Qual é a função da arte?

A Arte já foi entendida como a vida ordinária pintada em paredes, elaboração de hieróglifos, decoração de túmulos e determinados modelos arquitetônicos. Em seu significado geral, todo conjunto de regras capazes de dirigir uma atividade humana qualquer podia, sim, ser considerado arte[1]. Pensar que a introdução de uma manifestação estética utilizava a razão para expressar, registrar e, até mesmo, experimentar formas de simbolizar tanto a vida quanto a cultura demonstra o desenvolvimento da complexidade humana em suas capacidades ao longo da história.

É consenso na academia que, antes do séc. XVIII, o conceito de arte estava diretamente ligado a techné, ou seja, arte como técnica fosse na produção artesanal ou na aplicação dos conhecimentos necessários para agricultura, não apresentando a dimensão metafísica atribuída ao belo. Para ser reconhecido em sua arte (na época, pensamento aplicado à produção) o artífice precisava conhecer os preceitos, dominar a técnica e ter o decoro requerido de modo a realizar com excelência o pedido solicitado[2]. Na Idade Média, surgem as Artes Liberais, um conjunto de disciplinas para a iniciação do indivíduo na participação da cultura humana. Essas artes tinham como objetivo desenvolver a capacidade de linguagem, bem como o senso de forma e proporção através do estudo dos números. Foram chamadas liberais em função da liberalidade de sua constituição: o indivíduo aprendia um senso de dever, exercendo sua atividade mesmo sem uma remuneração[3].

Para os gregos a arte tinha função educacional, mítico-religiosa e de manifestação cultural: era a síntese de um conjunto de princípios e valores comungados por aquela sociedade. Na Idade Média é perceptível um amálgama de concepções que, em sua arte, manifestavam a cultura de um povo.

A revolução estética mudou drasticamente a concepção de arte como apreço à cultura e à tradição. Em seu lugar, ela colocou a revolução, no pior sentido do termo: ruptura abrupta de todos os laços criados por um longo processo de acúmulo de conhecimento. Em um esforço intelectual para justificar o início da trapalhada, Jaques Ranciére, em seu livro, A Revolução Estética e seus Resultados, diz que arte pela arte é a personificação da democracia”. Ele recomenda a defesa de uma arte autônoma, entendendo que a expressão do inconsciente seria uma de suas funções.

Essa frase é muito simbólica e, de forma clara, demonstra o interesse do atrelamento de demandas políticas (democracia) ao conceito de arte, o que sorrateiramente se justificaria como disfarce do combate à heteronomia do pensamento. Agora, arte se distingue de Belas Artes: nem mecânica, nem liberal, só fruto da imaginação; inclassificável, não busca a verdade nem a utilidade, imitando uma realidade imaginativa.

Roger Scruton em seu livro Beleza, sintetiza bem o momento histórico:

Foi apenas no século XIX, e na esteira das lições de estética de Hegel, publicadas após sua morte, que o tema da arte veio a substituir a beleza natural como objeto principal da estética. Essa mudança faz parte da grande transformação da opinião intelectual que hoje conhecemos como movimento romântico e que colocava os sentimentos do indivíduo, para quem o eu é mais interessante do que o outro e vaguear mais importante que pertencer, no centro de nossa cultura. A arte se tornou a iniciativa pela qual o indivíduo se anunciava ao mundo e recorria aos deuses para se justificar. No entanto, ela se mostrou peculiarmente falível como guardiã de nossas aspirações mais elevadas. A arte tomou para si a tocha da beleza, correu com ela por um tempo e acabou deixando-a cair nos mictórios de Paris[5].

Podemos analisar as consequências de curto e longo prazo dessa nova concepção. Antes, requisitava técnica, agora requer autodidatismo; retratava a cultura de um povo, agora emoldura novos ethos coletivos; era ferramenta de educação, agora é manifestação da imaginação.

Algumas perguntas minimamente recomendáveis:

  1. Se você não sabe nada de si, como explorar suas capacidades imaginativas?
  2. Se você não tem técnica e se recusa a aprender os princípios com aqueles que já sofreram o processo de desenvolvimento das melhores formas, sua arte partirá de rascunho, da tentativa e erro?
  3. Esse novo ethos coletivo será algo bom, sendo uma formulação baseada no Devir?

Com certeza, podemos concluir que o mictório de Paris é tão ridículo quanto apresentar pedofilia e zoofilia para crianças em uma exposição. É o absurdo da utopia daqueles que, em busca de autonomia depravada, são incompetentes para propor algo humano, cuja aplicação tenha como resultado vida, felicidade e comunhão entre os homens. Na citação de Roger Scruton temos um elemento essencial que nos dá a dica do porquê dessa revolução ter como resultado esquizofrenia estética, ruptura das amarras da cultura coletiva, da técnica social, trocada pelo enfoque nos sentimentos do indivíduo. O problema é que sentimentos não são causa, são consequência. O artista realizará sua obra não com base em princípios mas por efeito de uma fundamentação irrefletida.

Ao analisar o percurso da história, há avanços e retrocessos no desenvolvimento humano, na elaboração da vida em sociedade e no aperfeiçoamento diplomático entre as nações. É compreensível que, em sociedades rudimentares, o coletivismo fosse a regra, visto a precariedade de organização entre os homens.

