O legado de Steve Ditko: de super-heróis a heróis morais

Steve Ditko, artista e contador de histórias em quadrinhos que inspirou milhões com suas ilustrações de, entre outros, o Homem-Aranha, Dr. Estranho, O Questão e o Sr. A faleceu em 29 de julho de 2018 aos 90 anos de idade. Embora sua obra cobrisse uma gama de gêneros – crime, horror, ficção científica, mistério, guerra, western, romance e humor – o maior valor de seu corpus é a sua representação de heróis moralmente consistentes.

As histórias acessíveis e empolgantes de Ditko atraíram a mim e tantos outros na infância. Integradas em suas histórias estavam lições morais que me tocaram na juventude, enquanto me esforçava para ser quem sou. É isso que concede aos seus personagens e histórias um poder permanente. A proeza artística e a visão filosófica de Ditko inspiram-me até o dia de hoje.

Ditko era uma pessoa muito reservada, e deixava seu trabalho falar por ele. Em suas palavras: “eu nunca falo sobre mim: meu trabalho me representa. Eu faço o meu melhor e, se eu gostar, espero que alguém goste também.”[1] Vale a pena, todavia, examinar a sua vida, pois ele inseriu os valores que animaram seus personagens.

Steve nasceu em Johnstown, estado da Pensilvânia, em 2 de novembro de 1927. Quando criança, admirava os gibis de heróis como Batman. Aos 13 anos, ele decidiu se tornar um cartunista. Tão logo acabou o ensino médio, serviu no exército e ficou estacionado na Alemanha do pós-guerra. Não obstante, continuou a trabalhar em seu objetivo último, desenhando tirinhas para o jornal do exército.[2]

Em 1950, Ditko mudou-se para Nova York para estudar sob a tutela de um de seus heróis, o desenhista do Batman, Jerry Robinson, na Cartoonist and Illustrators School, depois chamada de School of Visual Arts). Sob a orientação de Robinson, ele aprimorou suas habilidade em perspectiva, composição, anatomia, luz e sombra. Além disso, aperfeiçoou sua técnica de narrativa.

Dito lançou sua carreira profissional em 1953, aceitando um emprego no estúdio de Joe Simon e Jack Kirby, criadores do Capitão América. A era dos super-heróis dos anos 1940 tinha perdido popularidade, e os quadrinhos de histórias de terror tinham assumido o seu lugar. As primeiras obras de Ditko foram ilustrações de capa para títulos como This Magazine is Haunted and Strange Suspense Stories.[3]

Alguns anos depois, Ditko foi trabalhar para Stan Lee do Timely (que logo se tornou a Marvel Comics), onde ele ilustrou histórias de fantasia e ficção-científica. Seu grande sucesso veio em agosto de 1962, quando o Homem-Aranha apareceu na capa de Amazing Fantasy #15.

Antes do Homem-Aranha, super-heróis como Superman, Batman e Capitão América tinham designs de trajes muito similares: um rosto parcialmente ou (des)coberto, ceroulas e botas. Lee pensou primeiro em Jack Kirby para desenhar o Homem-Aranha, mas Kirby seguia esse mesmo formato de traje, então Lee se voltou para Ditko, que tentava algo novo. A máscara do Homem-Aranha cobria totalmente o rosto do tímido Peter Parker. Seu traje collant de corpo inteiro, com mãos e sapatos pegajosos, permitia a ele escalar superfícies.

O público amou a atitude “eu contra o mundo” do Homem-Aranha. E, ao invés de usar a força bruta como outros super-heróis, o Homem-Aranha enfrenta seus vilões com fluidez e graça, combinadas com um intelecto afiado.

Ditko criou algumas das melhores edições de O Espetacular Homem-Aranha, em especial, da 31 a 33, que cobria a sequência do Master Planner. Em determinado momento, o Homem-Aranha está preso sob uma pilha de máquinas enquanto água pinga sobre sua cabeça. O soro que salvará a vida de sua tia está fora de seu alcance. Ele se culpa por falhar com ela, e parece totalmente abatido. Ele sabe que não pode fechar seus olhos porque, se o fizer, desmaiará e morrerá. O peso do mundo está sob suas costas. Então, como se fosse o Atlas da mitologia grega, ele levanta lentamente as máquinas, salva a sua tia e a série tem final feliz, marcando a transição de Peter Parker à idade adulta.[4]

Em julho de 1963, Ditko criou o Dr. Estranho, o brilhante cirurgião cujo acidente de carro causou um sério dano neurológico que pôs fim à sua carreira médica. Com esforço memorável, o Dr. Estranho desenvolve poderes extraordinários, mas se torna um pária no processo. Ele encara a solidão enquanto combate uma miríade de ameaças sobrenaturais, salvando o mundo. (O retrato de Ditko sobre dimensões diferentes no gibi levou alguns a especular que ele estava tomando LSD. Contudo, muitos de seus colegas confirmam que a arte vinha diretamente da imaginação de Ditko, e não da influência de drogas.)

Apesar da popularidade crescente de seus gibis, Ditko não estava satisfeito. Na metade da década de 1960, ele começou a ter problemas com Lee. Lee tinha negado a Ditko o crédito devido pelas histórias e personagens que ele tinha originado. Mas, mais importante, as ideias de Ditko com respeito à própria essência do seu trabalho tinham evoluído. Lee mantinha a visão mitológica grega de que todos os heróis tinham um calcanhar de Aquiles: uma falha trágica que levaria, eventualmente, à sua destruição. Isso era inaceitável para Ditko, que tinha passado a considerar que a arte deveria representar o ideal – o homem em seu melhor. Ele queria criar um herói totalmente novo, que fosse moralmente consistente e filosoficamente objetivo.

