditar apenas no que queremos que seja verdade – em vez de seguir o que aponta nossa melhor avaliação das evidências.

Quando abdicamos da responsabilidade de julgar racionalmente por nós mesmos, terceirizamos nosso padrão de valor: a nossos pais, parceiros ou vozes de quaisquer figuras de autoridade que tomaram nosso subconsciente quando baixamos nossa guarda. Embora não possamos evitar fazer julgamentos, podemos escolher, irresponsavelmente, repetir os julgamentos dos outros.

Mas julgar o mundo é uma responsabilidade muito importante para ser relegada aos outros. Julgamentos morais dizem respeito às escolhas mais fundamentais na vida. Algumas escolhas nos levam a uma vida plena; outras, à estagnação ou destruição. Ser honesto fortalece nosso compromisso com a realidade, enquanto a desonestidade nos isola num mundo de fantasia. Viver com integridade alinha nossas ações com nossos valores, enquanto que comprometer tais valores reduz nossa vida a uma esquizofrenia. Agir com justiça recompensa quem pratica nossos valores, enquanto que a injustiça pune nossos aliados e recompensa nossos inimigos.

Mesmo se não comunicamos esses julgamentos aos outros, é crucialmente importante fazê-los por nós mesmos, não só para identificar as pessoas corretas com quem se associar, mas também para reafirmar a nós mesmos o tipo de vida que queremos viver. Mas também é crucial expressar o julgamento moral. As crianças que batem palmas para o fortão no parquinho, em vez de censurá-lo, dão aval à próxima ofensa. Os eleitores que relevam as falhas de caráter dos políticos de seu partido não deveriam se surpreender quando eles são processados por corrupção. Diplomatas que negociam com ditadores podem refletir a longa história de traição e agressão de tiranos que mimaram. Pessoas más obtêm poder no mundo porque pessoas boas ficam em silêncio.

Deveríamos resistir ao pai intelectualmente preguiçoso que critica sua filha por querer seguir uma carreira em vez de se tornar mãe logo após sair do ensino médio, ou um professor dogmático que castiga um estudante por expor uma opinião impopular em um artigo de faculdade.

Deveríamos ser especialmente críticos do julgamento irresponsável dos que são considerados autoridades morais. Considere o padre que considera atos homossexuais imorais por serem condenados por um texto antigo – um texto que sanciona a existência da escravidão mas proíbe o consumo de mariscos. Pressionado sobre a relevância daquele antigo texto, o padre poderia insistir que o propósito natural da relação sexual é a reprodução (ignorando o fato de ele mesmo não condenar o sexo entre casais estéreis), ou de que crianças precisam de modelos a seguir de ambos os sexos (deixando de lado o fato de ele pertencer a um clero composto apenas por homens). Se, então, ele defendê-la como questão de fé, como um axioma que não precisa de evidência, então, a irracionalidade fica clara para quem quiser ver.

Quando algumas pessoas mais intelectualmente imprudentes pronunciam alguns de seus julgamentos, pouco surpreende que a prática do julgamento moral seja impopular. Mas a alternativa não é se abster do julgamento, mas sim ser ainda mais racionalmente escrupuloso em seu próprio julgamento.

Por essa razão, é particularmente imperdoável pedir que o mundo se abstenha do julgamento porque um indivíduo teme ser julgado – por ser inseguro no mérito de suas próprias decisões, e inseguro em como se engajar em julgamento responsável de suas próprias ações. Talvez não cause surpresa que padres entoem que deveríamos “não julgar para não sermos julgados”: isso os isenta, bem como aos outros, que não têm confiança em sua própria virtude de ser responsabilizado por seus próprios julgamentos irresponsáveis.

Desnecessário dizer, a atitude “não julgue” não impede os padres de pregar os ensinamentos morais de sua religião. Eles podem racionalizar seu comportamento ao afirmar que esses são, de fato, os julgamentos de Deus – e não os seus. Isso é o máximo que podem fazer para reconciliar sua pregação com sua crença de que seres humanos são todos insignificantes e pecadores para julgar coisas por si só próprios.

Mas qualquer pessoa com uma mente tem a habilidade de fazer julgamentos morais responsáveis. Um indivíduo não precisa ser onisciente ou onipotente para entender a diferença básica entre bem e mal. Julgamento moral é o direito e o privilégio de seres humanos orgulhosos, que não deveria ser relegado aos outros – muito menos àqueles que não têm confiança para julgar por si próprios.

Quem é você para julgar? Um ser humano, dotado de uma mente. É claro, julgar os outros é uma grande responsabilidade. Fazê-lo apropriadamente não é uma tarefa fácil – como não é nada que é importante na vida. Nessa questão, a filósofa Ayn Rand propôs um contraponto à sabedoria convencional de “não julgar para não ser julgado.” Como alternativa, ela propôs “julgue, e prepare para ser julgado”. Você concorda com esse conselho? Julgue por si mesmo.”

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Traduzido por Matheus Pacini.

Publicado originalmente em The Undercurrent.

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[1] Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, p. 164. Disponível no site do Vaticano.

[2] Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, p. 209. Disponível no site do Vaticano.

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