A arte é uma necessidade da mente, daquele que pensa e avalia, é uma recriação seletiva da realidade de acordo com os juízos metafísicos de valor do artista. O homem racional tem na arte a contemplação da sua finalidade na Terra, é seu lembrete daquilo que é mais precioso, a concretização de seus valores em matéria. Arte é o alimento para a preservação de sua consciência. A filosofia proporciona um conjunto de princípios e valores integrados que compõe o alicerce intelectual para viver. A metafísica é o fundamento da arte, sua concretização é o combustível espiritual que mostra para o homem racional, que seus alicerces estão bem fundamentados.

Uma obra de arte não formula a metafísica que está representando; ela não articula (ou pelo menos não precisa articular) definições e princípios. Então a arte por si só não é suficiente nesse contexto. Mas a questão é que a filosofia também não é suficiente. A filosofia por si só não consegue satisfazer a necessidade que o homem tem de filosofia. O homem requer a união das duas: filosofia e arte, as identificações amplas e sua corporificação concreta. Além disso, quanto à sua orientação fundamental, norteadora, o homem combina o poder da mente com o do corpo, isto é, combina o alcance do pensamento abstrato com a irresistível instantaneidade da percepção sensorial[6].

Perceptos são condensados em conceitos, sendo a filosofia um conjunto desses conceitos. A arte é a condensação da filosofia em um percepto. A arte não apresentará sentimentos difusos e inexplicáveis à luz da razão, mas confirmará uma dimensão psicoepistemológica do sujeito criador. A arte objetiva a metafísica dando inspiração, poder de recriar a realidade seletivamente, faz viver o ideal do herói, aquele que supera as fraquezas da incerteza e da fragilidade moral. Imbuído dessa vivência o homem está convicto de que é capaz de seguir em frente, viver e realizar grandes feitos.

Aqueles que projetam beleza na irracionalidade condensada em “arte”, tende a obter como resposta sentimental o consolo, o reconforto. É a confirmação de sua psicoepisteme, de um homem que não tem nenhum domínio de si mesmo e da realidade, que está imerso em vícios injustificados não resolvidos em sua mente. O resultado é arte representando a licença para estagnação, objeto de admiração da volúpia do homem que odeia a vida.

Na arte objetivista não temos como função a educação ou a manifestação seja de sentimentos ou de uma cultura social, a finalidade da arte é mostrar e não ensinar, exibir ao homem uma imagem concretizada de sua natureza e de seu lugar no universo.[7].

Ayn Rand nos auxilia a consolidar o argumento quando diz:

Como ser humano, você não tem escolha quanto ao fato de que você precisa de uma filosofia. Sua única escolha é definir sua filosofia através de um processo de pensamento consciente, racional e disciplinado e de uma deliberação escrupulosamente lógica – ou você deixar seu subconsciente acumular uma pilha inútil de conclusões injustificadas, generalizações falsas, contradições indefinidas, lemas não digeridos, desejos não identificados, dúvidas e temores, todos agrupados ao acaso, mas integrados pelo seu subconsciente numa espécie de filosofia bastarda e fundida em um peso único e sólido: o duvidar de si mesmo, como grilhões no lugar onde as asas de sua mente deveriam ter se desenvolvido[8].

O que se pretende não é dar as costas para a tradição, não é menosprezar a cultura e o apreço pela humanidade enquanto detentora de milênios de desenvolvimento e acúmulo de sabedoria, mas valorizar aquilo que nos torna humanos, os princípios que guiaram os homens de valor a grandes realizações[9].

O individualismo apartado de princípios objetivos leva à depravação e à confusão mental, é a porta para o niilismo e a loucura. A arte fundamentada na razão leva o homem a reconhecer o melhor de si, sentir-se forte e confiante, a olhar seus semelhantes como merecedores da felicidade. Vê no artista alguém que entendeu o potencial do homem, que integra seus princípios e valores em uma obra que nos dá esperança.

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Revisado por Matheus Pacini

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[1] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Martins Fontes, São Paulo, 1998.

[2] LACOSTE, Jean. A filosofia da arte; Tradução, Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1986. 109p.

[3] Disponível em: http://old.olavodecarvalho.org/palestras/2001educacaoliberal.htm

[4] RANCIERE, Jacques. The Aesthetic Revolution and its Outcomes In: New Left Review, 2002. p.133-15, disponível em: http://newleftreview.org/.

[5] SCRUTON, Roger. Beleza. ed. São Paulo: É Realizações, 2013. p.107

[6] PEIKOFF, Leonard. Objetivismo: A filosofia de Ayn Rand. Porto Alegre: Ateneu Objetivista, 2000. 451p.

[7] PEIKOFF, Leonard. Objetivismo: A filosofia de Ayn Rand. Porto Alegre: Ateneu Objetivista, 2000. 451p.

[8]  RAND, Ayn. Philosophy: Who Needs It. New York: Bobbs-Merrill, 1984. 228p.

[9] RAND, Ayn. Philosophy: Who Needs It. New York: Bobbs-Merrill, 1984. 228p.

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