Então, ele deixou a Marvel em 1966 e, no ano seguinte, criou um novo personagem: “O Questão”, publicado pela Charlton Comics. Usando uma máscara sem forma fundida em seu rosto por um gás químico, o poder principal d´O Questão residia em conhecer o que era certo, agindo de acordo a tal conhecimento. Ao contrário de outros personagens, ele não defendia contradições e, assim, não era minado por conflitos internos. Em uma das cenas mais famosas de O Questão, ele joga dois criminosos no sistema de esgoto da cidade. Quando eles imploram por misericórdia, ele diz que eles são ratos, e merecem o esgoto, recusando-se a ajudar.

A justiça implacável de O Questão era algo novo. Os editores do Charlton temiam pressão da Comics Code Authority. A série durou apenas cinco edições sob o controle de Ditko. Anos depois, quando a DC Comics comprou a Charlton, ela reviveu O Questão, mas o personagem novo, sarcástico e zen não tinha o senso de justiça de Ditko.

Ditko nunca olhou para trás. Ele agora sabia que propor essa visão criativa à vida requeria uma editora independente. Ele escolheu a witzend de Wallace Wood como a plataforma para a sua próxima criação: o Sr. A. Ao contrário de outros heróis, o Sr. A não tinha superpoderes. Ele combatia o submundo dos criminosos armado com nada além de suas luvas de metal, uma máscara de aço e um compromisso absoluto com a justiça.

Isso foi totalmente demonstrado na história introdutória do Sr. A, onde Ditko também violou a proibição do Comics Code sobre violência excessiva. Na primeira página, um jovem chamado Angel rouba uma loja de joias e, então, agride um policial até a morte. Logo depois, ele esfaqueia o seu cúmplice, bem como sua professora, a Srta. Kinder, que sente pena dele, pois ele “nunca tinha tido uma escolha” (soa familiar?). O Sr. A joga Angel do telhado, deixando-o pendurado em um mastro de bandeira. A Srta. Kinder implora que o Sr. A salve Angel, mas ele a salva, deixando Angel cair para sua morte.[5]

A evolução filosófica de Ditko estava agora completa – e completamente integrada em sua arte. Além do próprio Sr. A, o maior indicador dessa postura foram suas ilustrações em preto e branco. Elas representam os princípios que animavam o Sr. A. Isto é: a moralidade é absoluta, preta e branca. Todos nós devemos escolher entre o bem e o mal. Não há pacto com o mal.

Ao contrário de criações anteriores, Ditko reteve os direitos do Sr. A, e continuou escrever histórias sobre seu herói ideal até a sua morte. Após seu personagem ter sido finalizado. Ditko fez algo sem precedentes. Ele gravou uma explicação dos princípios sobre os quais o Sr. A se baseava, descrevendo o que tornava esses tipos de heróis essencialmente diferente de seus personagens mais populares (confira o vídeo no seguinte link).

Para Ditko, estar vivo significava criar seu tipo de mundo através da arte. Em 1973, ele publicou Avenging World, um tipo de sequência do Sr. A que incluía um de suas ilustrações mais divinas. Essa obra-prima, “The Reality” (A Realidade) é uma representação visual da filosofia racional e do mundo que a torna possível. Ele retrata um homem eclipsado por um arranha-céus futurista representando o “Progresso”. Sua fundação é composta de “Conhecimento”, “Ciência”, “Negócios e Indústria”, que, por sua vez, dependem da “Justiça”, “Direitos”, “Lógica”, “Fatos” e “Realidade.”

A partir de 1988, Ditko e seu colaborador Robin Snyder começaram a publicar suas próprias obras. Dos 80 aos 90 anos, ele criou sua 32-page series, que incluía personagens como The Hero, The Cape, Miss Eerie, Madman e The ? Além de criar heróis que acreditavam que ideias e ações tinham consequências, Ditko superou-se ao retratar vilões, particularmente aqueles em ato da evasão, repletos com rostos suados de aflição. Ditko também incluiu nessa série ensaios sobre filosofia e outras obras do fim de sua vida.

Embora eles representam o auge de sua obra, os gigantes morais incontestáveis de Ditko nunca alcançaram a fama de seus primeiros personagens. É claro, a fama não era o objetivo de Ditko. Ele focava em criar arte que “mostra como os homens poderiam e deveriam agir”, heróis sem falhas trágicas, e um universo onde a justiça triunfa – e ele teve êxito nessa empreitada. Obrigado, Steve Ditko.

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Publicado originalmente em The Objective Standard.

Traduzido por Matheus Pacini.

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[1] DITKO, Steve. The Ditko Collection, vol. 1, editado por Robin Snyder. Thousand Oaks, CA: Fantagraphics Books, 1985. p. i.

[2] BELL, Blake. Strange and Stranger: The World of Steve Ditko. Seattle: Fantagraphics Books, p. 14–15.

[3] Gostaria de agradecer a Robin Snyder pelo feedback em um primeiro rascunho desse artigo.

[4] Bell, Strange and Stranger, p. 66.

[5] Bell, Strange and Stranger, p. 101-111.

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