Howard Roark é um retrato de Jesus?

Carta de Ayn Rand, datada de 9 de julho de 1946.

Querida Sra. Austin:

Obrigado por sua carta. Aprecio a honestidade e seriedade de seu questionamento – em particular, o último parágrafo de sua carta. Seria necessário um tratado filosófico para responder suas perguntas adequadamente, mas tentarei indicar algumas respostas.

Você diz: “Roark é um retrato de Jesus.” Essa afirmação pode ter milhares de significados distintos. De modo geral, pelo que entendi, você quer dizer que tanto Roark como Jesus são considerados personificações (encarnações, no seu caso) do homem perfeito, do ideal moral – se for o caso, você está certa, mas a comparação pára por aí: o ideal moral representado por Roark não é aquele representado por Jesus.

Existe uma contradição básica nos ensinamentos de Jesus. Ele foi um dos primeiros mestres a pregar o princípio básico do individualismo – a santidade inviolável da alma do homem – e a salvação dela como preocupação principal e objetivo mais elevado de sua vida; isso significa – o ego e a integridade do ego do indivíduo. Mas quanto a outra questão, o código ético a ser observado para a salvação da alma do indivíduo – (o que o homem deve fazer na prática para salvar a sua alma?) – Jesus (ou, talvez, Seus intérpretes) deram ao homem o código do altruísmo, isto é, um código que lhes informou que, para salvar sua alma, você deve amar, ajudar ou viver para os outros. Isso significa, a subordinação de sua alma (ou ego) às vontades, desejos ou necessidades dos outros: em poucas palavras, a subordinação de sua alma à alma dos outros.

Essa é uma contradição que não tem solução. É por isso que os homens nunca tiveram sucesso em aplicar o Cristianismo na prática, embora pregando-o em teoria por 2000 anos. A razão de seu fracasso não foi a depravação ou hipocrisia natural do homem, que é uma explanação superficial (e perversa) sempre dada. A razão é que uma contradição, simplesmente, não pode funcionar. É por isso que a história do Cristianismo tem sido uma guerra civil contínua – tanto literal (entre seitas e nações) como espiritualmente (dentro da alma de cada um).

A solução? Temos uma escolha. Ou aceitamos o princípio básico de Jesus – a proeminência da alma do indivíduo – definindo um novo código ético consistente com ele (um código do Individualismo). Ou aceitamos o altruísmo e o princípio básico que ele implica – a concepção do homem como animal sacrificial, cujo propósito é servir aos outros, ao coletivo (que é o que você vê na Europa atualmente – e que certamente não é o que Jesus queria).

Você pergunta: “você acha que é motivo de humilhação o homem pensar ser filho do Criador da Terra, das estrelas, etc.? Você não acha que ele ter uma ‘herança divina’ tornaria seus sonhos e atos nobres ainda mais nobres? Com respeito à primeira questão, responderia: não, não necessariamente.

Talvez a declaração filosófica pudesse ser feita definindo Deus e a relação do homem com Ele de tal sorte que não fosse humilhante para o homem em sua vida terrena. Mas eu não conheço nenhuma declaração nesse sentido dentre as concepções populares de Deus.

A segunda questão em si mesma contém a mais severa humilhação ao homem. Ela implica que o homem, mesmo depois ter alcançado o nível mais elevado de si mesmo, não é nobre ou não é nobre o suficiente; que ele precisa de algo sobre-humano para torná-lo, de fato, nobre; que o que é nobre nele é divino, e não humano; e que o meramente humano é desprezível. Isso nem eu, e muito menos Roark, jamais aceitaríamos.

Você diz: “Jesus disse que devíamos amar uns aos outros, levando os fardos uns dos outros”. “Levar os fardos uns dos outros” é a declaração mais pura do coletivismo altruísta, a que Roark responde: “NÃO”.

Quanto a “amar uns aos outros” (isso significa, presumo, indiscriminadamente) é um preceito que não entendo. Ele não faz sentido, e tampouco é possível aplica-lo na prática. Amor é o reconhecimento que alguém concede ao valor ou à virtude. Como nem todos os homens são virtuosos, amá-los por seus vícios seria uma concepção monstruosa, uma injustiça total. Não se pode amar homens como Stalin ou Hitler; não se pode amar um homem como Roark e, também, um homem como Toohey. Se alguém disser que sim, significa apenas que não sabe o que é amar. Amar o ideal e, ao mesmo tempo, aqueles que o traem, é apenas trair o ideal.

Você diz: “parece-me que Jesus amou as pessoas de uma forma que você, Ayn Rand, aprovaria.” Não, não consigo aprovar nos termos propostos. Você diz: “Jesus amou o sonho de bondade que Ele viu em todo homem.” Eu não vejo um “sonho de bondade” em todos os homens, tampouco qualquer maldade natural ou pecado original neles. Considero o homem, sobretudo, como uma criatura de livre-arbítrio. Isso significa que depende dele, e só dele, decidir se será bom ou mau. Assim, alguém é julgado por seu próprio histórico, sendo amada ou odiado à luz de suas ações. Eu não aprovo amar alguém por sua potencialidade (potência), mas sim por seus atos (ato), particularmente, quando toda ação desse alguém é uma negação daquela potencialidade, o seu exato oposto.

Quanto a Roark, fazendo relação com o tipo de amor pelos outros que você descreve, fica claro que ele não estava preocupado com os outros. Sim, seu objetivo era a perfeição; mas não a perfeição do mundo ou dos outros, mas só daquilo que estava em seu poder – dele próprio e de seu trabalho. Ele não se propunha a ser o poder que deveria ou poderia provocar a perfeição potencial nos outros. Primeiro, porque ele sabia que não poderia fazê-lo; segundo, porque ele não queria fazê-lo, mesmo se pudesse; outros não o interessavam o bastante para se tornarem uma preocupação. Se ele tivesse escolhido tal missão, eles teriam se tornado sua preocupação, e ele teria se tornado algum tipo de homem de segunda mão, quem ele sempre denunciou clara e especificamente.

Roark fez mais que amar os homens – ele os respeitou. Ele concedeu a cada um deles o mesmo direito que eles não poderiam impedi-lo de exercer: o direito de ser uma entidade independente cujo destino, vida e perfeição está em suas próprias mãos, e de ninguém mais – certamente, não nas de Roark.

Quando à sua afirmação de que Roark gostaria de servir a esse tipo de Deus – essa é a única frase de sua carta que foi ofensiva para mim. As palavras “Roark” e “servir” são totalmente antagônicas e não devem ser conectadas. Não existe tal concepção de “serviço” na consciência de Roark, nem no tipo de universo ao qual ele pertence e representa. Roark não “serviria” a nenhum Deus. Ele nem mesmo usaria tal palavra com relação a si próprio. Roark é um homem como um fim em si próprio. Quem é um fim em si mesmo não serve a ninguém. Quem serve é o meio para um fim.[1]

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Traduzido por Matheus Pacini.

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[1] RAND, Ayn. Letters of Ayn Rand. p. 287

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